Carta do GeoNarrar para o COMUPRA

Fonte: Wikiversidade

O coletivo de comunicação do Comupra me pediu para escrever sobre Geonarrativas -- e o projeto GeoNarrar/Peabiru -- para as pessoas da comunidade que estão engajadas no movimento Deixem o Onça Beber Água Limpa. É um desafio pra mim, tão habituado a escrever textos acadêmicos e relatórios para a burocracia universitária...

Na falta de melhor solução pra ele, creio que o caminho mais fácil é contar a história da iniciativa. Há aproximadamente 4 anos atrás, um velho amigo - o arquiteto Eduardo Memória - me procurou para desenvolver um projeto de educação midiática para capacitar e mobilizar pessoas das comunidades participantes do projeto LUMEs (Lugares de Urbanidade Metropolitana - http://www.rmbh.org.br/lumes.php) da Grande Belo Horizonte. Trata-se de um projeto ousado, desenvolvido por professores da Escola de Arquitetura e da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, dirigido à tornar o planejamento urbano amplamente acessível aos cidadãos comuns e às organizações comunitárias.

Na época, isso resultou em um projeto chamado Oficinas Luminárias, que não foi realizado por conta de falta de recursos e dificuldades burocráticas. Porém, a produção do projeto deixou muito evidente o quanto é promissor uma combinação de estratégias instituições de participação popular no planejamento urbano com práticas de mobilização coletiva através de vídeos (e outros produtos midiáticos, como sites e aplicativos) produzidos pelas proprias comunidades. Depois, graças ao aprofundamento da nossa pesquisa com vídeos interativos e games, e em vista da popularização dos geogames com a coqueluche do Pokemon Go, começamos a trabalhar com a produção de protótipos de geonarrativas na disciplina Comunicação e Cultura, para o curso de Turismo. Nesse contexto, os estudantes desenvolviam propostas de sites e aplicativos que favorecessem aos "anfitriões" organizar e governar as atividades de turismo de base comunitária.

Depois de várias experiências, nossa proposta agora é convergir esforços com o Comupra e com o Deixem o Onça Beber Água Limpa, dado que se tratam de organização e ação concreta de transformação de uma paisagem urbana ambientalmente degradada em um espaço de lazer, segurança alimentar, democratização da ciência e geração de oportunidades para uma população, que, apesar de ser de modo geral de baixa renda, é imbuída de enorme orgulho por sua capacidade comprovada de mobilização coletiva na busca de melhoria das condições de vida.

Mas o que é uma geonarrativa? Primeiramente, deixe-me ser explicito: o nome completo da estratégia que estamos propondo é "geonarrativas de auto-mobilização coletiva". Vamos explicar esses termos:

Antes de mais nada, é necessário diferenciar que o que chamamos aqui de "narrativa" daquilo atualmente passou a ser chamado de "narrativas", ou seja, histórias que parecem verdadeiras, mas que ninguém consegue comprovar, que sustentam projetos políticos de domínio.

"Narrativa", para nós, é aquele relato diante do qual quem escuta aprende sobre a sua própria história; é aquela maneira de contar na qual o narrador não apenas compartilha a própria experiência, mas também constrói um projeto comum futuro. A longa história de lutas do COMUPRA, resultando no Movimento Deixem O Onça Beber Água Lima (MDOOBAL), ao propõe o Parque Comunitário Ciliar, o Território de Aprendizagem, "Brincar, nadar e pescar no Onça", torna-se uma narrativa desse tipo: não só conta a nossa história comum, mas também nos compromete com construirmos juntos as nossas vitórias futuras. Nosso querido Itamar de Paula é um narrador, nesse sentido. Não conta acontecimentos distantes ou desconectados de nós, não fala apenas de um passado comum: convida-nos a inventarmos futuros juntos/as.

Mas e o "geo"? Há inúmeras tecnologias e metodologias para coletar, organizar e analisar informações através de mapeamentos, sondagens locais, equipamentos de georreferenciamento. Na medida em que essas informações são concetradas e "digeridas" a partir de algum objetivo definido, esses sistemas -- chamados de GIS e VGIS, na terminologia acadêmica (Geographical Information Systems e Video Geographical Information Systems) -- tornam-se ferramentas de ação de grande eficiência, pois permitem que problemas espacialmente dispersos sejam percebidos, analisados e enfrentados com ações planejadas de larga escala. No entanto, quando estudamos as referências de teorias e relatos de uso desses sistemas, rapidamente se observa que a concentração de saber que eles promovem fica quase sempre nas mãos de agentes priviliegiados: governos e empresas. As populações locais são reduzidas, quando não afornecedoras de dados passivas, mão de obra barata para as sondagens e pacientes dessas ações governamentais ou empresariais.

Mas essa não é a única configuração possível para os sistemas de informação geográfica. Há uma longa tradição dos movimentos anticapitalistas, de democratização das comunicações, de luta pelas tecnologias, cultura e natureza livres, de desenvolver arranjos de informação e comunicação em que as pessoas comuns tomam essas ferramentas para se auto-organizar e agir juntas, sem depender da benevolência de ricos e poderosos, justamente para contestá-los. A mobilização social se torna uma poética de auto-mobilização coletiva. Concentrar informação e produzir conhecimento sobre os territórios, são atividades politicamente importantes demais para ficarem nas mãos de acadêmicos, políticos ou empresários. Mas não basta produzir saber, é preciso desencadear ação coletiva. São estas as geonarratias que estamos propondo desenvolver com o COMUPRA, com as comunidades da bacia do Ribeirão do Onça e com as escolas das redes públicas de ensino da Região Nordeste de BH. Pelo contato reestabelecido com este Conselho Comunitário, desde meados do ano passado, graças à iniciativa dos estudantes da disciplina "Comunicação Comunitária", pudemos observar diversas ações -- desde a sensibilização poética para as questões ambientais periurbanas até a resolução de problemas compartilhados com a COPASA -- em que a estratégia das geonarrativas de auto-mobilização pode catalisar a soberania das comunidades sobre seu ambiente, não só natural, como também político, para benefício de todos. Estou, diante disso, disposto e empenhado a desenvolvê-la com todas as pessoas e organizações engajadas nas buscas do COMUPRA, do MDOOBAL e das comunidades escolares da Região Nordeste de BH.

Esperançoso com nossa futura aliança, despeço-me.

Em Solidariedade,

Prof. Bráulio de Britto Neves.