Temperaturas Paulistanas/Planejamento/Brasilândia/Turma B/Reportagem

Fonte: Wikiversidade

Ser mulher na Brasilândia: aborto, feminismo e religião[editar | editar código-fonte]

Dona Joana, moradora da Brasilândia há mais de 40 anos.

Sempre nos ensinaram que as cores do Brasil são verde, amarelo, azul e branco. Mostram-se presentes em espaços repletos de flores, folhas, árvores, mato. Mas na Brasilândia, distrito da zona norte de São Paulo, o verde preenchia outra coisa, e era falante a tal da papagaia. Interrompia um a cada três dizeres de Dona Joana, uma senhora de 72 anos que, com um jeito delicado e maternal, respondia tranquilamente: “Calma, meu amor, elas não estão fazendo nada com a mamãe, elas só estão conversando, Tita”. A genuinidade de sua fala surtia efeito imediato no animal, que deixava de fazer barulhos e se entretinha com as sementes de girassol postas em seu viveiro, além de refletir, também, a simplicidade da região. Região na qual a maior parte da população é composta por mulheres. Mulheres as quais têm fortes crenças, anseios, desejos, e suas trajetórias são repletas de histórias para contar. Histórias que gostam de compartilhar e ficaram felizes em nos entreter com elas. Receberam-nos com um sorriso no rosto e partilharam conosco detalhes que consideram ser importantes em suas vidas. Ali, não nos encaravam como meras estudantes, mas mulheres. Mulheres que tinham interesse em suas histórias.

Dona Joana foi um acaso. Escondida por detrás de mesas, balcões, gaiolas, sofás e enfeites, a senhora franzínea e de poucas palavras, porém objetivas, montava peças automotivas. E se o acaso nos levou à senhora, entendemos a razão desse encontro assim que adentramos seu aposento. A trajetória da paulista reproduz a de outras entrevistadas, nasceu no interior da metrópole e mudou-se ansiando uma vida com maior qualidade e dignidade. Ironicamente, quem descontrai o clima da sala é a papagaia. Ao ser questionada se morava com parentes, a senhora replicou que sim: "Moro com a Tita!". Entre berros, gritos e perseguições do animal a nós, a testa enrugada de Joana se transfere para curvas de uma risada. Esse comportamento fez a companheira da moradora se aconchegar em seu colo. Não apenas a filha encontrou o conforto no ombro de sua mãe, mas esta relaxou. Seus olhos focados no trabalho, agora, pareciam distantes, tanto quanto as memórias do início da sua história na Brasilândia. Sem se prolongar, ela apenas respira fundo: "Era só barro, barro, barro... Mas nós éramos felizes e não sabíamos. Era tão bom!". No entanto, conforme adquiriu experiência, compreendeu que nem todo ato de bondade é inocente e espontâneo. Quarenta e tarará anos depois de chegar à Brasilândia, Dona Joana sabe distinguir bem o interesse oportuno do interesse genuíno: “Não vou citar nomes nem nada. Mas conheço uma pessoa que passa por mim 24 horas por dia. Não me conhece, mas chega a época da eleição e a pessoa diz ‘Oi, como vai? Você lembra de mim?’ 'Lembro, sim. Da outra eleição'. Não tenho medo, falo mesmo”. Expondo, assim, um cenário de descaso com as moradoras. Para ela, não há diferença entre homens e mulheres na política, pois "A mulher pode entrar, mas lá dentro não fará nada, vai jogar o jogo deles. É preciso dançar conforme a música. É a mesma coisa que carnaval". Por fim, resume a banalização das atividades políticas com a seguinte analogia: "É político Copa do Mundo, só aparece de 4 em 4 anos".

Brasilândia: um distrito considerado distante e perigoso pela mídia, mas formado por um clima acolhedor e amigável.

Maria Lucena, com um metro e cinquenta e três de altura, lembra a icônica Dona Benta de Sítio do Picapau Amarelo. O cabelo integralmente branco envolto em um coque ressalta os olhos brilhantes e profundos, sempre atentos a cada movimento nosso. Ri muito, ri de tudo, ri até quando menciona "uns três filhos meus morreram". Toda a vivência de seus setenta e sete anos de idade, quarenta deles passados na Brasilândia, é refletida na seguinte frase: "As coisas velhas se passaram. Vai viver no passado? Você precisa viver no novo". Ela já superou muitas dores ao longo de sua vida, por meio dessa visão otimista e da Igreja, como a doença que levou seus filhos, ainda pequenos, à morte. Lucena reproduz a voz de Deus para se referir a tudo, confessando ser extremamente religiosa. Quando questionada sobre feminismo, homossexualidade e a participação da mulher na política, a resposta da entrevistada expõe os preceitos da Bíblia: “Não concordo com nada disso porque é assim que a palavra de Deus fala: o homem é a cabeça da mulher. Então como a mulher pode querer ser mais do que ele?".

A visão das entrevistadas e a maneira como enxergam a vida está diretamente relacionada com a fé que possuem, algo perceptível em boa parte das respostas, principalmente no que diz respeito às questões mais polêmicas, como a legalização do aborto. A Igreja representa um grande mantenedor do status quo e do pensamento mais conservador, a partir de um sistema de fidelidade e comprometimento religioso, ligado à moral que rege os fiéis. Cícera, uma senhora de 83 anos que é espírita, também se considera muito religiosa e não acredita que o aborto deva ser legalizado, exceto em casos extremos, como o de fetos acéfalos, pois "Deus não aprovaria isso".

O conhecimento sobre questões do universo feminino, diante das respostas que obtivemos, mostra-se escasso. Embora a maior parcela da população seja composta por mulheres, somando 203.622 moradoras, contrastando com um total de 264.918 residentes do bairro, segundo dados da prefeitura de São Paulo em 2004, grande parte delas confunde ser feminista com ser lésbica ou transexual. Maria Lucena, por exemplo, mostra-se assim ao ser questionada se apoia o movimento feminista: “Você está me perguntando se sexo é homem com mulher ou sobre mulher que quer ser homem? Eu não estou entendendo.”.

Ao andar pelas ruas, em um lugar afastado do centro e considerado perigoso pela mídia, o jeito simpático e amigável da população é o que mais se destaca, sendo impossível não ser imediatamente cativado. Cláudia, estudante de Jornalismo de 23 anos, que morou na Brasilândia praticamente a vida inteira, demonstra afeição ao falar desse aspecto do local. Para ela, a melhor parte de habitar essa região são as pessoas, as quais nunca negam um bom dia e sempre estão dispostas a ajudar os vizinhos. Conversando com a jovem, sua aparência angelical chama atenção: As franjas que caem na altura dos olhos e os lábios marcados por um forte batom vermelho contrastam com sua aparência juvenil. Sua infância não foi das mais convencionais. Alfabetizada em casa juntos ás duas irmãs, que diferem nas idades em um ano entre si, Cláudia, a do meio, não teve outras amizades nessa idade além das fraternais. O contato com outras crianças era escasso pois o pai, de tão conservador, chegava a ser arcaico, palavras da própria garota, e não deixava que as meninas saíssem de casa. Logo, a relação entre as três irmãs sempre foi muito próxima e, até os dias de hoje, compartilham roupas, vivências e carinhos.

Muito falante, conta como o movimento feminista tem grande impacto em sua vida. Talvez até pelo fato de pertencer a uma geração diferente das colegas de bairro com mais idade, tem acesso a outros tipos de informação e acaba engajando-se mais em atividades de cunho militante. Ao tentar definir o feminismo, afirma diversas vezes que esse é fundamental: “É uma ideologia que prega a igualdade de gêneros. No momento político atual, as redes sociais são ainda mais importantes para chegar até diversas mulheres. Ele [o feminismo] é essencial, pois uma vez que estamos conquistando nossos direitos, queremos cada vez mais”. Muitas questões machistas a incomodam, como a pouca participação das mulheres na política: “Infelizmente, poucas mulheres votam em mulheres, são mais as que têm um conhecimento, como jovens universitárias. As mais velhas ainda têm um pouco de preconceito com suas iguais no poder. ”. Além disso, a criminalização do aborto a preocupa muito, pois “esse é um caso de saúde pública. As mulheres já abortam, mas hoje elas fazem isso com falta de segurança total – abortando em açougueiros, principalmente, as mulheres da periferia. Precisamos ajudá-las, criar políticas públicas e evitar que continuem morrendo”. Ela acredita que precisa haver uma enorme desconstrução em relação ao assunto, principalmente no que diz respeito à comunidade religiosa, que usa da Igreja como desculpa para fechar olhos diante da situação.

A falta de informação e conhecimento de outras personagens, não apenas no que diz respeito ao movimento feminista, pode retratar um grande problema da região: a dificuldade de acesso à cultura. Cláudia reclama, e muito, sobre os obstáculos para se locomover a um teatro, museu ou cinema. Caso fosse prefeita, afirma que sua primeira medida seria reverter essa situação na Brasilândia e em outros lugares periféricos, com a criação de casas de cultura com eventos gratuitos, para que o povo pudesse ter acesso a música, arte e cinema. Além disso, também criaria centros de computação para que as pessoas aprendessem a trabalhar com a internet e a tecnologia. Ou seja, programas que atendam tanto a parte profissional, quanto estrutural e cultural. A futura jornalista é apenas mais uma jovem da Brasilândia com grandes anseios. Trabalha duro e sofre com as condições de transporte e segurança da região. Inúmeras vezes teve que passar a madrugada no ponto de ônibus, pois não existem frotas noturnas nos bairros mais afastados do centro. Sem iluminação decente ou policiamento, cada pessoa que passa perto dela nesses momentos já faz com que seu coração dispare de medo. Com apenas 23 anos seu coração deveria disparar por conta de amores, paixões, adrenalina... não por um descaso do governo.

A Brasilândia é muito querida pelas entrevistadas, uma vez que, segundo as mulheres, as acolheu em São Paulo. Joana, uma das entrevistadas que vive na região há mais tempo, explica: "O que eu mais gosto são as pessoas, o local, o bairro mesmo. Tem um clima de comunidade.". Cada ruga no rosto de uma senhora ou cada covinha no sorriso de uma jovem marcam o trajeto percorrido por elas em seus anos de vivência no distrito, do qual, hoje, elas fazem parte. Suas histórias são permeadas de vivências boas, ruins, sofridas, mas principalmente de muita, muita alegria de viver. São tantas Cláudias, Joanas, Marias, Cíceras... tantas mulheres com grandes sonhos e histórias, que merecem apenas receber a devida atenção a elas e ao lugar onde moram.

Reportagem sobre a Brasilândia em áudio

Reportagem Brasilândia 2JOB