Modo de vida Guarani: Uma vivência na Aldeia Rio Silveiras (Ana Carolina Renz Peterson, Beatriz Ferreira Luna, Beatriz Takako Silva Sato, Isadora Pereira Silva de Andrade e Laura Paiva de Siqueira)
1. Introdução
O presente trabalho visa apresentar, por meio de uma vivência na Aldeia Rio Silveiras, um retrato do modo de vida do povo Guarani Mbya. O projeto direcionou-se compreendendo que essas comunidades têm sido vistas como o Outro. Isso se concretiza por vários autores e perspectivas sociais. Em especial, tomou-se o pensamento de Boaventura de Souza Santos (2007); procurando-se manter atento para evitar um olhar julgador e preconceituoso.
Santos (2007) caracteriza o pensamento moderno ocidental como um pensamento abissal. Também considera que essa corrente é constituída por um sistema de distinções visíveis e invisíveis, no qual a realidade social é dividida através de linhas radicais em dois universos: o universo “deste lado da linha” e o universo “do outro lado da linha”. O lado de cá da linha pode ser definido como o Norte imperial, colonial e neocolonial; e o outro lado da linha, o Sul colonizado, silenciado e oprimido. Ao transpor essa visão das linhas abissais para o campo do conhecimento, o lado de cá seria dos conhecimentos ocidentais, como a ciência moderna, que são valorizados. Enquanto isso, o outro lado da linha se constitui pelos conhecimentos tradicionais que não apresentam confiabilidade. Nesse tipo de pensamento abissal, não há a impossibilidade da copresença dos dois lados da linha. Desta forma, segundo o autor, tudo o que for “do outro lado da linha” é considerado como sendo o Outro e torna-se inexistente.
A inexistência de tudo que é considerado vindo do outro lado traz para a sociedade contemporânea a dificuldade de aceitação das diferenças culturais. Além disso, junto com o sistema econômico atual que, nessa era da globalização, impõem outras formas de ser nos seus discursos dominantes. Esse projeto de poder, segundo Luis Macas (2005), acaba por destruir as diferenças existentes, homogeneizando-as em um mesmo comportamento. Dessa forma, a decomposição das comunidades e dos povos indígenas está cada vez mais crítica e um dos valores fundamentais desses povos, a identidade, está em perigo.
2. Contexto
A vivência na Aldeia Rio Silveiras ocorreu entre os dias 7 e 9 de junho, na Terra Indígena Ribeirão Silveira, e reuniu os alunos da disciplina Sociedades, Multiculturalismo e Direitos como uma proposta de imersão cultural. Nestes três dias de vivência o grupo imergiu, na medida do possível, na cultura do povo Guarani Mbya que vive na aldeia em questão. Ao adentrar a aldeia nota-se que recursos tecnológicos estão presentes - tais como iluminação, eletricidade, televisão e smartphone - , mas que estes não são essenciais para o modo de vida daquele povo. Além disso, apesar da forte influência juruá em todo o entorno da aldeia, os indígenas que ali vivem ainda mantêm fortemente as tradições de seus antepassados e o modo de vida guarani. No centro do núcleo no qual foi montado o acampamento encontra-se uma tenda na qual são vendidos artesanatos, uma cozinha, a casa de rezas e outras três construções.
Já no primeiro dia de vivência, pôde-se adentrar a casa de rezas, um local extremamente sagrado, e participar do ritual espiritual. Nesse momento notou-se a relação dos adultos com as crianças, que corriam e falavam alto dentro da casa de reza sem serem repreendidas, sendo à elas permitido agir como crianças sem que isso fosse considerado desrespeitoso como seria na sociedade ocidental.O Pajé é quem ministra o ritual, mas todos os membros que ali se encontram participam ativamente das canções e danças, alguns homens também participam tocando os chocalhos que ficam pendurados no centro da casa. A ocupação do espaço é dividida, as mulheres ficam à direita da casa enquanto os homens permanecem à esquerda. Uma fogueira fica acesa durante todo o ritual; Marinho, morador da Aldeia, em conversa com os alunos da disciplina revelou que a fogueira é para “testar a resistência” daqueles que se encontram dentro do local.
Em uma das paredes da casa sagrada fica pendurado o cocar do Pajé (isso quando não está ocorrendo a cerimônia), cocares de antigos Pajés, algumas imagens e há também uma espécie de “altar”.
No jantar do primeiro dia de vivência foi servido o Tipa, um pão típico da cultura Guarani que antigamente era feito com farinha de milho, água e sal e era assado, mas hoje em dia ele é produzido com farinha de trigo e é frito.
No segundo dia de vivência, durante o café da manhã, houve a oportunidade de interagir com um porco-do-mato dócil que, segundo alguns dos indígenas, costumava aparecer por ali mesmo e já estava acostumado com a presença humana. Além do porco que, pelo que tudo indica, não era de estimação, havia muitos cachorros e uma Cutia que eram criados por famílias, mas corriam livres pela aldeia. Também durante o período da manhã houve uma roda de conversa com Marinho na qual foram esclarecidas diversas dúvidas; Marinho relatou que o nome juruá dos indígenas é escolhido por eles e que o nome em guarani é escolhido por Nhanderu e proclamado pelo Pajé durante a cerimônia de batizado da criança. Além disso, contou também que um indígena, ao se casar com um não-indígena, deve deixar a sua aldeia, mas que indígenas de diferentes tribos e aldeias podem casar e escolher onde querem viver. Disse também que as tarefas na aldeia não são divididas por sexo, se um homem quiser cozinhar e cuidar de casa ele pode, assim como a mulher pode cuidar da agricultura e caçar se quiser.
No período da noite, os estudantes que estavam na vivência puderam participar e observar, novamente, o ritual espiritual na casa de rezas e, desta vez, os presentes puderam falar e relatar o que estavam sentindo acerca da experiência.
No terceiro e último dia de vivência os alunos tiveram a experiência de auxiliar o Pajé no plantio de árvores frutíferas nativas da Mata Atlântica em um local imerso na floresta onde ele pretende reconstruir uma antiga aldeia que ali existia.
Durante o plantio, o Pajé contou a todos sua história e de seus antepassados. Também relatou o motivo pelo qual quer reconstruir uma aldeia naquele local (o mesmo que habitou quando criança). “Sai daqui, eu tinha 10, 12 anos, por aí, quando a gente fizemo a retomada para a terra que estamos lá. Antigamente índio já ia pra lá caçar e pescar. [...] Depois disso eu tava pensando em fazer outra aldeia, como levei vocês lá na cachoeira, eu limpei lá, a gente fomo lá, plantamo algumas coisas ainda tá lá (na aldeia central). Depois disso eu vim pra casa de reza, rezei muito pra saber se Nhanderu quer que eu esteja lá, mas aí eu sonhei com meu avô (nome não audível), sonhei com ele dizendo pra mim voltar pra cá, limpar tudo no lugar que ele viveu, porque o espírito dele tá aqui nesse momento, de lá eu vim pra cá com a minha família e alguns Xondaro” (Werá Poti, Pajé da aldeia Rio Silveiras, 2019)
Após o plantio o grupo se dirigiu à cachoeira citada pelo Pajé, depois, teve a oportunidade de ouvir o cacique de um dos Núcleos da aldeia falar sobre as lutas indígenas pelos seus direitos, sobretudo a luta pelo seu território, e sua importância na preservação das matas. Posteriormente voltou ao Núcleo no qual estava acampado para desmontar o acampamento e retornar a São Paulo.
3. Conclusão
O objetivo da vivência na aldeia Rio Silveiras era proporcionar aos alunos uma imersão cultural, observando ativamente o modo de vida Guarani, vendo a forma como se organiza e vive esse povo. E, a partir disto, compreender e refletir acerca da cultura indígena. A partir desta experiência pôde-se entender melhor a relação desses povos com suas tradições, constatando-se que há um esforço ativo em mantê-las, principalmente a língua guarani e as tradições religiosas. Apesar disso, muito da cultura ocidental foi assimilada em aspectos como a arquitetura de algumas construções da aldeia, a vestimenta e os hábitos alimentares, fato que eles deixam bem claro que não os faz menos indígenas. Também foi constatado a importância das florestas para esse povo e como eles se empenham em protegê-la, pois existe a consciência de que é dela que se tiram os meios para conservação da vida como a água, os alimentos e ar puros. Partindo dessa percepção sobre as florestas, a luta pelo território e pela demarcação se torna ainda mais importante pois, além de ser um meio material para a perpetuação da cultura, a garantia do território aos indígenas é também uma forma de se preservar as florestas.A religiosidade para eles possui papel fundamental, o próprio pajé mencionou o fato dos guaranis serem um povo religioso. Os encontros na casa de reza são diários, apesar de não serem obrigatórios.Durante esses encontros são tomadas decisões importantes, como a mudança de localidade dos núcleos da aldeia, a partir da reza e também levando em consideração as revelações que são feitas através dos sonhos. A aldeia está prosperando, crescendo em número de pessoas e melhorando sua estrutura, além disso, o Pajé pretende retomar costumes antigos, de sua época de criança, que foram desaparecendo, com o intuito de passá-los para as próximas gerações.
- ↑ Referência Bibliográfica SANTOS, Boaventura de Souza. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, 78, out., 2007, p. 3-46.
- ↑ MACAS, Luis. La necesidad política de una reconstrucción epistémica de los saberes. In: DÁVALOS, Pablo. Pueblos indígenas, estado y democracia. Buenos Aires: CLACSO, 2005.