Reportagens do JOA/Gabriella Lima e Vitória Amá

Fonte: Wikiversidade

Quando até a memória é esquecida

Entre folhagens de árvores malcuidadas e paredes marcadas por inscrições em grafite, se localiza um personagem histórico. É um local escuro, ainda que esteja sob a luz do dia. Talvez a escuridão seja um reflexo, não de uma fonte cristalina como a de uma bica, mas de uma memória esquecida. O odor de urina que exala do local não é convidativo, porém esta característica não impede que as pessoas transitem por seu conjunto de escadas, mentes ocupadas com assuntos outros que não sejam o mau cheiro do local ou os evidentes buracos afundados na rua. As paredes de azulejo adornam redomas cimentadas que servem atualmente como bancos, seus desenhos em azul escuro já não podendo ser vistos com tanta clareza, ignorados por trás de camadas de tinta e sujeira. O espaço que serviria como piscina de um chafariz sequer contém água, sua única inundação vaza apenas mais camadas espessas de sujeira e esquecimento.

O termo obelisco para os antigos egípcios representava “proteção” e “defesa”, entretanto, a mesma simbologia não se aplica ao Obelisco da Memória, mais conhecido por Obelisco do Piques, localizado no Largo da Memória, Centro de São Paulo. O monumento mais antigo de São Paulo não consegue oferecer proteção a si mesmo – engolido pela cidade e o urbano, a impressão que a pedra de granito deixa não é marcante, pelo contrário, passa despercebida aos olhos de quem transita por seus arredores.

Apesar de ser o monumento mais antigo da cidade de São Paulo, o Obelisco do Piques tem de esquecido tanto quanto tem de solitário. Foi construído em 1814 pelo mestre Vicentinho, em conjunto com um chafariz, acompanhante este que, alguns anos depois, em 1872, o deixou sozinho no largo entre as ladeiras da Palha e do Piques. Sem o chafariz, o Largo da Memória seria, ironicamente, esquecido.

A placa à frente do obelisco, onde se lê em letras apagadas “em memória da realização de obras públicas”, só foi honrada no começo século seguinte com uma reforma que traria de volta um chafariz e acrescentariam os azulejos azuis e uma escadaria de pedra. Mas foi uma questão de tempo para que o monumento caísse em esquecimento novamente. Em homenagem aos seus duzentos anos de história, o monumento e seu entorno foram restaurados; coisa que não se percebe em momento algum andando por ali. 

Jair, de 61 anos, mora próximo ao Largo há três anos. Quando perguntado sobre o Obelisco, ele ressalta que não costuma reparar no monumento, também afirmando que não chegou a ver a reforma de 2014. Para ele, o Obelisco é um patrimônio que deveria ser preservado, mas o descuido com o local não proporciona tal efeito de importância. Ele pergunta: “Limpar pra que?”. Os fluxos de moradores em situação de rua bem como as constantes pichações são, para Jair, os principais problemas que impedem que a obra seja plenamente apreciada, e acima de tudo, vista.

Mas parte dos problemas que seu Jair vê na região desaparece quando um carro da prefeitura com três funcionários dentro aparece descendo a ladeira. Os moradores de rua que antes dormiam nos degraus da escada de pedra ou nos bancos ao redor do chafariz não são mais vistos enquanto os funcionários da prefeitura rondam o local, examinando cada bloco de pedra ao redor do monumento. “Aqui é limpo diariamente, a prefeitura limpa”, diz um dos funcionários. Apesar de afirmar que as reclamações sobre o Largo da Memória são recorrentes, ele continua a afirmar que o lugar é limpo. Seu Jair parece discordar. Quem passa por ali, com a mão cobrindo o nariz, também. O Largo da Memória e o próprio Obelisco parecem ter sido esquecidos de vez; e, dessa vez, por todos ao seu redor.