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Infância

Fonte: Wikiversidade

A infância constitui-se como objetivo de estudo de várias áreas do conhecimento, sua construção histórica pode ser encontrada tanto em pesquisas de caráter biológico, como no âmbito da psicologia e ciências sociais. Segundo Bourdieu[1] ), as relações entre a idade social e a idade biológica são muito complexas. A idade biológica depende estritamente do desenvolvimento do sujeito, individualmente, já a idade social é composta por diversos fatores subjetivos como, por exemplo, capital cultural e simbólico, que qualificam o sujeito em um momento social.

 O termo “infância” em latim é in-fans, que significa sem linguagem, a idade do não falante. No interior da tradição filosófica ocidental, não ter linguagem significa não ter pensamento, não ter conhecimento, não ter racionalidade. O termo é equivocadamente confundido com criança, embora este último esteja relacionado às etapas de desenvolvimento biológico e a infância, assim, em perspectivas não biológicas, como na filosófica, o termo infância relaciona-se a um dado social, historicamente construído a partir dos interesses sociais, econômicos, culturais, políticos ou outros de uma dada sociedade, num determinado tempo e lugar, porém ainda é dado como sinônimo de criança.

Embora, evidentemente, em todos os tempos tenha havido crianças, o sentimento e noção de infância, bem como de preocupação e investimento da sociedade, como um todo, e individualmente dos adultos sobre as crianças tem sido transformando. Nesse sentido, poderíamos dizer que as variadas formas de regulação da infância e da família são ideias que surgem com a modernidade, visto que infância enquanto categoria social é uma ideia moderna.[2][3]

Na Grécia antiga, por exemplo, não havia um termo ou conceito para designar a infância, utilizavam-se palavras ambíguas para classificar qualquer pessoa que estivesse num estágio entre a infância e a velhice. Durante a idade média, por sua vez, a infância durava até os sete anos de idade, pois a partir daí a criança passaria a compreender o que os adultos diziam. Nesse sentido, na idade média, as crianças eram vistas como adultos em miniatura, portanto, sem separação do que seria adequado para adultos e crianças. As crianças, participavam de um mundo sem censuras: assuntos com trabalho, entretenimento e sexualidade eram abertos e vivenciados por todos.

As discussões em torno da infância encontram nos estudos de Ariés[4] – historiador francês que trouxe à tona a história social da infância no continente europeu – elementos que mostram que a “descoberta” da infância, ou seja, a evidência da particularidade infantil, a especificidade da criança ou aquilo que a diferencia do adulto teve seu início ao se representá-las na história da arte e da iconografia dos séculos XV, no final do século XVI e em todo o século XVII.

Para Ariés [4], a ausência de representações da vida da criança, que ocorre até a Idade Média, se explica pelo o desinteresse por essa fase da vida que se mostrava tão instável e ao mesmo tempo representativa. O historiador aponta que os séculos XV e XVI apresentaram uma “iconografia leiga”, oposta à religiosa, que representa cenas da vida cotidiana, na qual a criança aparece na presença dos adultos em diferentes situações. No século XVI, as crianças também eram retratadas mortas, esculpidas nos túmulos, acompanhadas dos pais e irmãos, indicando uma outra visão a respeito da criança que morre cedo e anunciando que a criança começava a sair do anonimato mesmo sob as mesmas condições demográficas. Ele identificava a coexistência, de um lado, sentimentos de indiferença e insensibilidade em relação à criança e, de outro, um sentimento novo em relação a essa mesma fase da vida.

No decorrer do século XX crianças foram principalmente investigadas pela psicologia, pela pedagogia e pouco pelas ciências sociais. Na linha de cunho biologicista, alguns estudiosos do Desenvolvimento Motor, como, por exemplo, Gallahue e Ozmun[5], dividem a infância em período inicial da infância, de 2 a 6 anos de idade, e período posterior da infância, de 6 a 10 anos.

Na Psicologia, o estudo do desenvolvimento do ser humano constitui uma área do conhecimento cujas proposições concentram-se no esforço de compreender o homem em todos os seus aspectos, englobando fases desde o nascimento até o seu mais completo grau de maturidade e estabilidade. Piaget[6] considera 4 períodos no processo evolutivo da espécie humana, são eles:

  • 1º período: Sensório-motor - (0 a 2 anos);
  • 2º período: Pré-operatório - (2 a 7 anos);
  • 3º período: Operações concretas - (7 a 11 ou 12 anos);
  • 4º período: Operações formais - (11 ou 12 anos em diante;

O período da infância no quadro dos estudos sobre desenvolvimento infantil é qualificado pela dinâmica de mudanças no indivíduo tais como, imaturidade à maturidade (sexual), incompetência à competência (cognitiva), incapacidade à capacidade (motora funcional), entre outras. Todas essas variáveis constam como estados menos desejáveis a um estado mais desejável. Assim, a infância como período é uma fase antecipatória e transitiva para a fase da vida adulta. Nessa linha, a perspectiva da infância é preparar o indivíduo para a fase adulta ao ser superada com sucesso. O caráter reducionista desse conceito se baseia por um estado intermediário de maturação e desenvolvimento humano, que tende a interpretar as crianças como indivíduos que se desenvolvem independentemente da construção social das suas condições de existência e das representações e imagens historicamente construídas sobre e para eles[7].

A concepção biológica sobre a criança pasteuriza, assepsia, esteriliza, mede, esquadrinha, normatiza e normaliza a criança e prescreve uma infância. A Psicologia medirá a inteligência, prescreverá o desenvolvimento, dividirá as crianças por idades, por capacidade mental, elaborará standarts para observar etapa por etapa da infância até a adolescência. A idade será uma marca, uma categoria prática, fixa e precisa, delimitará os “desviantes”, as crianças imaturas, as que não aprendem, as que não se desenvolvem, determinar-se-á as idades da fala, do andar, de viver sem fraldas entre outras questões.[8]

Concomitante, o conceito de infância aparece inicialmente nas pesquisas sociológicas e antropológicas principalmente pelos estudos da socialização. Por mais que o tema tenha sido abordado por autores da sociologia, o olhar nas pesquisas era sempre em uma perspectiva preparatória. Ao tratarem de infância e crianças pensava-se nas crianças como uma categoria social, coletiva, mas nunca como em uma estrutura. Seu significativo em comum era o fato de que caminhavam para a fase adulta. Autores da sociologia clássica como Parsons[9] e Davis[10] deliberadamente e conscientemente argumentaram favoráveis a posição de espera da infância meramente em relação ao futuro.

Há pouco mais de 20 anos os estudos na linha sociológica apresentaram questões impactantes em relação às linhas já consolidadas: o que são as crianças uma vez que estão presentes no mundo não apenas como um sujeito que um dia será cidadão? São as crianças ativas no mundo e tudo o que advém dele? As crianças são reprodutoras daquilo que lhes é transmitido ou elas agem e transformam o que vivem? Elas transformam sua realidade a partir de uma lógica infantil própria e a realidade social para as crianças é também um fenômeno sociológico? A infância é uma categoria constrangida por movimentos sociais tanto quanto as outras?

A longa caminhada dos pesquisadores que se debruçaram em responder essas questões tem consolidado a infância como um fenômeno social. Assim, novas linhas de pesquisa se pautam na “infância como segmento na estrutura social e as aplicações de uma perspectiva estrutural [...], define uma pesquisa que difere tanto de pesquisas sobre socialização quanto de estudos sobre desenvolvimento infantil [...]”. (p. 631) [11].

Nesse movimento surge a sociologia da infância como área na qual se propõe a interrogar a sociedade a partir de um ponto de vista que perspectiva as crianças como objeto de investigação sociológica por direito próprio, fazendo acrescer o conhecimento, não apenas sobre infância, mas sobre o conjunto da sociedade globalmente considerada[12].

A Sociologia da Infância

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De acordo com Sarmento[7], a Sociologia da Infância compreende a infância como objeto sociológico, um contraponto à lógica psicologizante e biologistas que a restringem a um estado de maturação e desenvolvimento, independente da construção social, seu contexto histórico, cultural e condições de vida. E ainda, tem buscado evidenciar a presença de uma diversidade de infâncias, recusando uma concepção uniformizadora desta: “as crianças são também seres sociais e, como tais, distribuem-se pelos diversos modos de estratificação social: a classe social, a etnia a que pertencem, a raça, o gênero, a região do globo onde vivem. Os diferentes espaços estruturais diferenciam profundamente as crianças” (p.10)[3].

A Sociologia da Infância surge em meados da década de 30, Marcel Mauss foi o responsável por adicioná-la no seio das Ciências Sociais. Logo depois, porém, o estudo sociológico da infância passa por um mecanismo de exclusão no bojo das pesquisas acadêmicas e somente na década de 80, com as mutações concretizadas no campo infantil, os acadêmicos do continente europeu e da América do Norte acolhem a infância enquanto estágio fundamental da existência, e como um fator essencial na arquitetura social.

Para Delgado & Müller[13], a sociologia da infância tem ganhado destaque por propor o importante desafio teórico-metodológico de considerar as crianças atores sociais plenos. Falar das crianças como atores sociais é algo decorrente de um debate acerca dos conceitos de socialização no campo da sociologia.

No Brasil, um dos precursores sobre os estudos da infância foi Florestan Fernandes que focalizou a criança em suas pesquisas, na década de 1940, e sua contribuição para este campo de estudo, advinda do registro inédito de elementos constitutivos das culturas infantis, captadas a partir de observação sobre grupos de crianças e suas brincadeiras. Ele foi pioneiro ao estudar as crianças brincando na rua e assim construiu os conceitos de “grupo infantil” e “cultura infantil”. Já na década de 90, José de Souza Martins publica sua pesquisa sobre as crianças do meio rural e faz alerta importante, reconhecendo o absurdo que a criança não é um informante fidedigno nas pesquisas no campo da Sociologia.

Diante das contribuições recentes da Sociologia da Infância, os estudos no Brasil tem ampliado o entendimento sobre diversos aspectos das complexas e intrincadas relações sociais, culturais, regionais vividas pelas crianças, pelas infâncias no país que caracteriza-se pela intensa desigualdade social que atinge as várias infâncias de maneiras diferentes e evidenciam as diferentes formas de opressão e discriminação presentes em nossa sociedade, tais como a discriminação sexual, étnica, classista, regional.

Os estudos contemporâneos, nos quais podemos citar os realizados pela sociologia da infância, trazem como tese principal o fato de que as crianças participam coletivamente na sociedade e são dela sujeitos ativos e não meramente passivos. Ou seja, trazem uma proposta de estudar a infância por si própria, rompendo com o adultocentrismo, entendendo a criança como um ser sociohistórico, produtora de cultura. Portanto, nesse sentido usar o termo infância no singular, é restringir esse universo multicultural a uma regra única, como se todas as crianças vivenciassem a mesma infância. Seria correto afirmar que existem várias infâncias, que dependerão do arcabouço de experiências, acesso, oportunidades que a criança terá.

Para Sarmento[7], a infância é historicamente construída e continuamente atualizada em sua prática social, nas interações entre crianças e nas interações entre crianças e adultos. Fazem parte do processo as variações demográficas, as relações econômicas e os seus impactos diferenciados nos diferentes grupos etários.  Acrescenta ainda que a geração infância está por consequência, num processo contínuo de mudança tais mudanças não se realizam ao mesmo tempo, sendo diferente em cada momento. Portanto as várias infâncias existem, pois, a criança é um grupo geracional, distinto do adulto, diferem-se uma das outras e nessa diversidade há fatores sociais acentuados que não são puramente individuais.

Infância como estrutura permanente

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Três principais termos coexistem nos estudos da infância e das crianças: a infância como período (indivíduo), as infâncias (coletivas e plurais) e a infância (estrutura). Em termos estruturais, diferente de um período, a infância não pode ser compreendida com começo e fim temporais, pois é compreendida como uma categoria permanente de qualquer estrutura geracional.

A infância no singular surge ao se constatar a infância como um componente das estruturas da sociedade e não como uma mera fase preparatória, possuidora de conjuntos de parâmetros estruturais, tais como econômicos, políticos, sociais, culturais e tecnológicos, parâmetros ideológicos e discursivos. Esses parâmetros são parte de realidades sociais, sendo considerados em escalas macro (globais ou mundiais) e micro (relações entre as pessoas em suas localidades e territórios). Os processos que envolvem esses parâmetros, por exemplo a implementação de uma política pública, como ela afeta determinada região e como constrange um grupo de pessoas, transformam desenhos sociais que possuem forma e cores diferentes de acordo de quem participa dessa configuração[14]. Dessa configuração outro movimento dá mais vida ao desenho social, os jogos de força que ora puxam para um sentido, ora para outro. Assim, conforme as relações, valores e parâmetros se transformam, a infância, como as demais categorias adulta e velhice, também se transforma enquanto categoria geracional. A infância na idade média possuía uma imagem de acordo com a sociedade da época. A infância de hoje é imagem de processos globais em interação com os locais, como explica o autor abaixo:

Em outras palavras, a infância tanto se transforma de maneira constante assim como é uma categoria estrutural permanente pela qual todas as crianças passam. A infância existe enquanto um espaço social para receber qualquer criança nascida e para incluí-la- por todo o período da sua infância [como indivíduo]. Quando essa criança crescer e se tornar um adulto, a sua infância terá chegado ao fim, mas enquanto categoria a infância não desaparece, ao contrário, continua a existir para receber novas gerações de crianças (p. 637).[11]

 Esses parâmetros também constrangem as outras categorias geracionais como a adulta e a velhice, uma vez que todas as categorias estão expostas aos mesmos parâmetros externos e são impactadas com intensidade e forças diferentes. Partindo disso, deve-se considerar que a influência e recursos sociais não são os mesmos entre as categorias. Assim, interesses, jogo de forças e satisfação são levados ou não em consideração nessas relações gerando conflitos e disposições intergeracionais. Nesse cenário, constituintes como classe e gênero têm permanência, nesse sentido, porém a peculiaridade a respeito das gerações enquanto categorias estruturais é a rapidez de quem são seus constituintes, há sempre uma substituição quase que total entre gerações levando um tempo maior ou menor, diferente do que ocorre, por exemplo, nas classes que não preveem uma substituição de seus indivíduos.  Portanto, ao estudar a infância enquanto categoria geracional, se faz necessário observar os parâmetros e movimentos inter-geracionais, parâmetros e valores que constrangem a sociedade, tanto quanto considerar as particularidades de mudanças de cada contexto e grupo pesquisado. 

Esse verbete foi escrito como etapa obrigatória de conclusão da disciplina de “Transmissão Intergeracional, Educação e Trabalho” no Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Todos aqueles que participaram do curso, matriculados ou não, contribuíram com a construção de um verbete. Assim sendo, aos estudantes (reais autores do texto) à totalidade dos agradecimentos pelo saber compartilhado. 

Referências Bibliográficas

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  1. Entretien avec Anne-Marie Métailié, paru dans Les jeunes et le premier emploi, Paris, Association des Ages,1978
  2. SARMENTO, Manuel Jacinto e PINTO, Manuel. As crianças e a infância: definindo conceitos, delimitando o campo. In: SARMENTO, Manuel Jacinto e PINTO, Manuel. As crianças, contextos e identidades. Braga, Portugal. Universidade do Minho. Centro de Estudos da Criança. Ed. Bezerra, 1997.
  3. 3,0 3,1 SARMENTO, Manuel Jacinto. As culturas da infância nas encruzilhadas da 2ª modernidade. In: SARMENTO, Manuel Jacinto; CERISARA, Ana Beatriz (Coord.). Crianças e Miúdos. Perspectivas sociopedagógicas sobre infância e educação. Porto. Asa, 2004.
  4. 4,0 4,1 ARIÉS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.
  5. GALLAHUE, David L; OZMUN, John C. Compreendendo o Desenvolvimento Motor: Bebês, Crianças. Adolescentes e Adultos. Editora Phorte. 3ª ed.: São Paulo. 2005.
  6. PIAGET, Jean. Teoria da aprendizagem na obra de Jean Piaget. São Paulo: UNESP, 2009.
  7. 7,0 7,1 7,2 SARMENTO, Manuel Jacinto. Gerações e Alteridade: Interrogações a partir da Sociologia da Infância. Educação Social, Campinas, vol. 26, n.91, p. 361-378, Maio/ Ago. 2005.
  8. ABRAMOWICZ, Anete. OLIVEIRA, Fabiana. A Sociologia da Infância no Brasil: uma área em construção. Educação, Santa Maria, v. 35, n. 1, p. 39-52, jan./abr. 2010. Disponível em <http://www.ufsm.br/revistaeducacao>
  9. PARSONS, T. The social system. London: Free Press, 1964.
  10. DAVIS, K. The child and the social structure. The journal of Educatiob Sociology, v.14, n.4, p.2017-29, 1940.
  11. 11,0 11,1 QVORTRUP, J. A infância enquanto categoria geracional. Educação e Pesquisa, v.36, n.2. p. 631-643, maio/ago 2010.
  12. CORSARO, W. A., Sociologia da infância. Porto Alegre: Artmed, 2011.
  13. DELGADO, Ana Cristina Coll. MÜLLER, Fernanda. Sociologia da infância: pesquisa com crianças. Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 351-360, Maio/Ago. 2005 351. Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
  14. ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 1999.