Wikinativa/Amanda Evangelista Lopes dos Santos (vivencia Guarani 2016 - relato de experiência)

Fonte: Wikiversidade

Antes de relatar a experiência em si na Reserva indígena Guarani Rio Silveiras, em Bertioga, é necessário dizer quais eram minhas expectativas antes da vivência e como se deu o processo de preparação para a mesma.

Com o propósito de “aprofundar os ensinamentos e conteúdos oferecidos na disciplina SMD, através da aquisição prática de conhecimentos adquiridos através de uma imersão na cultura do povo originário Guarani” as aulas da disciplina ACH3707 - Seminários de Políticas Públicas Setoriais 2 - Multiculturalismo e Direitos, ministradas pelo professor Jorge Machado na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, que ocorreram durante o 2º semestre de 2016 e que antecederam a viagem, eram compostas basicamente de discussões a partir da leitura prévia de textos e na execução de vídeos, onde os alunos eram livres para expor suas percepções e fazer indagações. Os assuntos abordados faziam sempre referência ao cotidiano, costumes, história, problemas e lutas dos diversos povos indígenas, com um enfoque na etnia da tribo dos guarani.

Essa base teórica composta pelos aspectos sociais mais expressivos foi necessária e de extrema importância para que os alunos compreendessem a complexidade e peculiaridades desses povos. Além do mais, visto que a disciplina era uma optativa livre da USP, a pluralidade de cursos dos alunos participantes foi essencial para enriquecer as discussões, que iam desde abordagens de preservação do meio ambiente, influência do capitalismo e da globalização até preocupações com a saúde e papel das mulheres, homens, idosos e crianças na comunidade. Durante as aulas alguns do grupo que já haviam feito a vivência ainda relataram suas experiências, o que somou muito àqueles que nunca tinham ido.

A partir disso, pudemos criar uma imagem ainda mais tangível de como poderia ser a vivência, bem como nos planejar, aprimorar e complementar com novas ideias as atividades que já haviam sido executadas na experiência anterior. A medida que as ideias iam surgindo a cada aula, a expectativa e o desejo de conhecer o povo Guarani crescia. Havia sempre a preocupação de como a vivência poderia ser agregadora tanto para nós quanto para eles, sem imposição de nossa cultura, pois a proposta era exatamente fazer uma imersão na cultura deles. Sendo assim, criamos grupos que seriam responsáveis para propor e executar diversas atividades na reserva durante os dias 28, 29, 30 e 31 de outubro de 2016, tais como: Agroecologia e Bioconstrução; Arte; Brincadeiras e Gincanas; Cultura e História Guarani; Compreender a Mulher Indígena; Esportes e Lazer; Intervenções Culturais e Infraestrutura. Por afinidade ao tema, cada aluno se uniu a um ou mais grupos, sendo que eu compus o grupo das Artes.

Chegado o dia 28, iniciamos a viagem partindo da USP Leste até a reserva, que foi acompanhada de muita música e animação. Ao desembarcarmos do ônibus, fizemos o primeiro contato com alguns indígenas que aguardavam por nós e iam nos guiando e ajudando a montar o acampamento dentro mesmo da reserva. Foi nesse primeiro momento que comecei a perceber o sentimento de cooperação e receptividade da comunidade.

Montadas as barracas e deslocados todos os alimentos doados por nós até a cozinha deles, fizemos uma roda de conversa com alguns indígenas ali presentes, e ali o cacique (uma espécie de líder político) e o pajé (uma espécie de líder religioso) nos deram as boas-vindas, explicaram e mostraram como era a aldeia e o que faríamos ou poderíamos fazer durante nossa visita.

Após isso, ficamos a vontade, alguns já iam interagindo e fazendo amizades, outros já iniciavam as atividades pré-estabelecidas de seus grupos, como as brincadeiras, partidas de futebol e pinturas nas crianças, e outros ficavam a observar, explorar, fotografar e filmar o local. Era um ambiente novo e totalmente diferente do que eu já havia conhecido, eu queria fazer tudo ao mesmo tempo e aproveitar todos os momentos. Certas horas eu procurava interagir com os indígenas, conhecer um pouco da língua Guarani, brincar com as crianças e observar o local e seus costumes, e em outros momentos interagia com meus colegas de viagem, os quais, muitos deles, tornaram-se hoje meus amigos.

A noite, após todos comerem, um ritual de purificação foi realizado ao ar livre em um de nossos colegas. Esse ritual foi uma das coisas mais bonitas que vi. A força espiritual que o pajé canalizava, os meninos cantando e fazendo a dança dos guerreiros em volta dele, os sons dos instrumentos e a concentração de todos ao redor era fascinante. Ao anoitecer fomos todos novamente à casa de reza, mas dessa vez foi diferente da primeira, não faríamos uma roda de conversa, o momento foi para fazer um ritual de purificação com 5 membros previamente estabelecidos do nosso grupo. Mesmo não tendo participado diretamente do ritual, senti uma energia muito forte no ambiente.

No dia seguinte acordamos cedo, tomamos café e logo em seguida fomos trilhar a mata para conhecer e aprender mais sobre o local guiados pelo pajé e por alguns índios crianças e adolescentes. Nos divertimos muito, caminhamos pelas pedras, nadamos no rio. Após horas longe da aldeia, voltamos por volta das 16h da tarde para almoçar e ficamos por lá, conduzindo e participando das atividades.

Os cantos, letras sagradas e danças eram sempre em agradecimento à Nhanderú (Deus). Eles acreditam que o som sai da alma, consegue alcançar os céus e, assim, Deus responde todos os pedidos e agradecimentos.

Fiquei fascinada com os objetos de artesanatos que eles faziam (tanto que comprei dois brincos de penas e um colar), aprendi a atirar com arco e flecha, que por sinal é bem difícil e precisa de técnica e treino, e, quando eu estava já mais íntima da tribo, aprendi a técnica de pintura que eles usam para fazer no corpo, me arrisquei a fazer uns traços em mim mesma e, a pedido do índio Awa Mirinaju Mibi (Lenilson), fiz uma pintura em seu rosto. Cada pintura tem um significado diferente. Fizeram 5 pinturas pelo meu corpo, em minha perna esquerda fizeram uma com o significado de “Deus ilumine o seu caminho”, na perna direita remetia a um desenho de cobra, no braço esquerdo o significado era de cura, no braço direito era contra o mau olhado e no rosto recebi a pintura usada por guerreiras. A tinta é feita da fruta genipapo e carvão, e dura em média 2 semanas.

Dos índios, interagi mais com a Liviane (Ana Rete), o Lenilson (Awa Mirinaju Mibi), o Caio e o Denis (Karay Mirin), ambos adolescentes, brinquei bastante com as crianças, ajudei algumas mulheres que estavam responsáveis para fazer o almoço e a janta, e também conversei muito com o pajé, que me deu muitos ensinamentos.

A comida considerada simples para nós era o suficiente para eles, e vimos que não precisamos mais que isso para sobreviver e viver bem. Comíamos basicamente arroz, feijão, macarrão, quipá (uma espécie de pão que pode ser frito ou assado), verduras, legumes, frutas, peixe pescado na hora, além de café, pão e algumas coisas mais industrializadas como linguiça, margarina, bolacha e suco. Na maioria das vezes sentávamos no chão e comíamos em pratos que nós mesmos havíamos levado.

Todos os dias tomei banho no rio e sem produtos químicos que pudessem agredir a natureza, isso me permitiu senti-la, me trouxe uma sensação de limpeza maior que seu estivesse tomando banho de chuveiro cercada de produtos. Me trouxe também a reflexão de que é mais do que responsabilidade minha conservar esse ambiente se eu quiser sentir ou quiser que outros sintam esse mesmo bem-estar.

Por eles terem uma proximidade muito grande com a natureza, a relação que eles estabelecem com ela é de respeito. Procuram sempre preservá-la e conservá-la. Suas ações também são conduzidas por ela. Estão sempre a olhar o céu, o Sol e as estrelas. Sentem o ambiente e respondem a ele, e só agem se o mesmo estiver favorável, como, por exemplo, param tudo que estão fazendo e permanecem em silêncio quando ouvem os trovões, pois acreditam que este é um sinal dado por Tupã - que controla o clima, o tempo e os ventos - de que algo negativo possa vir a acontecer.

Algo que notei, e muitos colegas também alegaram, foi a percepção do tempo. Sentíamos que ele se “esticava”, parecia que o dia tinha mais horas que o normal, tanto que ao final da vivência parecia ter se passado uma semana, e não apenas 4 dias. Acredito que seja por estarmos fazendo muitas coisas novas sem um cansaço mental grande, no sentido de desgaste com estresse de coisas corriqueiras como trânsito, provas, trabalhos, responsabilidades a serem cumpridas, entre outras. E, apesar de dormir sempre tarde, mais que meia noite, acordava bem cedo, por volta das 6h30 e 7h da manhã, e não sentia cansaço físico algum mesmo fazendo longas caminhadas durante o dia.

Diversos podem ter sido os fatores para eu ter tido uma experiência tão feliz, mas o que eu tenho certeza é que foi por estar distante de preocupações do dia-a-dia, estar imersa na natureza, longe do bombardeamento de informações das tecnologias, passando por uma experiência nova agradável com pessoas na mesma sintonia que a minha e com o mesmo propósito que o meu, por cantar, dançar, parar um pouco o ritmo acelerado que vivo na cidade, sentar, conversar e refletir sobre a vida, e orar pedindo e agradecendo todos os dias à Nhanderú.

Além de conhecer uma cultura totalmente diferente da minha e viver sob as mesmas condições e perspectivas que os indígenas, criei amizades e uma empatia muito grande com a causa deles. Foi enriquecedor. Senti na pele as dificuldades que esse povo passa, o descaso do Estado com muitas questões e demandas suas. Eles são verdadeiros guerreiros que lutam e resistem para manter suas tradições e se preservar. Hoje sinto que a luta contra a PEC 215 e tantas outras, de fazer com que a cultura deles permaneça viva, é minha também. Me sinto co-responsável em ajudá-los e energeticamente ligada a esse povo pelo sentimento de gratidão por terem nos acolhido tão bem e terem doado suas melhores energias.

No geral, vi uma realidade com valores que admiro e almejo. Um ambiente sem estresse, sem mendigos, sem prisões, sem tanto consumo de fast food e lixos químicos na alimentação, sem dívida externa, sem dívida pública, sem contaminação ambiental, sem pobreza, sem bombas. O significado de riqueza para eles é diferente do nosso, o que eles tem de maior valor são sua cultura e suas matas. Diante dessa visão, essa jornada me permitiu enxergar que existem diferentes formas de se viver e de enxergar a vida, de valorizar as coisas, e que nem todas as minhas atuais prioridades são as mesmas que trarão felicidade ao meu espírito. Se eu quiser ficar bem, outros também precisam ficar, portanto, minha vida não deve ser voltada para apenas eu conseguir bem-estar, mas para todos terem, sejam estes companheiros atuais ou futuros que eu nem irei conhecer. O forte sentimento de comunidade me contagiou.

A mensagem final que mais ecoou dessa experiência foi que para começar a entender outras culturas é necessário fazer uma jornada dentro de nós mesmos, de quebra de preconceitos, no sentido de estarmos abertos, sem pré-julgamentos, para viver sob as mesmas condições que o grupo no qual se está inserido para, só posteriormente, tentar compreender a visão de mundo dele.

E eu, como futura gestora ambiental, vou carregar essa experiência em meu coração para sempre me lembrar das demandas desse povo e de tantos outros, da  necessidade de boas condições de vida e direitos e dependência deles com a natureza. Ela é seu lar e seu meio de subsistência. Um meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito de todos e manter a memória e uma cultura local viva é essencial para criar o sentimento de preservação.