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Fonte: Wikiversidade

Ciência aberta: dos hipertextos aos hiperobjetos

Rafael Peretti Pezzi

Instituto de Física / Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

Texto elaborado como contribuição para o Seminário internacional Ciência Aberta, Questões Abertas dos dias 18 a 22 de agosto de 2014, Rio de Janeiro, Brasil


Introdução[editar | editar código-fonte]

Participantes do movimento de ciência aberta argumentam que, para que a ciência funcione adequadamente e resulte nos devidos benefícios para toda a população humana, é essencial o livre acesso aos detalhes operacionais da prática científica, tais como caderno científico aberto (open notebook science), dados abertos, divulgação dos códigos fontes de programas de computador científicos (open code manifesto) e acesso universal às publicações científicas e aos dados correspondentes (open access, Panton Principles). A tese defendida aqui afirma que existem elementos adicionais da prática científica que podem ser compartilhados em maior detalhe a fim de atingir os benefícios presumidos. Estes elementos correspondem ao funcionamento, uso e construção de aparatos científicos e as ferramentas utilizadas para sua concepção e materialização, ou seja, a documentação de desenvolvimento e uso dos equipamentos científicos e suas aplicações. A disponibilização desta documentação visa fomentar, e em alguns casos até mesmo viabilizar, a reprodução de experimentos científicos, aprimorando os mecanismos de disseminação do conhecimento científico e suas aplicações. Um dos mecanismos desta disseminação será pela utilização e estudo destes equipamentos no ensino técnico e universitário.

A fim de embasar a sugestão apresentada neste capítulo, traçaremos paralelos entre a infraestrutura livre que levou ao advento da World Wide Web para a criação e comunicação de conteúdo multimídia e a criação e comunicação de conteúdo que resulte na concepção de elementos materiais, em específico instrumentos científicos. Esta analogia é conveniente pois a WWW surgiu como um conjunto de padrões e ferramentas colocadas em domínio público por um grande laboratório científico[1], a Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear, conhecida como CERN (antigo acrônimo para Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire), viabilizando a construção, publicação e acesso a hipertextos para fins de otimização da comunicação científica. Isto se mostrou de grande importância não apenas para a ciência isolada, mas para a sociedade como um todo, levando-nos a uma nova era informacional.

A informática, além de ampliar o acesso a dados, textos e gráficos, permitiu o compartilhamento de códigos para a realização de análises numéricas e simulações científicas. Seguindo esta tendência, podemos pensar no próximo passo da informática enquanto uma infraestrutura que facilite a concepção, compartilhamento e fabricação de objetos materiais, tais como aparatos científicos. Com isso, chegaremos à concepção de uma infraestrutura aberta para a construção de hiperobjetos científicos. Tal infraestrutura engloba ferramentas livres para o desenho, estudo e fabricação digitais tais como CAD (Computer Aided Design), CAMs (Computer Aided Manufacturing) e máquinas CNC (Controles Numéricos Computadorizados).

Adiante são abordados aspectos conceituais que fundamentam a WWW, tomando o hipertexto como base para a construção do conceito de hiperobjeto. Em seguida são aprofundados os aspectos técnicos e legais que viabilizam hipertextos científicos e como estes podem ser estendidos para hiperobjetos. Por fim, são propostos elementos de uma infraestrutura ideal para a criação, compartilhamento, modificação e materialização de hiperobjetos científicos e suas aplicações.

Não rivalidade do conhecimento[editar | editar código-fonte]

A não rivalidade é uma das propriedades básicas do conhecimento e suas representações que é efetivamente explorada com sucesso em muitos hipertextos da WWW.

"O termo vem da economia: é rival aquele bem ou recurso cujo uso por alguém impede (ou compete com) o uso por outra pessoa. Os bens materiais são sempre rivais: o meu uso de uma cadeira, uma maçã ou um exemplar de um livro impede (ou compete com) o uso desses mesmos objetos por outra pessoa.”

“Um bem ou recurso não rival, por sua vez, é aquele que admite usos simultâneos que não competem entre si.” ... “como as ideias, os programas de computador, as obras artísticas, científicas e culturais — são, em geral, não rivais.”[Simon 2008]

É esta não rivalidade que permite que hiperlinks presentes em hipertextos e seus conteúdos possam ser utilizados simultaneamente por um grande número de pessoas. Ao contrário dos bens e objetos materiais, o conhecimento ou os objetos digitais não requerem uso exclusivo e sua disponibilidade não é diminuída com o uso. Na prática, seu uso é não rival.

Quando estamos lidando com objetos físicos tais como instrumentos científicos, seus usos são evidentemente rivais. Duas pessoas não podem utilizar o mesmo instrumento científico para realizar simultaneamente dois experimentos. Entretanto, o conhecimento e representações digitais relacionados a qualquer objeto físico, como o instrumento científico, são não rivais e podem ser utilizadas para a construção de dois equipamentos similares. A tese apresentada aqui sugere qualificar e sistematizar a organização e publicação de informações digitais relacionadas aos objetos científicos a fim de obter pleno aproveitamento dos seus aspectos não rivais. Este potencial pode ser efetivamente aproveitado não apenas para fins de reprodução e estudo dos instrumentos, mas também para seu desenvolvimento e adaptação. A realização deste potencial está se tornando evidente pelos avanços e redução de custos dos equipamentos de fabricação personalizada, tais como impressoras 3D e máquinas de usinagem de código aberto [Pearce 2012]. As mesmas características não-rivais também são usufruídas por software livre científico, geralmente baseados em compiladores e linguagens de programação livres, permitindo o livre compartilhamento dos códigos e seus usos e reusos.

Ecologia Cognitiva: da oralidade aos hiperobjetos[editar | editar código-fonte]

Ao longo da história observa-se o advento de novas formas de comunicação: a oralidade, a escrita, a imprensa, a informática. O surgimento de cada uma delas altera profundamente a cultura humana por também alterar as formas de saber e conhecer. No que tange à ciência, os reflexos da escrita até a imprensa já podem ser bem identificados; entretanto, as implicações da informática ainda estão sendo assimiladas [Levy 1993, Nielsen 2012].

A informática, por meio do maior sistema de hipertexto da atualidade, a World Wide Web, e de outros programas de computador, viabilizou um meio de suporte e transmissão de representações do conhecimento que desfruta das propriedades mais próximas àquelas da própria cognição humana, do nosso potencial intelectual: o pensamento, as ideias, a linguagem e a comunicação são fluidas, transformam-se, adaptam-se e se propagam com ou sem modificações, com naturalidade. Pierre Lévy apresenta o hipertexto como representante da conectividade entre as representações no contexto da era da informacional. Além disto, Lévy caracteriza os potenciais das ferramentas de comunicação pelo conceito de ecologia cognitiva:

“O meio ecológico no qual as representações se propagam é composto por dois grandes conjuntos: as mentes humanas e as redes técnicas de armazenamento, de transformação e de transmissão das representações. A aparição de tecnologias intelectuais como a escrita ou a informática transforma o meio no qual se propagam as representações.” [Levy 1993] p. 84

É claro que o sucesso da propagação das representações do conhecimento é diretamente dependente de padrões de representação inteligíveis para as partes envolvidas, a exemplo de um idioma: a existência de um idioma comum é o padrão fundamental para a eficiente propagação direta de conhecimento entre indivíduos, seja por palavras escritas ou faladas. Quando a troca de informação é mediada por instrumentos tais como computadores, padrões digitais que especificam sinais elétricos e codificações binárias devem ser precisamente definidos e implementados para que as informações sejam trocadas entre máquinas. Além disso, estando a implementação técnica associada a práticas de licenciamento permissivo, estabelecem-se os fundamentos de uma ecologia cognitiva que prima pela disseminação e uso do conhecimento, suas representações, suas aplicações e sua evolução (vide seção Questões técnicas e legais deste capítulo). Ou seja, o verdadeiro potencial da ecologia cognitiva da WWW é revelado quando os aspectos técnicos e legais são orquestrados de maneira a permitir novas formas de geração e acesso de informação como, por exemplo, a Wikipédia. Buscaremos então algo semelhante que possa ser utilizado como referencial para a construção de objetos cujas informações e potencial de materialização e uso estão organizados e acessíveis de maneira análoga aos hipertextos – aqui chamados de hiperobjetos.

Hipertextos[editar | editar código-fonte]

Hipertexto é o termo que remete a um texto ao qual se agregam outros conjuntos de informação na forma de blocos de textos, palavras, imagens ou sons, cujo acesso se dá através de referências específicas que, no meio digital, são denominadas hiperlinks, ou simplesmente links. Esses links ocorrem na forma de identificadores destacados no corpo de texto, ícones gráficos ou imagens e têm a função de interconectar os diversos conjuntos de informação, oferecendo acesso sob demanda às informações que estendem ou complementam o texto principal.” Fonte: Hipertexto em Wikipédia, a enciclopédia livre.

Os hiperlinks têm como função “oferece[r] acesso sob demanda às informações...”. Ou seja, espera-se que o caminho de um hiperlink ofereça acesso às informações desejadas. Caso a informação não esteja disponível ou seja ininteligível, o link pode ser considerado quebrado, sendo então de pouco ou nenhum valor. Se o conteúdo destino estiver codificado de maneira não padronizada, ele não será legível para o usuário. Por outro lado, se estiver disponível sob termos de licenças permissivas, tais como algumas licenças Creative Commons, como é o caso da Wikipédia, o valor do conteúdo é ainda maior a quem o acessa, dadas as possibilidades de reuso.

No que tange à pesquisa científica, a World Wide Web teve sua origem na busca por um meio de agilizar a forma na qual informação era compartilhada entre cientistas, ou seja, dinamizar as colaborações científicas. Em 1993 o CERN colocou os programas da WWW em domínio público[2] para maximizar a sua disseminação, já que Tim Barners-Lee, líder do projeto, o concebeu para suprir a demanda de troca de informação entre cientistas, universidades e instituições ao redor do mundo[3].

Aplicando o conceito de ecologia cognitiva para o caso dos hipertextos, não apenas o idioma é necessário para a eficiente propagação das representações: também são fundamentais os padrões adicionais da WWW que devem estar implementados com precisão em editores de hipertextos, servidores web, navegadores e protocolos de comunicação de rede para que seja possível a navegação pelos hiperlinks, garantindo o “acesso sob demanda às informações que estendem ou complementam o texto”. O grande mérito do CERN foi ter criado e integrado elementos básicos necessários para que tal navegação fosse possível e, reconhecendo o seu valor, lançado-os publicamente e permitindo a sua adoção universal, tal como é qualquer idioma. Hoje vivemos em uma sociedade altamente conectada onde o hipertexto é uma representação familiar graças à popularidade da World Wide Web.

Hiperobjetos[editar | editar código-fonte]

Percebendo que o hipertexto transcendeu o texto nas suas formas de representação de conhecimento, podemos utilizar o conceito para compreender a transformação de objetos em hiperobjetos:

Hiperobjeto é o termo que remete a um objeto ao qual se agregam ações e/ou conjuntos de informação na forma de blocos de códigos, textos, palavras, imagens, sons, funções e ações, cujo acesso se dá através de referências específicas que, no meio digital, são denominadas hiperlinks, ou simplesmente links. Esses links ocorrem na forma de identificadores destacados no objeto ou em suas representações na forma de textos (tags), ícones gráficos ou imagens e têm a função de interconectar os diversos conjuntos de informações, oferecendo acesso sob demanda às informações que estendem ou complementam o hiperobjeto.(Adaptação de Hipertexto em Wikipédia, a enciclopédia livre).

Com efeito, um objeto pode ser transformado em hiperobjeto pela disponibilização de hiperlinks que dinamizam o acesso ao que se conhece ou é relevante saber sobre o objeto em cada contexto. Por exemplo, um eletrodoméstico pode ser considerado um hiperobjeto quando informações tais como um manual de usuário, rede de assistência técnica, lojas de peças e acessórios podem ser facilmente acessadas, seja por hiperlinks presentes no objeto físico, como códigos de barra, QR Codes, ou através de representações digitais interativas como realidade aumentada.

No caso científico e educacional, o interesse reside em hiperobjetos cujos links apontam para informações tais como modelos teóricos, digitais ou matemáticos do objeto, instruções de uso e manutenção, aplicações, códigos e programas de computador e firmwares (programas embarcados no próprio objeto). Também podem ser inseridos hiperlinks que dão acesso a funções ou ações do objeto, a representações digitais que facilitam a sua materialização, simulações físicas, mecânicas ou suas transformações. Os hiperobjetos podem conter diferentes níveis de detalhamento de acordo com o seu objetivo e contexto. As aplicações científicas e educacionais dos hiperobjetos são modelos ideais para estes pois nestes a omissão e obscurecimento de informações não são desejadas.

Hiperinstrumentos na prática[editar | editar código-fonte]

As realizações de hiperinstrumentos, tal como propostas neste texto, requerem a consolidação de aspectos técnicos, legais e boas práticas que permitam que estes desfrutem das possibilidades não rivais análogas aos hipertextos. Os modelos de desenvolvimento de software livre e de conteúdo livre, tais como, respectivamente, o Kernel GNU/Linux e a Wikipédia, são os pontos de partida para a construção de hiperobjetos, onde os aspectos técnicos e legais ampliam ainda mais as possibilidades dos seus usos, porém agora considerando também novas características materiais.

Questões técnicas e legais[editar | editar código-fonte]

Para garantir a sustentabilidade e ampla adoção da ecologia cognitiva dos hiperobjetos, elementos técnicos e legais devem ser satisfeitos. Espera-se desta ecologia cognitiva o livre acesso aos conteúdos apontados pelos hiperlinks e que estes conteúdos, por sua vez, desfrutem das propriedades não rivais do conhecimento a fim de que possam ser usados, estudados, modificados e distribuídos. Com isto, os hiperobjetos poderão ser moldados e transformados com todo o potencial das ferramentas digitais e das mentes humanas.

Formatos de dados, programas de computador e máquinas de fabricação digital[editar | editar código-fonte]

A ação de navegar pelos hiperobjetos e a ação de transformá-los, mesmo que digitalmente, seja pela criação de novos hiperlinks ou pela alteração daqueles existentes, requerem que dois aspectos sejam integrados: i) a implementação de padrões abertos para dados em arquivos de computador e protocolos de comunicação e ii) o uso de ferramentas livres, programas de computador e máquinas de fabricação digital que permitam o acesso e modificação do conteúdo dos hiperlinks através da interpretação dos arquivos de computador e dos protocolos de comunicação e sua execução/materialização. A respeito da primeira categoria

“Um formato aberto é uma especificação publicada para armazenar dados digitais, mantida geralmente por uma organização de padrões não proprietária, e livre de limitações legais no uso.” Fonte, Wikipédia[4]

Alguns formatos abertos já são bem definidos para textos, materiais multimídia, linguagens de programação, armazenamento de dados e bancos de dados, permitindo o compartilhamento e uso de boa parte do conteúdo de interesse científico. Entretanto, ainda existe uma grande lacuna nos formatos de dados pertinentes para hiperobjetos que não foram definidos como padrões abertos ou carecem de validação para aplicações técnicas e científicas de precisão. Entre estes, cabe ressaltar a falta de ao menos um formato aberto para descrição de objetos tridimensionais e suas propriedades para fins de estudo, desenho, construção e simulação de instrumentos científicos[5]. A materialização dos objetos em representação digital será tratada na seção sobre Infraestrutura para hiperobjetos, a seguir, neste capítulo.

No que tange aos programas de computador, o seu uso corresponde à parte operacional da metodologia científica realizada por meio de computadores. O uso e evolução destes programas são fundamentais para o avanço da ciência sendo, inclusive, o acesso ao código fonte dos programas considerado, pelos adeptos da ciência aberta, uma premissa para o processo de validação de publicações científicas que deles fazem uso[6].

No mesmo sentido o CERN, em nota técnica de Tecnologia da Informação elaborada por força tarefa para licenciamento de software recomenda que:

  • Sempre que possível o software de propriedade do CERN, no todo ou em parte, deve ser feito disponível como software livre.
  • Todo o software livre licenciado pelo CERN deve utilizar licenças aprovadas pela Open Source Initiative (OSI).[7]

Seguindo estes princípios, o CERN e o Fermilab, outro laboratório de física de altas energias, contribuem para o desenvolvimento e manutenção de um sistema operacional e programas de suporte à pesquisa científica chamado Scientific Linux[8]. Iniciativas semelhantes podem ser encontradas na NASA (sigla em inglês de National Aeronautics and Space Administration – Administração Nacional da Aeronáutica e do Espaço)[9],

Por outro lado, também existem meios científicos onde tarefas corriqueiras dos cientistas, tais como operações aritméticas, cálculos numéricos, criação de gráficos e edição de texto sejam realizadas em grande parte por meio de programas proprietários enquanto existe uma diversidade de programas livres e de qualidade disponíveis para os mesmos propósitos. O uso de programas proprietários cria barreiras para que a prática científica se dissemine pela sociedade, por exemplo, limitando o escopo das atividades de ensino e extensão universitárias. Como consequência, o uso de software proprietário no meio acadêmico reduz a possibilidade de oferecimento ou relevância de atividades de ensino e extensão que envolvem o treinamento no uso do computador. Assim, a disseminação do conhecimento acadêmico e sua aplicação fora dos grupos de pesquisa, seja em escolas, comunidades populares ou em ambiente industrial/tecnológico, fica limitada àqueles que têm acesso aos programas utilizados[10].

Licenciamento de hiperobjetos[editar | editar código-fonte]

Para que se desfrute dos aspectos não rivais dos hiperobjetos de acordo com as habilidades intelectuais humanas associadas às possibilidades das tecnologias digitais é necessário que, além do acesso ao conteúdo destino de cada hiperlink e disponibilização das ferramentas necessárias para acessá-lo, tenhamos autorização que permita seu uso, estudo, modificação e distribuição. Para isto, o conteúdo deve estar disponível de acordo com a definição de conhecimento aberto[11], a definição de software livre[12], e a definição de hardware aberto[13], para cada tipo de categoria de informação a ser utilizada.

Atualmente, os aspectos legais são pontos fundamentais da prática científica e educacional. A diversidade de leis e jurisdições resultam em grande dificuldade para cientistas e educadores. Estas misturam elementos de leis de propriedade intelectual que caem em duas categorias: i) direito autoral e ii) propriedade industrial e merecem esclarecimento.

O primeiro aspecto compreende as obras intelectuais, artísticas, literárias, programas de computador. Elas podem ser categorizadas em Licenças de Software e Licenças de Conteúdo. Nas últimas décadas, especialistas e organizações têm elucidado formas de licenciamento para as diferentes categorias de licenças, formando um arcabouço legal para a criação de hiperobjetos[14], e tornando inteligível o ecossistema de licenciamento que permite também a remixagem, a combinação de objetos. A tabela 1 apresenta um cronograma temporal das primeiras licenças de software, conteúdo e hardwares abertos e suas autorias.


Ano
Alvo da Licença
Nome da Licença
Origem / Autor
1989 Software livre General Public Licence (GPL) Free Software Foundation

Richard Stallman

2002 Conteúdo em geral Creative Commons Creative Commons /

Lawrence Lessig

2007 Hardware aberto TAPR Open Hardware Licence Tucson Amateur Packet Radio /

John R. Ackermann

Tabela 2: Cronograma temporal das licenças de software livre, conteúdos livres e hardwares abertos e suas autorias. Fonte: Elaboração própria

As licenças de software e conteúdo já fazem parte de ecossistemas cognitivos que integram os aspectos técnicos e legais que permitem a sua sustentação, tais como os exemplos citados da Wikipédia e os sistemas operacionais GNU/Linux. Projetos de hardware abertos e livres iniciaram sendo licenciados com os mesmos tipos de licença que software e conteúdo, como o Arduino. Entretanto, como a fabricação de equipamentos está regida pelo regime da propriedade industrial, as licenças de software livre e conteúdo como as Creative Commons não são inteiramente adequadas para estes. Desta maneira, o hardware aberto merece licenças específicas.

Licenças de hardware aberto[editar | editar código-fonte]

São recentes as discussões sobre equipamentos (hardware) que oferecem a seus usuários a liberdade de uso, estudo, modificação e distribuição - as liberdades definidas para o software livre. A conversa a respeito do hardware aberto se iniciou entre hobistas [Ackermann 2009] e resultou na publicação da Licença de Hardware Aberto TAPR em 2007[15]. Atualmente o principal mercado de hardware aberto é o de amadores e adeptos do faça você mesmo (DIY – do it yourself). A ciência e a educação são iniciativas que podem ser imediatamente beneficiadas com a adoção destes princípios, pois estes estão alinhados com os seus propósitos de avanço e disseminação do conhecimento. Grande impulso foi dado a este movimento com o lançamento da Licença de Hardware Aberto do CERN.

Hardware aberto do CERN[editar | editar código-fonte]

Em março de 2011, o CERN lançou a versão 1.0 da Licença de Hardware Aberto do CERN, tendo sido a última versão, 1.2, publicada em setembro de 2013. No lançamento inicial, a nota pública do CERN revela o seguinte:

“No espírito de disseminação de conhecimento e tecnologia, a Licença de Hardware Aberto do CERN foi criada para governar o uso, cópia, modificação e distribuição de documentação de desenhos de hardware e a manufatura e distribuição de produtos. A documentação de desenho de hardware inclui diagramas esquemáticos, desenhos, circuitos ou leiaute de placas de circuito, desenhos mecânicos, fluxogramas e textos descritivos, assim como outros materiais explicativos.”[16]

Atualmente a Licença de Hardware Aberto do CERN tem sido utilizada para a publicação de diversos instrumentos científicos, educacionais e industriais. Uma boa amostra destes equipamentos e suas aplicações podem ser encontrada no repositório de hardware aberto[17] e nos projetos do Public Laboratory for Open Technology and Science (PLOTS)[18].

Boas práticas[editar | editar código-fonte]

Além das questões técnicas e legais já apontadas, o sucesso da disseminação dos hiperobjetos depende de elementos práticos que facilitem ou até mesmo permitam a sua utilização: a qualidade da sua documentação. Podemos fazer um paralelo entre a navegabilidade de um website e o seu leiaute, sua organização. O conteúdo pode estar lá e seu licenciamento adequado, porém a forma de apresentação do conteúdo e seus hiperlinks afeta a experiência de alguém que utiliza um sítio na internet. A necessidade de programas especiais para acesso aos elementos que não utilizam os padrões definidos também é impeditivo para o uso adequado do conteúdo. Esta é a razão para a existência de organizações que definem padrões, como o W3C (World Wide Web Consortium), responsável por manter o padrão de linguagem de marcação de hipertexto (HTML – Hypertext Markup Language).

Analogamente, a navegabilidade por um hiperobjeto é afetada pela disposição de hiperlinks, do conteúdo para o qual estes apontam, de como os conteúdos evoluem no tempo, e da facilidade para participação desta evolução. Esta é uma questão de organização e documentação de hiperobjetos, enfim, boas práticas.

Bons exemplos destas boas práticas, que servem de referência, são os projetos de software, conteúdo e hardware abertos que utilizam metodologias às quais o conceito de hiperobjeto pode ser imediatamente aplicado, e nos quais até se inspira. Estes projetos comumente utilizam:

  • ferramentas abertas de desenvolvimento;
  • controle de versão;
  • repositórios de acesso público;
  • wikis de documentação;
  • fóruns e listas de e-mails para usuários e desenvolvedores;
  • sistema de gerenciamento de defeitos (bugs).

O desenvolvimento do kernel GNU/Linux[19], a Wikipédia[20] e a impressora auto-replicante RepRap[21] são casos exemplares. A familiarização com as ferramentas destas iniciativas para o uso e reciclagem de códigos, dados e instrumentos científicos é de importância crescente para a prática científica. O treinamento científico nas metodologias colaborativas é algo a ser incentivado para as novas gerações de cientistas, engenheiros, técnicos e professores[22]. Para isto, participantes do Centro de Tecnologia Acadêmica da UFRGS criaram e mantêm um modelo padrão para a documentação de projetos que inclui seções específicas para documentação de desenvolvimento, uso, além de aplicações educacionais[23].

Infraestrutura para hiperobjetos[editar | editar código-fonte]

Novas ecologias cognitivas surgem quando os elementos de suporte ao armazenamento, transmissão e processamento de conhecimento e suas representações são adotados por uma massa crítica capaz de utilizá-los e disso beneficiar-se. A infraestrutura da ecologia cognitiva, além de existir, deve estar acessível e ser adaptável para que possa ser difundida, sustentável e de benefício a toda a humanidade.

Já abordamos o tema da infraestrutura disponibilizada pelo CERN para a criação da WWW: meios que permitem a criação de hipertextos, sua publicação e sua navegação. Numa abordagem simplificada podemos considerar que a infraestrutura técnica que viabilizou a ecologia cognitiva do software livre foi um editor de texto livre e um compilador de programas de computador também livre, tornando possível o desenvolvimento e disseminação de códigos de computador que evoluíram para formar o sistema operacional GNU/Linux e muitos de seus programas.

Programas livres são fundamentais para a criação de hiperobjetos livres. Entretanto, por serem intangíveis ou não rivais, não são suficientes para fundamentar a ecologia cognitiva dos hiperobjetos, que incluem a sua materialização através de instrumentos de fabricação personalizada. Chamaremos um protótipo mínimo da infraestrutura para a criação e navegação de hiperobjetos de Bancada de Código Aberto, ou OpenWorkbench.

Bancada de Código Aberto[editar | editar código-fonte]

A Bancada de Código Aberto apresentada aqui consiste de um grupo de instrumentos mínimos, de baixo custo, capazes de criar hiperobjetos científicos e educacionais. Essas ferramentas de hardware aberto e software livre viabilizam fluxos de trabalho desde a concepção conceitual do projeto até a materialização de instrumentos pelas máquinas de fabricação digital[24]. A própria bancada é composta de hiperobjetos.

A bancada de código aberto também visa contribuir para a qualificação educacional, podendo ser utilizada de duas maneiras. A mais direta é pela sua aplicação para a reprodução de instrumentos científicos e educacionais disponíveis em repositórios on-line. Um pacote de arquivos adequados para serem enviados para as máquinas de fabricação digital da bancada é obtido da internet e utilizado para a fabricação das peças do instrumento de interesse, que é então montado e utilizado. A segunda maneira de utilização das máquinas consiste no próprio estudo da máquina e a sua evolução. Professores e estudantes de engenharias, ciências e outras áreas técnicas podem conhecer os elementos básicos das máquinas, as partes mecânicas e sua programação. Em ambos os casos, além de cultivar a curiosidade e interesse de estudantes de todas as idades, o potencial criativo despertado pela familiarização com a fabricação digital desmistifica o desenvolvimento tecnológico e empodera os indivíduos que passam de um papel passivo (consumidores de produtos prontos) para o papel de agentes ativos, desenvolvedores da tecnologia.

Fabricação digital[editar | editar código-fonte]

Fabricação digital ou fabricação personalizada consiste na materialização de objetos a partir de desenhos e representações digitais utilizando métodos aditivos ou subtrativos de materiais controlados numericamente por computador (CNC) a fim de obter um objeto físico com as características desejadas. Pode-se citar os seguintes métodos de fabricação digital:

  • Fabricação aditiva (impressão 3D)
    • Impressão de termoplásticos (polímeros)
    • Impressão de metais
    • Impressão a partir de pó (cerâmicas e metais)
  • Fabricação subtrativa
    • Fresadoras e tornos CNC
    • Usinagem por descarga elétrica (Electrical Discharge Machining – EDM)
    • Cortadoras a laser e a plasma
    • Centros de usinagem
Figura 1 – Mapa da Bancada de Código Aberto em março de 2015. Verde: disponível como tecnologia aberta; amarelo: projeto aberto em desenvolvimento; vermelho: ferramenta aberta inexistente ou carece de elementos importantes para difusão de seu uso: falta de interface amigável ou documentação.

A fabricação digital se tornou popular com o lançamento do projeto RepRap, iniciado em 2004 por Adrian Bowyer, na Inglaterra [Jones 2011]. A RepRap iniciou uma linhagem de impressoras 3D de código aberto [Cano 2011] que se mostraram capazes de reduzir em até 8 vezes o custo de instrumentação científica [Pearce 2012], não só demonstrando um novo potencial para a criação de experimentos científicos, mas também ampliando o acesso aos equipamentos de laboratório e facilitando a sua adaptação e manutenção. Os trabalhos de Jones e Pearce [Jones 2011, Pearce 2012] demonstram o potencial da fabricação digital para a ecologia cognitiva dos hiperobjetos e suas aplicações para ciência e educação abertas. Entretanto, dadas as limitações das máquinas abertas e de baixo custo disponíveis na atualidade, podemos afirmar que a fabricação digital de código aberto ainda está na sua infância mas, dado o entusiasmo de acadêmicos e não acadêmicos, em franco desenvolvimento.

Um dos gargalos da fabricação digital está nas limitações das ferramentas livres disponíveis para o desenho auxiliado por computador (CAD) e para a fabricação de hardware, esta última praticamente limitada a objetos plásticos. Outra limitação está associada às propriedades físico-químicas e mecânicas das peças de plástico polimérico, pois para que sejam passíveis de utilização em ambientes mais adversos, seja por temperatura, pressão ou desgaste, também é necessária a elaboração de instrumentos especializados utilizando outros materiais como metais, minerais e cerâmicas especiais.

Tão importantes quando equipamentos de fabricação digital de baixo custo são as ferramentas em software livre para o desenho, visualização, simulação eletrônica, mecânica e geométrica (montagem) das partes e instrumentos a serem construídos com estes aparelhos[25], como apontado pelas regiões amarelas e vermelhas da figura 1.

Um dos elementos mais recentes adicionados ao rol de máquinas de fabricação digital de baixo custo consiste em uma fresadora para placas de circuito impresso (PCI).

Fresadora PCI João-de-barro[editar | editar código-fonte]

(Furnarius rufus Milling Machine)

O Centro de Tecnologia Acadêmica do Instituto de Física da UFRGS está atuando no desenvolvimento de elementos da Bancada de Código Aberto. Sua primeira contribuição consiste na concepção de uma máquina aberta para a prototipagem de placas de circuito impresso, a Fresadora PCI João-de-barro, concebida pelo engenheiro Germano Postal. Seu primeiro protótipo funcional foi lançado em setembro de 2014 sob os termos da Licença de Hardware Aberto do CERN v 1.2[26]. Esta iniciativa busca reduzir o custo e a barreira para a prototipagem de placas de circuito impresso para fins científicos e educacionais através de um instrumento que seja fácil de fabricar e adaptar. O projeto tem seu nome em homenagem ao pássaro João-de-barro, de denominação científica Furnarius rufus, que constrói seu ninho com barro de maneira muito semelhante às modernas máquinas de fabricação digitais aditivas como as impressoras 3D.

Fresadora PCI João-de-barro pronta para usinar uma placa
Shield gravador de AVR ATtiny para Arduino obtida com a Fresadora João-de-barro

O projeto da Fresadora PCI João-de-barro tem os seguintes objetivos:

  • Baixo custo (~ US$ 1000) para as peças;
  • Alta precisão: capaz de prototipar placas de circuitos convencionais (through-hole) e circuitos SMD;
  • Fácil de montar: a maioria das partes pode ser montada com furadeira de bancada, corte e dobra de chapas de metal, disponíveis como serviços nos maiores centros urbanos.

Documentação do projeto

A fim de garantir ampla disseminação através de uma comunidade de usuários e desenvolvedores, o projeto da Fresadora PCI João-de-barro está sendo documentado em detalhes que incluem informações de cada peça da máquina em formatos para impressão (pdf) e CAD (dxf)[27]. O repositório também contém descrições de como cada peça do primeiro protótipo foi construída. A documentação do projeto pode ser encontrada no site do Centro de Tecnologia Acadêmica[28] e sua versão em inglês para a comunidade internacional no repositório de Hardware Aberto do CERN[29]. No momento da elaboração deste texto, o primeiro protótipo da Fresadora PCI João-de-barro havia sido concluído e o repositório já contém os diagramas de cada parte mecânica da máquina, além de um guia passo-a-passo para a sua utilização utilizando exclusivamente software livre.

Software livre[editar | editar código-fonte]

A comunidade científica e educacional já faz uso de diversas ferramentas livres para elaboração de textos, imagens e programas de computador, porém carece de programas CAD livres para a elaboração e o compartilhamento de objetos e projetos 3D. Uma infraestrutura digital intangível eficiente se faz necessária para que os os empreendimentos científicos e educacionais possam atingir seus objetivos com mais facilidade, através da colaboração para a criação de instrumentos que possam ser compartilhados por todos.

Abaixo são listados alguns programas CAD de interesse científico, que podem ser divididos em três categorias:

  • AEC - Architecture, Engineering and Construction
    • São programas para auxílio de desenho de objetos de duas ou três dimensões de interesse para arquitetura, engenharia e construção. FreeCAD, LibreCAD, OpenSCAD, BRLCAD são alguns exemplos.
  • EDA – Electronic Design Automation
    • Programas para auxílio de desenho de esquemáticos e placas de circuitos eletrônicos. gEDA, KiCAD são alguns exemplos livres.
  • CAM - Computer Aided Manufacturing
    • Programas que codificam a representação digital de uma peça concebida a partir de um CAD para o controle de máquinas de manufatura aditiva ou de usinagem. Printrun[30] e FlatCAM[31] são casos de CAMs para impressão 3D e usinagem de placas de circuito impresso, respectivamente.

CAD – Desenho auxiliado pelo computador para AEC e EDA[editar | editar código-fonte]

Existe uma variedade de ferramentas para desenho auxiliado pelo computador (CAD) que estão disponíveis como software livre. O objetivo deste trabalho não é o de realizar uma comparação de diferentes ferramentas[32], cabendo apenas afirmar que os programas livres para CAD da atualidade carecem de funcionalidades avançadas comumente encontradas em equivalentes proprietários. Em função do hiato existente entre o nível de usabilidade e funcionalidades das opções livres e das ferramentas proprietárias de CAD, é uma prática corrente o uso das proprietárias para o desenho de instrumentos científicos, inclusive aqueles considerados hardware aberto[33]. Desta maneira a colaboração aberta e o compartilhamento de desenhos de instrumentos científicos ficam bastante limitados, uma vez que o custo de ferramentas CAD pode alcançar facilmente dezenas de milhares de dólares por licença. Universidades e centros de pesquisas investem anualmente milhões na aquisição de licenças de software, recursos que poderiam ser muito melhor direcionados para o desenvolvimento de alternativas livres tornadas disponíveis para todos.

Desenho de Circuitos Eletrônicos (EDA)[editar | editar código-fonte]

Existe uma variedade de softwares livres para o Desenho de Circuitos Eletrônicos (EDA – Electronic Design Automation, em inglês). Uma das opções é o Fritzing, um excelente ponto de partida para iniciantes, pois apresenta uma visão de protoboard onde as representações dos componentes são idênticas aos próprios, facilitando a familiarização com eletrônica, além das visualizações mais usuais como esquemático de circuitos, onde os componentes são representados por símbolos, e placa de circuito para construção de trilhas de conexões entre componentes. Entretanto, o Fritzing é bastante limitado para aplicações avançadas. O programa CAD para EDA ideal para a ecologia cognitiva dos hiperobjetos deve ter as funcionalidades avançadas, ao mesmo tempo em que é fácil de instalar e adequado para iniciantes realizarem seu aprendizado de eletrônica pelo desenho de circuitos simples e sua simulação.

A ferramenta CAD mais promissora para EDA avançado da atualidade é o KiCAD. Ele está sendo desenvolvido por uma comunidade de colaboradores, inclusive pesquisadores e desenvolvedores ligados ao CERN que perceberam a importância de programas livres para a colaboração em desenhos de instrumentos científicos[34].

Uma das funcionalidades importantes ainda inexistentes em CAD e EDA refere-se à possibilidade de conduzir simulações do circuito de forma integrada com a interface do usuário. A simulação permite estimar o comportamento do circuito antes da sua fabricação/prototipagem, reduzindo o tempo de desenvolvimento e o desperdício de materiais.

Potencial da Bancada de Código Aberto[editar | editar código-fonte]

A ciência e a educação compartilham muitos de seus fundamentos. Ambos os esforços objetivam o aperfeiçoamento e a disseminação do saber humano a fim de beneficiar a sociedade. A fronteira entre ciência e educação é bastante tênue. Programas de pós-graduação, de iniciação científica que envolvem alunos de graduação ou ensino técnico ou até mesmo iniciativas de ciência cidadã na escola são exemplos nos quais as duas áreas estão diretamente interligadas.

A adoção de práticas, métodos e ferramentas científicas no contexto educacional é de benefício claro pois evidencia as aplicações do que é visto em aula e seus desdobramentos. Ferramentas para a criação, navegação e adaptação de hiperinstrumentos científicos podem ser imediatamente aplicadas no contexto educacional. Enriquecem o conceito de Recursos Educacionais Abertos adotado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco)[35] em 2002. Recursos Educacionais Abertos são

"os materiais de ensino, aprendizagem e investigação em quaisquer suportes, digitais ou outros, que se situem no domínio público ou que tenham sido divulgados sob licença aberta que permite acesso, uso, adaptação e redistribuição”[36].

Acesso à ampla infraestrutura científica não rival também reduz as barreiras para o empreendedorismo, que pode ser inspirado em modelos de negócios baseados em software livre: consultoria, suporte, treinamento, desenvolvimento personalizado, assim como modelos de negócio emergentes para hardware aberto[37] [Raasch 2009, Merkel 2012], tornando natural a integração entre ciência, educação e empreendedorismo.

Hiperinstrumentos científicos e educacionais[editar | editar código-fonte]

Um hiperinstrumento científico ou educacional é um instrumento cujas representações digitais contenham detalhes que facilitem a qualquer pessoa interessada aprofundar seus conhecimentos nos diversos aspectos do instrumento, de modo a garantir o seu uso, estudo, reprodução, adaptação e disseminação. Por princípio, informações não são deliberadamente omitidas dos objetos científicos, de forma que os hiperlinks em hiperobjetos podem apontar para teorias, artigos, resultados e suas bases de dados, manuais, casos de uso, repositórios de peças e fornecedores, formas de fabricação, guias de manutenção, wikis, grupos de usuários, ferramentas de fabricação. A tabela 2 apresenta uma comparação da utilização de hiperlinks em hipertextos e para hiperobjetos científicos.


Hipertextos científicos
Hiperobjetos científicos
Hiperlinks para
* Blocos de textos:
    • Referências bibliográficas
    • Materiais suplementares
  • Imagens (gráficos, diagramas, fotos e vídeos)
  • Programas e códigos científicos
  • Bancos de dados


* Representações digitais
    • Desenhos CAD
    • Modelos: STL (3D), gerber (2D)
  • Modelos, teorias e manuais
  • Programas, firmwares
  • Repositórios de peças e fornecedores
  • Instruções de fabricação e montagem
  • Ferramentas de fabricação
  • Guias de uso, manutenção e ensino
  • Grupos de usuários:
    • Wikis
    • Aplicações


Tabela 2: Usos típicos de hiperlinks em hipertextos e hiperobjetos científicos.

Fonte: Elaboração própria

Os hiperlinks de um hiperobjeto podem ser disponibilizados de diversas maneiras, entre elas:

  • textos explicitamente presentes no objeto físico. Exemplo: URL de página web;
  • códigos identificados por software de reconhecimento de imagem;
  • mapa de links html (imagemap) sobre uma ou mais imagens do objeto;
  • listas de hiperlinks em páginas html.

Exemplos de hiperinstrumentos científicos e educacionais[editar | editar código-fonte]

Podem ser considerados hiperinstrumentos científicos aqueles que integram o virtual e o não virtual de maneira a facilitar o seu uso, estudo, modificação e distribuição. Existem diversos exemplos de instrumentos de interesse científico e/ou educacional que podem ser considerados hiperobjetos. Aqui serão referidos dois exemplos que contêm elementos de interesse em diversas disciplinas ou campos transdisciplinares: a impressora 3D RepRap da Universidade de Bath e as Estações Meteorológicas Modulares do Centro de Tecnologia Acadêmica IF/UFRGS.

Impressora 3D RepRap[editar | editar código-fonte]

A impressora 3D RepRap é um projeto originado em uma escola de engenharia mecânica inglesa da Universidade de Bath [Jones 2011] cujas repercussões vão além da engenharia, atingindo diversos aspectos da ciência e da educação, bem como da economia.

A RepRap é vista como um hiperinstrumento quando percebemos que suas hiperligações permitem seu uso, sua fabricação e sua modificação. A RepRap e suas derivações podem ser utilizadas para a criação de objetos educacionais para crianças, para estudo de geometria, mecânica e programação, assim como para ciência dos materiais. É uma máquina que permite seu aprofundamento em diferentes disciplinas de acordo com o contexto e interesse de cada um.

Estações Meteorológicas Modulares de Código Aberto[editar | editar código-fonte]

O projeto das Estações Meteorológicas Modulares do Centro de Tecnologia Acadêmica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul[38] busca integrar uma rede de monitoramento climático e ambiental mantida e operada por cidadãos. Porém o objetivo não é apenas o acúmulo de dados coletados por cidadãos[39], mas também promover a educação científica e tecnológica para que a própria construção dos instrumentos, sua programação, manutenção, desenvolvimento e calibração possam ser feitos por cientistas cidadãos.

O projeto desenvolve ações para integrar o cidadão às atividades de iniciação científica e iniciação tecnológica baseadas em tecnologias livres [Silva 2014], incluindo-o no processo de medição de grandezas científicas, de compartilhamento de dados e de discussões sobre suas repercussões. Convida cada cidadão a navegar no hiperinstrumento científico e melhor entender o ambiente em que vive.

Busca-se, com este projeto, a consolidação de um programa de ensino em ciência e tecnologia baseada em uma ecologia cognitiva onde as ferramentas são, na medida do atualmente possível, livres para serem usadas, estudadas, modificadas e distribuídas. Neste contexto são oferecidos cursos de introdução à meteorologia, eletrônica analógica e digital e programação de microcontroladores, fabricação digital de placas de circuitos eletrônico e peças 3D, além de aquisição, visualização e interpretação de dados.

Considerações finais[editar | editar código-fonte]

Este capítulo apresentou o conceito de hiperobjeto e a proposta de concepção de instrumentação científica nele baseada. Este conceito visa à criação de uma ecologia cognitiva que promova a disseminação dos conhecimentos relacionados aos instrumentos científicos e suas aplicações, fornecendo elementos para a expansão da infraestrutura de criação, construção, disseminação, aplicação e materialização destes objetos. O conceito de hiperobjeto se torna um modelo ideal para aplicação científica e educacional, pois nestas áreas não há razão para a omissão ou obscurecimento de informações a respeito de hiperobjetos.

Por fim, é sugerido que uma pequena fração dos investimentos em pesquisa e infraestrutura sejam direcionada para o suporte e desenvolvimento da infraestrutura dos hiperobjetos, a fim de dinamizar o compartilhamento de informações de projetos e a fabricação de instrumentos científicos, ampliando seu acesso e reduzindo esforços redundantes assim como custos. Esta infraestrutura também é de grande valor para uma educação alinhada com os princípios da ciência e dos Recursos Educacionais Abertos.

Referências[editar | editar código-fonte]

[Ackermann 2009] John R. Ackermann, Toward Open Source Hardware, 34 U. Dayton L. Rev. 183 (2009)

[Cano 2011] Juan Luis Chulilla Cano, The Cambrian Explosion of Popular 3D Printing, International Journal of Artificial Intelligence and Interactive Multimedia, Vol. 1, No 4. p. 30-32

[Jones 2011] Jones, R., Haufe, P., Sells, E., Iravani, P., Olliver, V., Palmer, C., and Bowyer, A.,: RepRap - The Replicating Rapid Prototyper, Robotica (2011) volume 29, pp. 177–191. Cambridge University Press.

[Levy 1993] Lévy, Pierre; As Tecnologias da Inteligência: O futuro do pensamento na era da informática.. Editora 34, 1993

[Merkel 2012] MERKEL, Andreas, Hendrik HOPF, and Egon MÜLLER. "ACCELERATING THE INNOVATION PROCESS WITH THE HELP OF OPEN SOURCE PROTOTYPING HARDWARE. ANNALS OF FACULTY ENGINEERING HUNEDOARA – International Journal Of Engineering. Tome X (2012) - Fascicule 1

[Nielsen 2012] Nielsen, Michael; Reinventing Discovery: The New Era of Networked Science (2012); Princeton University Press

[Pearce 2012] Pearce, Joshua M. 2012. “Building Research Equipment with Free, Open-Source Hardware.” Science 337 (6100): 1303–1304

[Raasch 2009] Christina Raasch, Cornelius Herstatt, and Kerstin Balka. (2009). On the open design of tangible goods. R&D Management. doi:10.1111/j.1467-9310.2009.00567.x

[Silva 2014] Silva, Renan Bohrer; et al. Estações meteorológicas de código aberto: um projeto de pesquisa e desenvolvimento tecnológico. Aceito para publicação na Revista Brasileira de Ensino de Física (2014)

[Simon 2008] Simon, Imre; Said Vieira, Miguel; "O rossio não-rival" em "Além das redes de colaboração: internet, diversidade cultural e tecnologias do poder"; Organizadores: Pretto, Nelson De Luca; Silveira, Sérgio Amadeu da; 2008; EDUFBA; http://dx.doi.org/10.7476/9788523208899


  1. O software que impulsiona a WWW foi colocada em domínio público pelo CERN em 30 de Abril de 1993. Ver http://home.web.cern.ch/about/updates/2013/04/twenty-years-free-open-web (acesso em 2 de abril de 2014).
  2. http://home.web.cern.ch/about/updates/2013/04/twenty-years-free-open-web (acesso em 2 de abril de 2014)
  3. Neste contexto é fácil perceber que links quebrados em hipertextos são impedimentos ao avanço de uma pesquisa ou de um estudo. Em um artigo científico atual estes hiperlinks apontam para materiais suplementares assim como referências bibliográficas – outros artigos científicos –, todos fundamentais para a avaliação, validação e reprodução dos objetos de pesquisa do artigo científico. Percebemos então que referências inacessíveis, apontadas por hiperlinks em hipertextos científicos, são indicativas de hipertextos quebrados. Em muitos casos o hipertexto científico só será válido (sem hiperlinks quebrados) para quem dispõe de assinatura das revistas científicas citadas ou dispõe de recursos para aquisição das referências individuais. A aquisição das referências individuais pode facilmente chegar de centenas a milhares de dólares para cobrir todas as referências de um único artigo científico. Assim, o movimento do acesso aberto pode ser entendido como uma reação natural de uma sociedade que reconhece as vantagens do hipertexto frente ao texto convencional e considera não apenas frustrante, mas danosa, a existência sistemática de links quebrados nos hipertextos científicos.
  4. https://pt.wikipedia.org/wiki/Formato_aberto (acesso em 26 de outubro de 2014)
  5. Existem padrões abertos para objetos 3D como o AMF (Additive Manufacturing File Format) e o X3D, porém suas aplicações para CAD de precisão científica e implementações em programas CAD livres para uso em hiperobjetos ainda está aberta. Veja https://en.wikipedia.org/wiki/X3D e https://en.wikipedia.org/wiki/Additive_Manufacturing_File_Format (Acesso em 14 de Outubro de 2014)
  6. http://sciencecodemanifesto.org/ (acesso em 26 de outubro de 2014)
  7. Final Report of the Open Source Software Licence Task Force CERN; CERN-IT-Note-2012-029;Jan, 2012.
  8. https://www.scientificlinux.org/
  9. http://ti.arc.nasa.gov/opensource/ - A licença dos programas abertos da NASA não pode ser considerada uma licença de software livre pois esta não permite que se faça a integração destes programas com códigos/programas de terceiros.
  10. Cabe apontar que, infelizmente, muitas vezes o acesso aos programas proprietários se dá por cópias clandestinas, preocupantemente propagando um vício velado no uso de indevido de softwares proprietários através da pirataria.
  11. http://opendefinition.org/od/1.1/pt/ (Acesso em 14 de Outubro de 2014)
  12. https://www.gnu.org/philosophy/free-sw.html (Acesso em 14 de Outubro de 2014)
  13. http://www.oshwa.org/definition/portuguese/ (Acesso em 14 de Outubro de 2014)
  14. A Fundação Software Livre (FSF – Free Software Foundation) mantém uma página com comentários a respeito de diversas licenças de software e outros tipos de conteúdo em https://www.gnu.org/licenses/license-list.html (Acesso em 14 de Outubro de 2014)
  15. TARP OHL- Tucson Amateur Packet Radio Open Hardware Licence - http://www.tapr.org/OHL (Acesso em 24 de Outubro de 2014)
  16. http://press.web.cern.ch/press-releases/2011/07/cern-launches-open-hardware-initiative (Acesso em 24 de Outubro de 2014)
  17. http://www.ohwr.org – Open Hardware Repository (Acesso em 24 de Outubro de 2014)
  18. http://publiclab.org/ (Acesso em 31 de Março de 2015)
  19. https://www.kernel.org/ (Acesso em 24 de Outubro de 2014)
  20. https://www.wikipedia.org (Acesso em 24 de Outubro de 2014)
  21. http://reprap.org/ (Acesso em 24 de Outubro de 2014)
  22. Destaque para controle de versão com o git, textos wiki com o MediaWiki, ou similares.
  23. http://cta.if.ufrgs.br/projects/suporte-cta/wiki/Modelo_de_Documentação_Padrão (Acesso em 20 de Fevereiro de 2015)
  24. Existe uma iniciativa complementar à Bancada de Código Aberto chamada Replab, iniciado no Open Source Ecology. A bancada de código aberto não compete com o RepLab pois este visa à concepção de instrumentos mais pesados dos que aqueles propostos para a Bancada de Código Aberto. Ambas compartilham valores similares e se complementam. Ver http://opensourceecology.org/wiki/RepLab (Acesso em 24 de Outubro de 2014).
  25. Na verdade muitas funcionalidades avançadas podem ser encontradas implementadas em programas do tipo software livre, entretanto a qualidade destes softwares estão muito aquém dos equivalentes proprietários, pois carecem de integração, apresentam interfaces de usuário não intuitivas, alta taxa de bugs e são de difícil aprendizado.
  26. http://ohwr.org/cernohl (Acesso em 24 de setembro de 2014)
  27. Pela ausência de um software livre adequado, a fresadora foi projetada em CAD proprietário de baixo custo.
  28. http://cta.if.ufrgs.br/projects/fresadora-pci-joao-de-barro/wiki (Acesso em 24 de setembro de 2014)
  29. http://www.ohwr.org/projects/fr_pcb_mm/wiki (Acesso em 26 de setembro de 2014)
  30. http://www.pronterface.com/ (Acesso em 28 de Outubro de 2014)
  31. http://flatcam.org/ (Acesso em 28 de Outubro de 2014)
  32. Existe uma iniciativa aberta na Wikiversidade para a avaliação colaborativa das ferramentas CAD livres existentes e levantamento das funcionalidades essenciais a fim de promover seu desenvolvimento. Disponível em português e inglês em https://pt.wikiversity.org/wiki/Pesquisa:Ferramentas_livres:Desenvolvimento_de_CAD_Livre (acesso em 1 de setembro de 2014)
  33. Como os desenhos de instrumentação eletrônica do repositório de hardware aberto mantido pelo CERN em http://www.ohwr.org (Acesso em 28 de Outubro de 2014)
  34. http://cernandsociety.web.cern.ch/technology/kicad-development (Acesso em 28 de Outubro de 2014)
  35. A Unesco adotou em 2002 o conceito de Recursos Educacionais Abertos. http://www.unesco.org/new/en/communication-and-information/access-to-knowledge/open-educational-resources/ (Acesso em 25 de outubro de 2014).
  36. http://www.unesco.org/new/fileadmin/MULTIMEDIA/HQ/CI/WPFD2009/Portuguese_Declaration.html, (acesso em 25 de outubro de 2014)
  37. http://www.openp2pdesign.org/2011/open-design/business-models-for-open-hardware/ (Acesso em 26 de outubro de 2014)
  38. Centro de Tecnologia Acadêmica. http://cta.if.ufrgs.br (Acesso em 28 de Outubro de 2014)
  39. Existem diversas iniciativas cidadãs de monitoramento climático e ambiental tais como http://www.smartcitizen.me/ e http://www.wunderground.com/ (Acessos em 28 de Outubro de 2014). A iniciativa do Centro de Tecnologia Acadêmica busca também a educação nos aspectos científicos e tecnológicos dos cidadãos envolvidos na aquisição de dados.