Introdução ao Jornalismo Científico/Temas Centrais da Ciência Contemporânea/Ciência aberta e REAs/script
Quase duas décadas após o início do século XXI, inúmeras são das iniciativas que lidam com o que se convencionou chamar de “ciência aberta”, tema que envolve questões como acesso aberto, compartilhamento de dados e protocolos científicos. No ano de 2017, destacam se jornais de acesso aberto como o BioMed Central e o Public Library of Science (PLoS), além de bancos de dados abertos como o GenBank, o Protein Data Bank e o Global Biodiversity Information Facility, por exemplo. Diante desse crescimento de um debate mais amplo sobre o conhecimento aberto e suas questões correlatas de licenciamento e direitos autorais, o tema “ciência aberta” pode receber no entanto leituras superficiais e reducionistas, uma vez que é possível pensar se tratar apenas da prática científica na qual os resultados são publicados numa licença livre ou, menos ainda, meramente publicadas num repositório de acesso aberto. Mais do que isso, a “ciência aberta” é um conceito abrangente cuja prática depende de que tanto as ferramentas quanto os dados utilizados pelos cientistas sejam disponibilizados publicamente, a fim de ampliar de modo concreto seus benefícios à sociedade. Mas que benefícios seriam esses? De maneira geral, quando há um maior nível de compartilhamento de ideias e abertura do conhecimento, o avanço da ciência é mais rápido e as sociedades tornam-se mais avançadas, ricas e democráticas. Essa é uma percepção cativante que é corroborada por um universo cada vez mais amplo de cientistas, o que pode ser percebido não apenas pelo aumento no número de iniciativas ligadas ao universo da ciência aberta, mas também a estudos específicos sobre o tema. Contudo, embora a ciência aberta tenha avançado sensivelmente em tempos recentes, ainda há certa resistência e receios a essa ideia em determinados contextos. Antes de tentar entender tais resistências e receios, entretanto, cabe definir de modo mais detalhado os requisitos necessários para que se possa considerar que um estudo possa ser considerado “ciência aberta”.
Primeiramente, algo a ser observado é se os resultados científicos estão divulgados em veículos de “acesso aberto” (open access), para que qualquer pessoa tenha acesso a essas descobertas, independentemente de sua situação financeira. No Brasil, de acordo com Abel Packer, então presidente da Scientific Electronic Library Online (SciELO), o movimento pelo acesso aberto ao conhecimento científico sempre teria contado com o engajamento de bibliotecas e bibliotecários, principalmente no contexto de uma espécie de reação ao custo de acesso das revistas científicas; muito embora ele ainda reconheça a falta de apoio de autoridades políticas federais ao acesso aberto. O acesso aberto não deve ser confundido, contudo, com um estudo publicado sob licença aberta. É possível, portanto, que resultados não licenciados de forma aberta estejam divulgados em revistas de acesso aberto, muito embora a publicação de um estudo em licença restritiva — não aberta — seja uma violação à prática de uma ciência aberta plena.
Contudo, a ciência aberta preconiza práticas específicas em diversos momentos distintos da produção do conhecimento científico e, assim, uma segunda característica importante a ser considerada é a de que as ferramentas utilizadas no processo científico devem foram compartilhadas abertamente. Sabemos que parte significativa da ciência hoje depende de ferramentas computacionais, e para esses casos é relevante que a pesquisa seja baseada mormente em “software livre”, ou seja, programas de computador que usam licenças livres e que permitiriam mais uma vez que um número máximo de pessoa tenha acesso a eles, independentemente de sua situação financeira. Cabe notar, contudo, que software livre não implica necessariamente um software gratuito, ou que seja uma garantia de acesso pleno aos recursos por ele oferecidos. Embora uma isonomia plena seja um objetivo talvez inalcançável, o uso não apenas de software livre, mas também de hardware livre tendem a permitir que as pessoas adaptem ou até mesmo construam seus próprios equipamentos e possam fazer ciência em lugares onde antes ela não era acessível. Trata se de uma forma de levar as ferramentas de produção científica mesmo aos locais mais improváveis e permitir aos cidadãos “fazer ciência” mesmo em regiões onde o desenvolvimento técnico científico ainda é incipiente ou mesmo inexistente num primeiro momento.
Uma terceira caraterística a ser observada seria a de que os dados utilizados nas pesquisas devem ser compartilhados como “dados abertos”, e aqui retoma se a importância das licenças abertas, ou seja, licenças que permitam o replicação, adaptação e utilização dos dados para qualquer uso: não só os dados brutos e processados devem ser disponibilizados abertamente, mas também descrições do formato e significado desses dados (chamados metadados) devem ser distribuídas publicamente. A ciência só se torna efetivamente reprodutível se os dados e ferramentas utilizados nos experimentos, simulações e análises também forem disponibilizados de forma aberta e livre. Acerca dessa questão sobre os dados abertos, a conselheira científica da Royal Society do Reino Unido, Jessica Bland, afirmou durante um encontro preparatório organizado pela FAPESP para um Fórum Mundial da Ciência que não bastaria apenas abrir os dados científicos, é preciso ainda “disponibilizá-los de forma que sejam acessíveis, inteligíveis, avaliáveis e reutilizáveis”. Segundo ela, a abertura de dados por si só não teria valor: “somente quando esses quatro critérios forem atendidos pode se considerar que os dados científicos estão devidamente abertos”.
Nesse ponto finalmente é possível se deparar com alguns dos receios que pairam sobre a questão da ciência aberta. Um deles seria a questão dos limites à abertura de dados científicos diante de interesses comerciais legítimos; outro seria o da privacidade e do anonimato dos envolvidos quando os dados coletados vierem de seres humanos. Existe, nesse contexto, certa tensão entre a prática da ciência aberta com os interesses comerciais sobre as pesquisas, o controle do mercado editorial e as leis de direitos autorais. No segundo ponto, por exemplo — o da sensibilidade dos dados de experimentos com seres humanos — um cuidado efetivo em relação à anonimização dos dados antes de serem compartilhados tende a minimizar os questionamentos sobre essa questão. Mas mesmo que não se tratam de dados de animais não humanos, o tema “ciência aberta” ainda pode ser especialmente relevante.
O uso de animais não humanos em experimentos é algo que envolve aspectos éticos, científicos e jurídicos, especialmente se demonstrando que tal prática, embora seja legalmente autorizada pela legislação brasileira, desde que obedecidas algumas regras, tende a se revelar dolorosa ou mesmo letal para os animais que servem como cobaias. Embora a questão do uso desses animais não humanos levante debates acalorados tanto do lado dos defensores dos testes animais quanto de grupos defensores do fim de tais testes, chamados assim de “abolicionistas”, o amplo compartilhamento de dados sobre essas pesquisas tende a diminuir a necessidade de novos testes que a princípio buscariam apenas replicar dados já consagrados na literatura científica. Nesse contexto, uma outra dimensão da prática científica ganha luz, que é a dimensão da ética, que toca tanto a questão da experimentação quanto na questão do licenciamento. A validade do conhecimento científico é algo que não deve ser legitimado apenas de dentro de laboratórios, mas uma vez que é algo que envolve fatores sociais, econômicos, morais, culturais e políticos, seus resultados devem ser debatidos e também legitimados pela sociedade. No caso da questão entre ética e licenciamento dos resultados científicos, o sociólogo e professor da Universidade Federal do ABC Sérgio Amadeu da Silveira afirma que “todas as obras pagas com dinheiro público deveriam ser licenciadas em Creative Commons, com a licença mais permissiva de uso. As revistas acadêmicas e científicas deveriam ser abertas e ter seus artigos em domínio público ou em licenças Creative Commons. O bloqueio ao conhecimento é nefasto para o avanço da Ciência. A fonte da criação cientifica é o acesso livre à produção científica anterior”.