Jornalismo Básico 2: reportagens especiais/Reportagens do JOB/Beatriz Vilanova e Pedro Bettamio

Fonte: Wikiversidade

Sina de cinema

“Tudo de ruim passa por aqui”, diz Zezinho, taxista de longa data do ponto em frente ao abandonado Cine-Art Palácio. Junto de seus colegas de profissão, Pedro e Emílio, voltados de frente para a rua, de prontidão para o serviço e de costas para a fachada do número 419 da Avenida São João, retratam o incômodo causado - seja pelos moradores de rua que dormem na marquise, pelos pichadores que se reúnem por ali durante a noite ou pela falta de ação por parte da prefeitura.

O Cine-Art Palácio já foi um cinema para maiores de 18 anos. Hoje, a entrada onde corriam os pés de seus espectadores é bloqueada por grades de ferros que impossibilitam qualquer tipo de invasão, a não ser a de pequenos roedores. Acima dele, um hotel maltratado abriga algumas pessoas. Já assim há mais de 7 anos, ainda tem as paredes pichadas principalmente nas noites de quintas-feiras. À frente, moradores de rua dormem em uma paz externa que pode ser tão conturbada quanto a interna. “É isso aí que vocês estão vendo”, continua Zezinho, com tom de voz que deixa escapar a asquerosidade que sente.

Parece que é a sina dos grandes cinemas antigos e tradicionais: a decadência conjunta à do centro paulistano. Pichações, janelas quebradas, portas improvisadas e outras escoriações que representam um destino de muitas famílias que ali se abrigam. A poucos metros do primeiro cinema relatado, está também o Cine Marrocos, com o que restou de sua grandeza e luxuosidade do início da década de 50. Sediou em seus tempos áureos o festival de cinema internacional e hoje é sede de uma ocupação coordenada pelo MSTS.

Nos arredores, guardadores de carro advertem sobre a periculosidade do local e dos indivíduos que ali habitam, baseados talvez nas recentes ações da polícia, que apreendeu drogas e alguns objetos considerados armas brancas, mas também resultou na inutilização do único elevador que continuava operando. Um manobrista que trabalha no estacionamento em frente ao edifício alertou ainda, assim como os taxistas, sobre a presença de membros do PCC.

Em meio ao frenesi do entra e sai de móveis carregados por funcionários da prefeitura, a reintegração de posse parece mais eminente. Um defensor civil coordena o auxílio de transporte para a mudança dos moradores, mas necessita de um tradutor para se comunicar com uma moradora. Aparentando seus 40 e poucos anos, negra e com um sorriso entre o enigma, a malícia e a vergonha, a moradora que pouco falava português era Maria.

Ela, como ocupante do prédio Marrocos, estava sendo desalojada. Para Maria, o sorriso não cai do rosto. Sua mudança seria no dia seguinte, logo pela manhã, e ela precisava trazer seus pertences dos andares mais elevados aos caminhões. Precisava de nossa ajuda, para que traduzíssemos o que ela falava. Seu repertório abrangia o inglês e o dialeto de seu país, mas poucas palavras do português. Seis meses desde que chegou ao edifício Marrocos, a Libéria parece ainda mais longe. O motivo de sua vinda está tomada por certo constrangimento, mas evoca agora a sua vontade de voltar à terra natal.

Maria é a única que nos enxerga como jornalistas. Talvez por isso tenha a necessidade de escorrer informações. Os primeiros meses naquele prédio desconhecido eram diferentes e custosos, de uma quantia mensal de R$200,00. Pôde dividir seu abrigo em Marrocos com diversas outras nacionalidades, misturando o francês com cores latinas e costumes de outras idades. Uma pena. Esses laços característicos se desfazem no dia 17; e ironia ou não, para dar sede à nova Secretaria Municipal da Educação. Apesar de desativado, o cinema continua reproduzindo várias histórias.