Barthes (Mitologias, 1957), "Um operário simpático"

Fonte: Wikiversidade

UM OPERÁRIO SIMPÁTICO

O filme de Kazan, Sur les quais, é um bom exemplo de mistificação. Trata-se, como todo mundo certamente já sabe, de um belo estivador indolente e um tanto bruto (Marion Brando) cuja consciência vai despertando pouco a pouco, graças ao Amor  e à Igreja (apresentada sob a forma de um padre de oposição, do estilo spellmaniano); como este despertar coincide com a eliminação de um sindicato fraudulento e abusivo, parecendo levar os estivadores a resistir a alguns dos seus exploradores, houve quem pensasse que poderia tratar-se de um filme corajoso, um filme de "esquerda", destinado a mostrar ao público americano o problema do operário.

De fato, trata-se, mais uma vez, da vacina da verdade, cujo mecanismo extremamente moderno já mencionei a propósito de outros filmes americanos: desvia-se para um grupinho de gângsteres a função de exploração do grande patronato, e, com este pequeno mal confessado, visto como uma ligeira e desgraciosa pústula, afasta-se o mal real, evitando-se mencioná-lo e exorcizá-lo.

Basta, porém, descrever objetivamente os papéis do filme de Kazan para estabelecer, sem a mínima contestação, o seu poder mistificador: o proletariado é constituído por um grupo de seres apáticos, curvando-se sob o peso de uma servidão que constatam sem coragem de a abalar: o Estado (capitalista) confunde-se com a Justiça absoluta; é o único recurso possível contra o crime e a exploração: se o operário consegue chegar ao Estado, à sua polícia e às suas comissões de inquérito, está salvo. Quanto à Igreja, sob as aparências de um pretenso modernismo, é apenas uma potência mediadora entre a miséria constitutiva do trabalhador e o poder paternal do Estado-patrão. No final, aliás, todo este prurido de justiça e consciência é rapidamente apaziguado, para se converter na grande estabilidade de uma ordem benéfica, na qual os operários trabalham, os patrões cruzam os braços, e os padres abençoam uns e outros nas suas devidas funções.

Aliás, é o seu próprio final que trai o filme, no momento que muitos pensaram que Kazan assinalava astuciosamente o seu progressismo: na última sequência, vê-se Brando, num esforço sobre-humano, conseguir apresentar-se ao patrão, que o espera, como um operário consciencioso. Ora, o tal patrão está  visivelmente caricaturado. E comentou-se: vejam como Kazan ridiculariza cruelmente os capitalistas.

Eis uma boa ocasião para aplicarmos o método de desmistificação proposto por Brecht e examinarmos as consequências da nossa adesão, desde o início do filme, à personagem principal. É evidente que, para nós, Brando é um herói positivo e que, apesar dos seus defeitos, o amor da multidão está do seu lado, segundo o fenômeno de participação, geralmente tido como indispensável para que haja o espetáculo. Quando este herói, dignificado pela recuperação de sua consciência e coragem, ferido, exausto e, no entanto, tenaz, dirige-se ao patrão, que o reintegra no trabalho, a nossa comunhão com ele é ilimitada, identificamo-nos, totalmente e sem refletir, com este novo Cristo e participamos sem reservas do seu calvário. Ora, a dolorosa elevação de Brando conduz de fato ao reconhecimento passivo do patronato eterno: a cantiga que nos cantam, apesar de todas as caricaturas, é o regresso à ordem; com Brando, os estivadores e todos os trabalhadores da América, entregamo-nos, com um sentimento de vitória e alívio, nas mãos de um patronato cuja imagem viciada já é inútil apresentar: há muito que estamos presos, ligados por uma pegajosa comunhão de destino, ao estivador que só reencontra o sentido da justiça social para o doar ao capitalismo americano, prestando-lhe assim uma homenagem.

Como se vê, é a natureza "participativa" dessa cena que a transforma, objetivamente, num episódio de mistificação.

Conduzidos a gostar de Brando desde o início, deixamos de poder criticá-lo ou mesmo de tomar consciência da sua objetiva estupidez. Sabe-se que foi precisamente contra o perigo de tais mecanismos que Brecht propôs o seu método de distanciamento do "papel" representado. Brecht teria pedido a Brando para ostentar a sua ingenuidade para nos fazer entender que, apesar de toda a simpatia que possamos ter pelas suas desventuras, é mais importante ainda conhecer-lhes as causas e as soluções. Pode-se resumir o erro de Kazan dizendo que aquilo que deveria  ser proposto ao público, para ser julgado, era menos o capitalismo do que o próprio Brando. Pois há muito mais a esperar da revolta das vítimas do que da caricatura de seus carrascos.