Reportagens do JOA/André Garda, Gustavo Zaraya e Homero Salles
CHURRASCO GREGO X CHURRASCO (PRESENTE) DE GREGO
― Eu torço para que seja carne.
Toda a atmosfera de fascínio estremeceu com a sentença dura do transeunte. O homem de meia idade, vestimenta simples e sorriso desconfiado nos contou sua péssima experiência com o dito cujo.
― Comi quando era criança. Uma vez para nunca mais.
― Qual a razão do trauma? – Insistimos.
― É ruim, sem gosto. Não curto.
Fizemos cara de quem compreendia, atônitos. Nos distanciávamos quando ouvimos ele proferir a última profana acusação:
― E é porco também, né?
Nossos corações poderiam estar iludidos, é verdade, até mesmo indevidamente apaixonados pelo churrasco grego. Não sabíamos exatamente se o que nos atraía era o seu caráter paulistano: misterioso, imprevisível, com lascas de histórias antigas, perdidas até. Com esta aparente má reputação, nosso amor se tornou indevido e o churrasco desaconselhável.
Andando em algum lugar próximo a 24 de maio, no centro de São Paulo, já era possível sentir o perfume da iguaria; o mormaço quente do churrasco nos absorveu com seu peso e azedume. Nos orientamos e vimos uma pequena barraquinha, na qual uma verdadeira torre brilhava, sebosa, sendo esturricada lentamente em uma estrutura de ferro.
Inegavelmente, era carne. O transeunte estava errado. Ponto para o nosso partido.
Passamos por muitas pessoas até chegarmos lá. Era oito da manhã, esperávamos aquele frescor do orvalho, mas não havia romantismo ali: o churrasco envolvia a tudo. Descobrimos que não eram apenas lascas de histórias antigas, mas sim de gorduras antigas, nauseantes, daquelas que provocam a gula voraz. Não havia frescura: era somente o pão, carne, vinagrete.
― Churrasco grego é uma maravilha, eu gosto muito. Não vou enjoar disso aqui, não. Mas vocês vão comprar? – Inquiriu o vendedor.
― Pode fazer um, por favor – arriscou um de nós.
Bastou para o jovem se revelar. Com um sorriso franco, sem luvas, sem qualquer constrangimento, começou a raspar a pira olímpica com trejeitos belos e práticos. Os pedaços desfiados iam caindo, como se feitos de argila brilhante, em uma gavetinha de metal.
Nosso amor gratuito não nos deixava cegos.
― Qual carne você usa?
― Uso fraldinha. A maioria não, usa sobras das carnes, mas eu uso carne boa, bovina, que é justamente pro pessoal não reclamar e não passar mal. Boto numa bacia no dia anterior 15 quilos de carne, vou temperando com sal, cebola, e boto no freezer; aí já vem prontinho assim, empilhado. É só assar, em cinco minutos está pronto.
Um morador de rua, artista e necessitado inveterado, veio gingando por todo o bulevar. Chegou próximo a nós, pediu uma moedinha, deu uma cambalhota, se afastou. Edvan, o vendedor, foi se contraindo e se aproximou ainda mais da estrutura de ferro, da sua obra de arte: a grande torre de carne. Ela precisava ser protegida. Ele não é um vendedor, é um artista também, um artesão que molda a fraldinha de forma sublime para erradicar a fome.
― Trabalho com isso há três semanas e vem gente de todo tipo. Vem gringo americano, argentino, vem brasileiro, vem todo mundo. Adoro isso aqui. – E ensina: ― Churrasco grego na verdade é turco, não é da Grécia. Tem esse nome porque era um grego que vendia, há muito tempo.
Vemos o produto final: pão, vinagrete e carne. Estamos decepcionados; o filho não tem os atrativos da mãe. O pão é pequeno, o vinagrete é opaco e sem vida. A carne se perde de tão pouca. O preço é em conta, pelo menos: dois e cinquenta. Só em dinheiro, sem nota fiscal.
― Trabalha quanto tempo por dia?
― Oito, nove horas. Mas tenho pausas, vou agora mesmo tomar café.
Nos afastamos. Fizemos a prova dos nove: tudo na imaginação é melhor.
― Ei! Não esquece do suco grátis! – e lá fomos escolher com um copo plástico nas mãos as cores amarelo, laranja ou roxo.
Se nossa proposta era degustar o lanche, devíamos nos sentir frustrados. O gosto é sem graça. Tudo é seco e dá para ficar mastigando até cansar o maxilar. Por outro lado, sustenta, se comermos uns três.
Entramos em uma rua paralela, tão movimentada quanto. Eram multidões que passavam, se desviavam de mendigos dormindo no chão, embalados em cobertores típicos, de pedintes cheios de irreverência e abandono, dos trabalhadores oferecendo penteados especiais, venda, conserto e compra de ouro, de quadros pintados e DVDs sobre banquinhas, de inúmeras grandes áreas em obras, interditadas, de carroças, motos e carros que abriam caminho constantemente no fluxo, de fumantes, de jovens e velhos que, sentados, observavam toda a cena. O cheiro da decadência, da urina, do suor, da imundice das ruas, mais do que isso, da miséria implacável do ser humano, provocava uma atmosfera pulsante, recém amanhecida.
Pode ser um tanto curioso, mas era inegável a sensação que aquilo tudo gritava. E gritava a realidade. Não estávamos deslumbrados, não éramos de primeira viagem ali, mas o cheiro sufocante acorda o homem para a luta. Ali, sobre um luxo há muito destruído, os homens caminhavam com força, com automatismos, com intensidade. Como sofrem e não envergam... Dignamente não envergam.
Só o churrasquinho contrastava com o terror do cheiro, denso. Não sei se estávamos mais acostumados, com o pouco tempo de convivência, mas nesta nova barraquinha não era tão desagradável o odor da gordura.
Logo identificamos o astro: coroa de seda branca, um pouco encardida, é verdade; mas dava ares de ser um respeitável trabalhador. Jaqueta própria para o ofício, calças bem alinhadas, botas largas de açougueiro, talvez de couro. Talvez. Embaixo de seus pés, seu pedestal: um banquinho de ferro fixo na calçada. Ali era o posto do homem, do artesão, do artista de luvas em suas hábeis mãos. Ali, brandia ele uma espada.
E sempre, inesquecivelmente sempre: a torre de argila, de carne brilhante, gordurosa, duvidosa, de péssima qualidade.
Como toda figura importante, ao seu redor estava formado um aglomerado de interessados em seus serviços. Uma família inteira ia pegando os pequenos sanduíches que ele rapidamente montava, da mesma forma que o Edvan, e comendo com gosto, com simplicidade. Havia pressa geral; a demanda parecia que não era a fome, mas sim a ausência do tempo, falta de dinheiro. Este vendedor, contudo, prestava melhores serviços, com uma estrutura mais elaborada, com mais gavetas; em contrapartida, seu preço era mais caro: três reais inteiros.
Só em dinheiro, sem nota fiscal. O suco continuava de graça.
― Não tenho tempo pra falar com você agora, tô com muito trabalho.
― É rápido, não se preocupe. Trabalha há quanto tempo com isso?
― 17 anos – responde enquanto vai catando os pedaços de carne caídos na gaveta de metal.
― Como é o modo de preparo?
― Preparo da forma como todos preparam, no dia anterior a gente monta esse espeto e acabou.
Muito concentrado no trabalho. Seu nome é João, diz que tem trinta e cinco anos. Aparenta ter mais.
― O seu churrasco grego é mais badalado do que o outro. Por quê?
― Não sei quanto a isso.
Entrevistado difícil.
― Que carne você usa?
Ele para durante segundos. Olha para nós.
― Acem. Não dá pra usar carne muito cara.
― Engraçado, o que conhecemos antes usava fraldinha. Como é que é isso, a carne não faz diferença?
João parou seu trabalho e nos olhou com uma revolta controlada. Rasgou o véu do templo:
― Se é pra contar a história, conta a verdade. É mentira o negócio da fraldinha. Ele tá de rolo.
Mais um choque. A realidade estava mais certa que a imaginação: aquela carne estava muito ruim para ser de primeira.
― E o seu tempero? É melhor que o dos outros?
― É bom, sim, claro – respondeu com um quê de obviedade.
― Qual é o seu tempero? – fizemos o xeque-mate.
― Olha, você vai me desculpar – respondeu, todo respeitável com seus próprios direitos – mas eu não posso falar, é segredo. É coisa da casa.
Entendemos perfeitamente que churrasco grego é negócio sério.
Muitos haitianos comendo, provavelmente refugiados. Não falam português. Um nos aborda e faz um tremendo contraste: em inglês, nos pede que compre um sanduíche de churrasco grego para ele. Está desde a véspera sem comer.
O tempero secreto elevou o ambiente para um ateliê; havia ali o princípio de uma grande cozinha. Mas a atmosfera era muito clara para não vermos a podridão. Miséria, fome, o churrasco comprado, a esmola ganhada: prazer e sofrimento se confundem. É preciso ter olhos de poesia, no limite entre a futilidade e a hipocrisia, para vermos a arte e não vermos o profundo desamor.
Ou simplesmente vemos a beleza que emerge da miséria: o artesão e sua obra, a torre de Carne, magnífica. Há um sorriso triste, ou uma lágrima risonha no ar. Não há como diferenciar.
Não, já sabemos o que se passa. Há muita indiferença, de todas as partes.
Não há arte, há simplesmente a fome e ela abrilhanta o churrasco grego. O vendedor fica feliz: é rápido, prático, barato. Vende bem.
Passa um travesti com calça legging rosa. João e cliente riem.
Um motorista de ônibus, no volante, discute com uma mulher que espera no ponto. Ela está revoltada: ele parou o veículo para comprar um churrasco grego, atrasou toda a linha. Não se arrepende, batem boca: ele vai embora.
O chão é imundo. A carne cai da gaveta de metal, ficando na calçada.
Depois da entrevista, quando retornamos ocasionalmente ao local, vimos Edvan tomando seu café, como prometido. Pasmem: pão francês, carne e vinagrete. Do outro lado da rua. Numa padaria.
Quem sabe, o churrasco grego ficou para o almoço.