Nöth Magia

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Magia#1[editar | editar código-fonte]

A magia é uma forma de semiose. Suas origens estão intimamente conectadas com a mais antiga história da semiótica. Sua estrutura é determinada por princípios semióticos gerais. Mas, conforme o critério válido para atos comunicativos normais, a magia se fundamenta em uma falácia semiótica, um engano a respeito do efeito pragmático dos signos e de sua relação semântica com objetos. Visualizar a magia como uma falácia semiótica, porém, é inadequado, caso não se adote a perspectiva complementar da magia como uma forma potencialmente efetiva de comunicação, a partir da qual pode ser vista como uma terapia semiótica.

1. Origens da semiótica na magia[editar | editar código-fonte]

Nos mais recuados primórdios da cultura, a magia era intimamente associada não apenas com a ciência em geral (Thorndike 1923, Hansen 1986), mas também com a semiótica, em particular. A etimologia de diversos conceitos semióticos básicos indica que a origem da ciência dos signos pode ser encontrada no contexto de rituais mágicos. A palavra inglesa spell ainda quer dizer tanto “nomear ou imprimir em ordem as letras de uma palavra” quanto “uma palavra falada que se crê ter poderes mágicos”. A runa paleogermânica não é apenas um signo do código alfabético rúnico; a palavra também denota, ‘charme’ [encanto]*2, encantamento mágico.

Outro caso interessante é a etimologia de glamour, no sentido original de ‘um encantamento mágico’ ou ‘enfeitiçamento’. Essa palavra é uma derivação da palavra grammar [gramática], vinda da associação entre erudição semiótica com práticas de ocultismo. A etimologia da palavra alemã Bild   [imagem] também contém um elemento da magia, a saber, o étimo germânico *bil-, “signo milagroso’.

Tais evidências etimológicas indicam que nas origens de nossa história cultural, o conhecimento e o emprego de letras, escrita e finalmente também da gramática, estiveram [e ainda estão...] intimamente relacionados com a familiaridade com práticas de magia.*3* Evidentemente, tal conexão permaneceu sendo aceita por muitos séculos. As origens culturais das pinturas e da arte em geral (cf. Kris 1952:47-56; Koch, ed. 1982) podem também ser achadas na esfera da magia.

2. Magia como uma forma de semiose[editar | editar código-fonte]

Práticas mágicas operam por meio de signos, e tais signos são motivados pelos mesmos princípios gerais válidos para outras formas de semiose. Para aspectos subsequentes da semiose mágica, vide Lange-Seidl, ed. (1988).

2.1. Exemplos de Semioses Mágicas[editar | editar código-fonte]

Um encantamento inglês antigo prescreve a queima da cabeça de um cão como remédio para dores de cabeça (cf. Nöth 1977b). Uma fórmula folclórica mais recente (cf. Nöth 1986) recomenda o pronunciamento da seguinte conjuração como uma terapia contra a febre: “Febre, febre, vá embora. / Não venha pra minha cama agora.”*43. Tais exemplos mostram como a magia é uma forma de semiose. No primeiro caso, há um ícone não verbal a representar a destruição da doença. No segundo caso há um ato de fala de um pedido, endereçado à doença. Em ambos os casos, há um remetente comunicando uma mensagem a um destinatário.

2.2 Motivação semântica do signo mágico[editar | editar código-fonte]

Signos mágicos são freqüentemente motivados semanticamente pelo tipo de efeito que se aceita que eles tenham. Frazer fazia a distinção entre as magias, conformes à “lei da similaridade” (mágicas homeopáticas) e à “lei do contato” (mágicas contagiosas). Jakobson re-interpretou tais “leis” em termos dos pólos metafóricos e metonímicos da semiose (1956:258; cf. Rhetoric 2.3.1; vide tb. Leach 1976: 29). Nas categorias semióticas de Peirce, tais tipos referem-se aso signos icônicos e indiciais. Além desses dois tipos de semiose mágica, há também signos arbitrários, isto é, signos mágicos simbólicos (cf. Nöth, 1977b; 1986).

As formas de motivação do signo mágico tem sido usualmente interpretadas como resultado de falácias semânticas. O ícone mágico era interpretado como um caso do sofisma similia similibus evocantur (o semelhante produz o assemelhado). O índice mágico tem sido associado com as falácias post hoc, ergo propter hoc (se é posterior, então é causado pelo anterior) e pars per toto (a parte pelo todo). Esta motivação icônica ou indicial dos signos, contudo, é tão universal que não pode ser enxergada como uma peculiaridade específica da magia.*54

2.3 Formas e tipologia da magia[editar | editar código-fonte]

A tipologia da magia, abaixo, a partir de pontos de vista semióticos, oferece apenas uma investigação genérica do campo.

2.3.1 Magia branca e negra[editar | editar código-fonte]

Conforme o critério do suposto efeito mágico, folcloristas distinguem entre magia branca e negra. Com a magia branca, o agente solicita um evento positivo ou deseja prevenir um negativo. A magia negra visa efeitos negativos ou deseja evitar positivos.

2.3.2 Signos mágicos não lingüísticos[editar | editar código-fonte]

Há signos mágicos lingüísticos e não lingüísticos. Signos mágicos não lingüísticos tem a forma de atos não verbais, imagens visuais (ícones mágicos), artefatos semióticos tais como amuletos icônicos e talismãs e signos naturais (índices), especialmente amuletos indiciais (pars pro toto).

2.3.3 Magia verbal[editar | editar código-fonte]

A magia verbal pode ser explícita ou implícita. A primeira é o uso aberto da linguagem para propósitos mágicos. A última aparece como a renúncia ao uso da linguagem devido à crenças mágicas. Encantamentos [“charms”] são exemplos de magia explícita. Eles tanto contem um ato de fala de conjuração ou são meras descrições de práticas mágicas não verbais tais como instruções para terapias mágico-médicas. Outra forma de magia verbal explícita é a “magia dos nomes”. Ela é baseada na admissão de que a adoção, o conhecimento e o uso de um nome tenham um a influência sobre a pessoa que o carrega. As formas principais de magia verbal implícita são os tabús lingüísticos e os eufemismos (cf. Bruneau 1952, Todorov 1973). O tabú é a omissão de palavra causada pelo temor de seu efeito no seu uso. O eufemismo é a substituição de um termo correspondente de uma palavra tabú.

2.3.4 Códigos mânticos[editar | editar código-fonte]

Associados à semiose mágica natural são os signos de códigos mânticos são (cf. Guiraud 1971: 5965), a adivinhação através da constelação de estrelas (astrologia) ou da Terra (geomancia; cf. Jaulin 1970), pela jogo/manipulação de cartas (cartomancia; cf. Lekomceva & Uspiensij 1977, Aphek & Tobin 1986), pela migração de pássaros (auspícios), pela água (hidromancia) e leitura de café no fundo de copos, pelo exame da mão (quiromancia) e por outros fenômenos naturais e artefatos. *65 Enquanto a semiose mágica visa uma influência ativa – embora sobrenatural – sobre o mundo, a semiose mântica opera na direção inversa. Signos mânticos são interpretados como um índice das forças sobrenaturais determinantes do mundo. Diferentes da magia, a anomalia semiótica da mântica não é tanto a dimensão pragmática de seus efeitos quanto é a anomalia de um remetente mântico (as estrelas, a mão &c.) e a correspondência entre a mensagem e eventos no mundo.*76

3. A magia como uma falácia semiótica[editar | editar código-fonte]

Desde o fim do século XIX, várias escolas de antropologia têm tentado dar uma explicação para o fenômeno da magia (cf. Petzoldt, ed. 1978). Com alguma simplificação, podem ser distinguidas duas abordagens principais. A primeira visão, que adota uma perspectiva “exterior”, de um observador científico, busca explicar a magia como uma falácia semiótica. A segunda visão, que assume uma perspectiva “interior”, dos agentes mágicos, descreva a magia como um ato de comunicação potencialmente bem-sucedido. Iniciando com a primeira perspectiva, os atos mágicos aparecem como formas de semiose que, em comparação com os atos comunicativos normais, mostram anomalias em suas dimensões pragmáticas e semânticas.

3.1 A anomalia pragmática no ato mágico[editar | editar código-fonte]

A peculiaridade pragmática específica à magia é a tentativa do mágico em usar signos com o fito de obter um efeito imediato sobre o mundo não semiótico.*86 Uma anomalia adicional, concernente ao destinatário é observada nas conjurações mágicas, nas quais os signos são endereçados a entidades que absolutamente não são normalmente parceiros na comunicação, por exemplo, um objeto material, uma doença, ou uma pessoa ausente (cf. Todorov 1973: 41, Nöth 1986).

3.1.1 A anomalia do efeito imediato[editar | editar código-fonte]

A anomalia na tentativa do mágico de alcançar um efeito imediato no mundo por meio de signos pode ser elucidado com referência às condições normais segundo as quais um falante pode influenciar o mundo não semiótico dos objetos ou organismos. O efeito normal dos signos é sempre um efeito mediado. Signos são meios ou ferramentas (...) de influenciar o mundo. A semiose, conforme a definição inicial de Morris, é um “dar-se-conta-de-algo-mediadamente” (1938:4). Portanto, o comunicador deve primeiro dirigir uma mensagem para um receptor antes que um ato de semiose bem-sucedido possa resultar em um ato com qualquer influência no mundo. Enquanto na semiose normal é possível haver apenas um efeito prático mediado sobre o mundo, espera-se da semiose mágica que ela tenha um efeito prático imediato. O signo mágico, segundo Maritain, “não só faz homens saber, faz coisas serem; é uma causa eficiente em si mesmo” (1957: 96). (Quanto às similaridades e diferenças entre a magia e os atos práticos cotidianos, vide também a discussão de Leach [1976:32] sobre a “tecno-mágica no lar”.)

3.1.2 Impossibilidade científica[editar | editar código-fonte]

Segundo Tylor, o mágico “tenta descobrir, prenunciar e causar eventos” (1871, vol1: 104). Na mágica genuína, tais efeitos não devem nem resultar de um ato prático, nem ser causados por um evento natural que pudesse parecer ocorrer independentemente da ação do mágico. Este pré-requisito levou muitos antropólogos a postular uma oposição entre ciência e magia. A magia conta com a crença que seu suposto efeito possivelmente não pudesse ser obtido através da natureza ou da ciência. Assim, a magia contaria com os limites do cientificamente possível, tal como Todorov (1973: 41) salientou. Morris chegava mesmo a considerar a ineficiência factual como característica específica da magia, em geral: “O que costuma-se chamar de ‘magia’”, escreve, “é a persistência de técnicas quando há evidência de que as práticas não influenciam de fato o alcançamento de uma meta, especialmente quando estas práticas são simbólicas por natureza” (1946: 221).*97

3.2 A anomalia semântica e a teoria do mundo mágico[editar | editar código-fonte]

Considerada a partir do ponto de vista semântico, a anomalia na magia consistiria numa suposição falaciosa acerca da relação entre signo e objeto (cf. Nöth 1977a: 65). Frazer, por exemplo, avaliava tal anomalia semântica da seguinte maneira (citado por Freud 1913:83): “Os homens confundiram a ordem de suas idéias com a ordem da natureza, e, por conseguinte, imaginaram que o controle que eles têm, ou parecem ter, sobre seus pensamentos, os permitiria exercer um controle correspondente sobre as coisas.” Em contraposição à comunicação normal, na qual signos podem no máximo ser motivados por seus objetos, o mágico confia que a manipulação do significante mágico pode influenciar o objeto ao qual o signo se refere.

A anomalia semântica da relação supostamente direta, ou mesmo causal, entre signo e objeto é um assunto central da teoria de “mundo mágico” desenvolvida por Ogden & Richards (1923) em colaboração com Malinowski (vide tb. Ogden 1934). A elaboração posterior desse princípio, com a extensão à linguagem cotidiana e às mídias massivas, é uma preocupação central da Semântica Geral de Korzybski (1933;...). A presunção de uma conexão imediata entre signo e objeto na magia tem também sido definida como uma falácia denotativa (Tambiah 1968: 187). Uma generalização muito mais dilatada do princípio do pensamento mágico foi proposta por Izutsu (1956). A teoria conotativa de mundo mágico, desse autor, sustenta a onipresença do pensamento mágico em todas as esferas do discurso.

4. Magia como uma terapia semiótica[editar | editar código-fonte]

Depois de Tylor (1871), a visão “exterior” da magia a partir do ponto de vista científico alcançou seu clímax com o trabalho de Frazer. Segundo seu juízo, a magia era um “sistema errôneo” ou mesmo “uma falácia grandemente desastrosa” (1922: 26). Do ponto de vista “interior”, porém, a magia é um ato comunicativo que é potencialmente bem-sucedido para os agentes mágicos. Esta perspectiva foi aberta por autores como Mauss (1902), Malinowski (1925), Evans-Pritchard (1937), Lévi-Strauss (1958) e Boesch (1983). Malinowski, por exemplo, interpreta a açãomágica como uma atividade semiótica com a função de fechar brechas na realização de atividades práticas da vida (1925: 79, 90). Tal visão da magia como uma fuga de e uma alternativa para contradições da prática conduz às mais recentes interpretações psicoterapêuticas do fenômeno (cf. Schimdtbauer 1971, Hsu 1983). Também segundo essa perspectiva, a magia não tem efeito imediato, mas há uma influência indireta do signo no inconsciente dos agentes mágicos. Portanto, o efeito da magia é o de uma terapia semiótica para o corpo ou para as ações práticas dos participantes.


Referências[editar | editar código-fonte]

1 Nöth, W. Handbook of Semiotics. Indiana: Indiana University Press, 1990. P. 188-191. Tradução de Bráulio de Britto Neves.

2 Evidencia-se também aqui o duplo caráter de “encanto” e “charme”: denotam tanto a simpatia quanto o enfeitiçamento. Também “imagem” tem a mesma origem de “mágica”. Notemos, ainda, que, tal como as situações formais exigem aplicação estrita dos códigos gramaticais, a eficácia de feitiços e encantamentos depende da execução rigorosa de preceitos e procedimentos pré-codificados (ou da estado emocional correspondente a tal execução). (N. do T.)

3** Muitos críticos associam as práticas da crítica ao fetichismo da mercadoria, de Marx, a crítica histórica de Benjamin, e também a interpretação dos sinais do inconsciente (sonhos, atos falhos, chistes) de Freud como derivações dos hábitos de interpretação de textos sagrados, como a Cabala. (N. do T.)

4*3 “Fever fever stay away./ Don’t come to my bed today”.

5*4 A obra de Freud demonstra que esses dois princípios são constitutivos do desejo (deslocamento, metonímia) e do sujeito (substituição, metáfora); portanto, a magia apenas extrapolaria as hipóteses que constituem a propria consciência individual. (N. do T.)

6*5 Além desses recursos, há ainda os oráculos como objetos, como o Tarot, os búzios iorubanos (“Mão de Ifá”) e moedas ou palitos do Livro das Mutações chinês (I Qing). Esses apetrechos são utilizados tanto para finalidades prognósticas, diagnósticas e mesmo apotropáicas (como a seqüência de cartas de Tarot desejada, enxertado no baralho). Sua utilização depende do treinamento para a associação entre manipulação, exegese de textos indexados (caso do I Qing e dos búzios) indicados pelos resultados das ações materiais, bem como intensa prática interpretativa das configurações dos elementos. Há ainda outras práticas divinatórias, como as dos arúspices (adivinhação a partir do vôo de pássaros) e Áugures (adivinhação através da interpretação das entranhas de animais sacrificados). Dentre essas sistemas de práticas e objetos, a astrologia é hoje, provavelmente, a mais popular. (Cf. Benjamin, 1986: 108-113).

7*6 No entanto, a aposta em uma não descontinuidade entre os estratos ou esferas da realidade é a mola mestra da investigação sobre as mediações no mundo humano, natural e entre eles. Isso é uma aposta quase tão antiga quanto a cultura (vide a leitura da natureza, a que se refere Foucault na primeira parte de seu As palavras e as coisas, ou na perspectiva do chamado taoismo filosófico – Lao Tz, Chuang Tz, Sun Tz- cf. Jullien, O Tratado da Eficácia e Figuras da Imanência. N. do T.)

8*6 Esse raciocínio depende de supor-se a existência de um mundo semiótico e de outro não-semiótico; é o mesmo pressuposto que permite distinguir aspectos semânticos e pragmáticos. A semeiótica peirceana não assume essas suposições, mas ao contrário, que por um lado, não há nenhuma parte do universo que não tenha dimensão sígnica, e que não há nenhuma prática que não dependa de uma atribuição de sentidos; por outro lado, postula que o sentido dos signos não pode ser extraído de seu uso atual, prático. A perspectiva que posturla uma separação entre dimensões não semióticas e semióticas é a perspectiva dualista derivada do cartesianismo, e que é plenamente desacreditada tanto pela semiótica pragmaticista quanto pelos “Science Studies”, desdobrados da filosofia do processo de Whitehead (N. do T.).

9*7 Esse enquadramento, que exsuda preconceitos etnocêntricos, paradoxalmente permitem-nos tomar tanto a própria concepção de fato (como apercepção imediata do real) e quanto a de uma realidade extra-semiótica, também como exemplos de concepções mágicas, no caso, sobre os processos cognitivos e epistemológicos! Como afirma Latour (Petite Réflexion sur le Culte Moderne des Dieux Faitiches), quem acredita na possibilidade de ação não mediada sobre o mundo não são os “primitivos”, mas os próprios modernos. (N. do T)