Factores químicos
Lipofilicidade, estrutura, ionização
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A distribuição dos xenobióticos é profundamente afectada pela lipoficilidade e, consequentemente, a actividade biológica. Compostos lipófilos têm uma melhor distribuição nos tecidos do que os compostos hidrófilos, podendo exercer aí os seus efeitos tóxicos ou sendo sequestrados e redistribuídos mais tarde para outros tecidos. O tiopental e o pentobarbital são um exemplo da importância deste parâmetro. Diferem apenas num átomo tendo acidez semelhante mas coeficientes de partição muito diferentes. O tiopental é muito mais lipófilo e por isso passa rapidamente a barreira hematoencefálica causando o seu efeito farmacológico, a anestesia. A duração do efeito é, contudo, muito curta pois ocorre redistribuição para outros tecidos com diminuição do composto no plasma e, por equilíbrio, no SNC. O pentobarbital tem uma distribuição muito mais lenta e, apesar da concentração atingida no cérebro ser mais baixa que a do tiopental, o seu efeito prolonga-se durante mais tempo.
Existe uma correlação entre a nefrotoxicidade de um aminoglicosídeo, como a gentamicina, e a sua estrutura, não obstante a influência de outros factores. De facto, quanto mais ionizáveis os grupos amina do aminoglicosídeo maior a nefrotoxicidade. A razão para tal reside no facto de haver ligação aos grupos fosfato das células tubulares proximais, nos rins, o que provoca a acumulação do fármaco.
Alguns agentes químicos (incluindo muitos fármacos) causam acumulação de fosfolípidos (fosfolipidose) que está directamente relacionada com as propriedades físico-químicas do próprio xenobiótico ou dos metabolitos. Isto significa que a molécula em questão deverá ter uma região hidrofóbica, para interagir com o lípido e uma região hidrofílica, para interagir com a fase aquosa. Os fármacos que causam fosfolipidose são, de facto catiónicos e anfipáticos; contêm uma estrutura hidrofóbica em anel e uma cadeia lateral hidrofílica com um grupo amina e assim podem interagir com as regiões apolar e polar dos fosfolípidos. A lipofilicidade do fármaco afecta a permeabilidade membranar. A hidrofobicidade permite uma interacção com os receptores membranares mas a natureza catiónica afecta o movimento de catiões (Na+ e Ca2+) através da membrana celular. Este tipo de moléculas, ao ligar-se aos fosfolípidos, inibe a sua hidrólise pelas fosfolipases. Também podem interagir com as próprias fosfolipases limitando a sua actividade catalítica e podem ainda influenciar a síntese de fosfolípidos.
O metabolismo também é afectado pelas características físico-químicas dos compostos. Em relação às monooxigenases, há uma relação entre a lipofilicidade de um substrato, dada pelo coeficiente de partição, e o metabolismo por certas vias como a N-desmetilação, por exemplo. Esta correlação nem sempre é clara pois há intervenção de outros factores. Quanto à ionização, esta pode impedir a metabolização.
O tamanho e a estrutura química são claramente importantes no metabolismo. Por exemplo, substratos (e inibidores) da CYP2D6 necessitam de ter uma estrutura com: uma região hidrofóbica, um azoto básico carregado positivamente, grupos com potencial negativo e capacidade de aceitar ligações de hidrogénio a uma distância de 5 a 7 Å do átomo de azoto. Moléculas muito grandes podem não ser rapidamente metabolizadas por não encaixarem no local activo das enzimas. De facto, a estrutura molecular vai determinar que tipo de transformação metabólica irá ocorrer. Outro exemplo da influência da estrutura é o caso dos hidrocarbonetos policlorados como os dibenzofuranos e os bifenilos. Estes compostos têm uma séries de efeitos tóxicos associados que se pensa serem mediados pelos receptores AhR (aryl hidrocarbon receptor). Acontece que nem todos os isómeros causam efeitos secundários. Com efeito, há certos isómeros geométricos em que há um impedimento estérico à conformação plana. Quando isto acontece, a molécula deixa de poder actuar nos seus receptores exibindo menor toxicidade.
Quiralidade
[editar | editar código-fonte]A presença de um centro estereogénico numa molécula implica a existência de enantiómeros para os quais a eliminação pode ser drasticamente diferente, o que se traduz em diferenças na toxicidade e na actividade biológica. Sobe o ponto de vista bioquímico, é claro que os sistemas biológicos são quirais, ou seja, há uma diferenciação entre isómeros fazendo com que seja possível que apenas um seja metabolizado ou exerça uma dada função. Estas considerações aplicam-se, logicamente, às moléculas endógenas, aos fármacos e a qualquer xenobiótico.
Um exemplo flagrante da importância da quiralidade na toxicidade de uma molécula é o da talidomida: o enantiómero S (-) tem uma toxicidade para o embrião muito superior à do enantiómero R (+). Outro exemplo é o caso do exo-óxido da aflatoxina B1, em que apenas um dos isómeros tem actividade carcinogénica.
A quiralidade afecta as quatro fases da disposição dos xenobióticos. A absorção talvez seja a menos afectada por muitas vezes não depender de ligações a receptores específicos. Se envolver transporte activo verifica-se o efeito da quiralidade. É o caso da L-DOPA, que é muito mais rapidamente absorvida do que a sua forma D. A distribuição pode ser afectada a nível da ligação a proteínas e a tecidos. Por exemplo, a razão da ligação a proteínas plasmáticas dos enantiómeros (+) e (-) do ibuprofeno é de 1,5. Outro exemplo, é o do propranolol, cuja forma S acumula-se nas porções terminais dos nervos adrenérgicos de certos tecidos como os do coração. A excreção renal também pode ser afectada pela quiralidade, provavelmente como resultado de uma secreção activa. Assim, a terbutalina apresenta uma razão entre a excreção das formas (+) e (-) de 1,8. A etapa da disposição que sofre efeitos mais importantes da quiralidade é o metabolismo. Esses efeitos podem ser divididos em quatro tipos:
- Estereosselectividade para o substrato (efeito de moléculas quirais existentes à priori)
- Estereosselectividade para o produto (produção de moléculas quirais)
- Inversão da configuração
- Perda da quiralidade
Estereosselectividade para o substrato
[editar | editar código-fonte]Quando há administração de misturas racémicas de fármacos ou compostos estranhos em animais, o que acontece frequentemente, verifica-se um metabolismo estereosselectivo: pode haver formação de dois ou mais produtos enantioméricos ou metabolização de apenas um dos enantiómeros (ou ainda metabolização a diferentes taxas para os diferentes enantiómeros). Estas situações têm implicações na actividade biológica. Mais ainda, as diferenças nas vias e nas taxas de metabolização para os diferentes enantiómeros podem estar na base das diferenças genéticas, do órgão ou da espécie, verificadas para a toxicidade. O citocromo P-450, a epóxido hidrolase, glutationa transferase e outras enzimas são responsáveis por metabolismo estereosselectivo.
Como exemplo do primeiro tipo de efeito quiral, podemos citar o bufuralol. Nesta molécula, a hidroxilação na posição 1’ dá-se apenas para a forma (+) enquanto o enantiómero (-) sofre preferencialmente hidroxilação na posição 4 e 6. A glucoronidação do hidroxilo da cadeia lateral só ocorre na forma (+). Nos humanos esta situação complica ainda mais: a 1-hidroxilação está sob controlo genético e a selectividade das hidroxilações é inexistente em indivíduos com baixa metabolização. Outros fármacos como o propranolol, o metoprolol e a varfarina sofrem também metabolização por vias diferentes consoante a forma enantiomérica em que se apresentem.
Estereosselectividade para o produto
[editar | editar código-fonte]O benzo[a]pireno é um exemplo do segundo tipo de efeitos. Esta molécula é um hidrocarboneto policíclico com propriedades carcinogénicas e é metabolizada estereosselectivamente por uma isoenzima particular do sistema citocromo-P450, a CYP1A1, originando o óxido (+)-7R,8S. Por sua vez, esta molécula é metabolizada a diidrodiol (-)-7R,8R pela epóxido hidrolase. Este produto é ainda metabolizado a (+)-benzo[a]pireno, 7R,8S-diidrodiol e 9S,10S-epóxido, com configuração trans do hidroxilo e do epóxido, apresentando uma mutagenicidade superior à de outros enantiómeros. Deste modo, o (-)-7R,8S-diidrodiol do benzo[a]pireno é 10 vezes mais mutagénico do que o enantiómero (+)-7R,8S. Neste caso, a tumorogénese é mais dependente da configuração do que da própria reactividade química. Outro exemplo deste tipo de efeito é o caso do naftaleno, responsável por danos pulmonares em certas espécies. Ao sofrer metabolização origina um epóxido predominantemente na forma 1R,2S nas espécies susceptíveis, e com razões 1R,2S:1S,2R de um ou menos em espécies não susceptíveis. Sabe-se que a epóxido hidrolase actua preferencialmente sobre a forma 1R,2S. A relação entre a estereosselectividade da metabolização do naftaleno e a toxicidade pulmonar ainda não está completamente clarificada mas verificam-se diferenças na citotoxicidade dos dois enantiómeros em hepatócitos isolados.
O naftaleno é também exemplo de uma situação mais complexa em que há formação de um produto com dois centros estereogénicos, ou seja, com diastereoisómeros. Isto pode acontecer, por exemplo, devido à conjugação de duas moléculas quirais, neste caso, o xenobiótico ou metabolito com a glutationa ou o ácido glucorónico. O epóxido do naftaleno pode ser aberto pela glutationa tanto na posição 1 como na 2 originando os quatro possíveis diastereoisómeros. A formação de diastereoisómeros apresenta uma variação interespecífica nos testes realizados in vitro.
Inversão da configuração
[editar | editar código-fonte]A inversão de configuração, o terceiro tipo de efeito quiral, pode ser exemplificada com o ibuprofeno. Este fármaco é um ácido arilpropiónico anti-inflamatório que sofre conversão da forma inactiva (R) na forma bioactiva (S). Além disso, ocorre a formação selectiva de um tioéster com a coenzima A e a forma (R) do ibuprofeno o que leva a que haja uma incorporação desta forma no tecido adiposo. O tioester pode também sofrer inversão de configuração e ambos os isómeros são incorporados nos triglicerídeos formando produtos híbridos. Assim, quando se adiminstra o ibuprofeno na forma (R) ou em mistura racémica, ocorre mais acumulação no tecido adiposo do que quando se adiministra o enantiómero (S). Apesar de não se conhecer o destino dos produtos híbridos formados, poderá haver interferência no metabolismo lipídico com toxicidade associada. Isto será particularmente importante no caso da administração crónica. Outros factores afectam a inversão de configuração, nomeadamente a espécie e a redução da excreção renal.