Barthes (Mitologias, 1957), "O usuário da greve"

Fonte: Wikiversidade

O USUÁRIO DA GREVE

Ainda existem pessoas para as quais a greve é um escândalo: isto é, não só um erro, uma desordem ou um delito, mas também um crime moral, uma ação intolerável que perturba a própria Natureza. Inadmissível, escandalosa, revoltante, dizem alguns leitores do Figaro, comentando uma greve recente. Para dizer a verdade, trata-se de uma linguagem do tempo da Restauração, e que exprime a sua mentalidade profunda; é a  época em que a burguesia, que assumira o poder havia pouco tempo, executa uma espécie de junção entre a Moral e a Natureza, oferecendo a uma a garantia da outra: temendo-se a naturalização da moral, moraliza-se a Natureza; finge-se confundir a ordem política e a ordem natural, e conclui-se decretando imoral tudo o que conteste as leis estruturais da sociedade que se quer defender.

Para os prefeitos de Carlos X, assim como para os leitores do Figaro de hoje, a greve constitui, em primeiro lugar, um desafio às prescrições da razão moralizada: fazer greve é "zombar de todos nós", isto é, mais do que infringir uma legalidade cívica, é infringir uma legalidade "natural", atentar contra o bom senso, misto de moral e lógica, fundamento filosófico da sociedade burguesa.

Nesse caso, o escândalo provém de uma ausência de lógica: a greve é escandalosa porque incomoda precisamente aqueles a quem ela não diz respeito. É a razão que sofre e se revolta: a causalidade direta, mecânica, e mesmo computável, que já consideramos como o fundamento da lógica pequeno-burguesa nos discursos do Sr. Poujade, essa causalidade é perturbada: o efeito se dispersa incompreensivelmente longe da causa, escapa-lhe, o que é intolerável e chocante. Ao contrário do que se poderia pensar sobre os sonhos pequeno-burgueses, essa classe tem uma concepção tirânica, infinitamente suscetível, da causalidade: o fundamento da moral que professa não é de modo algum mágico, mas sim racional. Simplesmente, trata-se de uma racionalidade linear, estreita, fundada, por assim dizer, numa correspondência numérica entre as causas e os efeitos. O que falta a essa racionalidade é, evidentemente, a ideia das funções complexas, a imaginação de um desdobramento longínquo dos determinismos, de uma solidariedade entre os acontecimentos, que a tradição materialista sistematizou sob o nome de totalidade.

A restrição dos efeitos exige uma divisão das funções.

Pode-se facilmente imaginar que os "homens" sejam solidários: o que se opõe, não é, portanto, o homem ao homem, mas sim o grevista ao usuário. Este (também denominado homem da rua, que,  considerado um todo coletivo, recebeu o inocente nome de população: já vimos que tudo isso está no vocabulário do Sr. Macaigne) é uma personagem imaginária, quase algébrica, graças à qual se torna possível romper a dispersão contagiosa dos efeitos e conservar firmemente uma causalidade reduzida, sobre a qual vai se poder raciocinar, tranquila e virtuosamente. Recortando na condição geral do trabalhador um estatuto particular, a razão burguesa rompe o circuito social e reivindica, para seu proveito, uma solidão que a greve tem precisamente como objetivo. O usuário, o homem da rua e o contribuinte são, pois, verdadeiras personagens, isto é, atores a quem foram distribuídos papéis de relevo, de acordo com as necessidades, e cuja missão é preservar a separação essencialista das células sociais, como se sabe o primeiro princípio ideológico da Revolução burguesa.

Com efeito, encontramos aqui um traço constitutivo da mentalidade reacionária, que consiste em dispersar a coletividade em indivíduos e o indivíduo em essências. Aquilo que todo o teatro burguês faz com o homem psicológico, colocando em conflito o Idoso e o Jovem, o Marido enganado e o Amante, o Padre e o Mundano, os leitores do Figaro fazem-no com o ser social: opor o grevista e o usuário é constituir o mundo como teatro, extraindo do homem total um ator particular, e confrontar esses atores arbitrários na mentira de um simbolismo que finge acreditar que a parte é apenas uma redução perfeita do todo.

Tudo isso participa de uma técnica geral de mistificação que consiste em formalizar o mais que possível a desordem social. Por exemplo, a burguesia não se preocupa, segundo ela, em averiguar de que lado está a razão na greve: depois de ter dividido os efeitos entre si para melhor isolar o único que lhe diz respeito, procura desinteressar-se da causa; a greve é assim reduzida a uma incidência solitária, a um fenômeno de que se omite a explicação para melhor tornar manifesto o escândalo que constitui. Do mesmo modo, tanto os funcionários públicos quanto os trabalhadores em geral são abstraídos da massa trabalhadora, como se o  estatuto de assalariados desses trabalhadores fosse de algum modo atraído, fixado e depois sublimado na própria superfície de suas funções. Esse estreitamento interessado da condição social permite esquivar o real sem abandonar a ilusão eufórica de uma causalidade direta, que só começaria onde conviesse à burguesia: assim como o cidadão se encontra subitamente reduzido ao mais puro conceito de usuário, os jovens franceses aptos à mobilização acordam certa manhã evaporados, sublimados na pura essência militar, que fingirá se tomar virtuosamente como ponto de partida natural da lógica universal: o estatuto militar torna-se, assim, a origem incondicional de uma causalidade nova para além da qual será sempre monstruoso querer elevar-se; portanto, contestar este estatuto não pode ser de modo algum o efeito de uma causalidade geral e prévia (consciência política do cidadão), mas apenas o produto de acidentes posteriores ao início da nova série causal: do ponto de vista burguês, o fato de um soldado se recusar a partir só pode ser fruto da ação de instigadores ou de bebedeiras, como se não houvesse outras razões sérias que explicassem tal gesto: crença cuja estupidez disputa com a má-fé, visto ser evidente que a contestação de um estatuto só pode expressamente encontrar raiz e alimento numa consciência que se distanciou desse estatuto.

Trata-se, novamente, da ação nociva do essencialismo. É lógico, portanto, que, em face da mentira da essência e da parte, a greve institua o devir e a verdade do todo. Ela significa que o homem é total, que todas as suas funções são solidárias umas às outras, que os papéis de usuário, contribuinte ou militar são muralhas demasiado frágeis para se opor à contaminação dos fatos e que, numa sociedade, tudo diz respeito a todos. Protestando contra a greve que a incomoda, a burguesia revela uma coesão das funções sociais, e manifestá-lo é precisamente o objetivo da greve: o paradoxo é que o homem pequeno-burguês invoca o natural do seu isolamento no momento preciso em que a greve o curva sob a evidência da sua subordinação.