Saúde mental e liberdade (curso de extensão)

Fonte: Wikiversidade

Descrição do curso[editar | editar código-fonte]

O Curso Saúde Mental e Liberdade se apresenta como um processo formativo de incursão e investigação coletiva que visa facilitar e mediar debates sobre a práxis antimanicomial, ofertando subsídios para aqueles e aquelas que tenham como compromisso ético-político um cuidado em saúde mental em liberdade. O movimento da luta antimanicomial, como parte de um campo maior de luta pela desinstitucionalização da vida, reivindica o cuidado em liberdade como um elemento central do horizonte ético de uma sociedade sem manicômios. Por isso, desde a primeira desinstalação de um manicômio no Brasil, costuma-se enfatizar a importância do cuidado em liberdade. Em tempos marcados pela tônica de um processo de remanicomialização no campo das políticas públicas de saúde mental do país, consideramos importante nos dedicarmos a pensar coletivamente sobre essa questão tão ampla e polissêmica que é a liberdade, e o seu vínculo com a produção de saúde mental. Por isso, mais do que a oferta de um curso aos moldes academicistas, objetivamos construir espaços de trocas, diálogos, e, ainda mais importante, de fortalecimento da militância antimanicomial, de modo a somar esforços no processo de resistência contra à institucionalização e objetificação da vida. O curso será distribuído em seis módulos interdependentes, os quais serão facilitados cada um por um convidado ou convidada. Os convidados terão total liberdade para realizar os módulos, contanto que estejam alinhados à proposta geral do curso.

Organização[editar | editar código-fonte]

Prof. Dr. Caio Maximino (Unifesspa)

Dr. Wander Wilson (Unifesp)

Esp. Dassayeve Távora Lima (mestrado em Psicologia e Políticas Públicas, UFC)

Monitorias[editar | editar código-fonte]

Vanessa dos Santos Sousa

Maria Emília Pirovano de Almeida

Ementa[editar | editar código-fonte]

Poder e resistências no campo da saúde mental; Concepções de saúde e loucura; Classe, raça, gênero, colonização, e saúde mental; Reducionismo, emergentismo, e neurociência crítica; Modelo biomédico vs. modelo relacional, e relações com a racionalidade neoliberal; Drogas, autogestão do prazer, e redução de danos.

O percurso investigativo[editar | editar código-fonte]

A liberdade radical que atravessa esse curso exige que o pensamento crie novas formas. Romper com relações de poder é também romper com hierarquias de professores, expositores, e todo tipo de profetas. Um percurso investigativo é uma forma de produzir novos modos de enxergar, de criar novos territórios existenciais implicados, atravessados pelo pensamento-luta. Ler e discutir ideias prontas não nos interessa; o que precisamos é cons-pirar e co-investigar. Assim, antes de tudo o percurso investigativo é uma forma de criar pensamentos dissidentes, e sobretudo um método experimental:

Essa experimentação é política, pois não se trata de fazer com que as coisas “melhorem”, e sim de experimentar em um meio que sabemos estar saturado de armadilhas, de alternativas infernais, de impossibilidades elaboradas tanto pelo Estado como pelo capitalismo. A luta política aqui, porém, não passa por operações de representação, e sim, antes, por produção de repercussões, pela constituição de “caixas de ressonância” tais que o que ocorre com alguns leve os outros a pensar e agir, mas também que o que alguns realizam, aprendem, fazem existir, se torne outros tantos recursos e possibilidades experimentais para os outros. Cada êxito, por mais precário que seja, tem sua importância” (I. Stengers).

Iniciaremos cada módulo bem antes do encontro; propomos um texto, construindo em parte pelos organizadores e mediadores do curso, e em parte pelos participantes. A ideia é gerar uma "zona autônoma temporária" de confluência entre as ideias, fazeres e pensamentos dos co-investigadores. A função desse texto não é demarcar o caminho, mas estimular o pensamento. O resultado, esperamos, será a produção - ainda que precária e parcial - de práticas e conhecimentos que inspirem a todes ils participantes, falando, a partir de nossas vidas e de nossas pesquisas, sobre a liberdade e sobre a saúde mental, em uma prática epistêmica corporificada. Esses textos serão adicionados abaixo, nessa página mesmo. Você pode contribuir antes dos encontros adicionando pensamentos e informações no nosso pad (link enviado pelo e-mail). Você também pode contribuir durante os encontros não somente trazendo suas inquietações, leituras, vivências, e experiências, mas também registrando essas ideias (e as ideias colocadas per sues cons-piradores) no pad.

O primeiro encontro: Manicômios e a lógica manicomial[editar | editar código-fonte]

Wander Wilson, redutor de danos do PROAD UNIFESSPA

1. O mito de origem dos manicômios é narrado por meio de uma liberação que o funda. Pinel havia mandado serrar as correntes dos loucos, e a partir de então, a liberdade de circulação em um ambiente fechado passaria a configurar uma possibilidade de cura pelo Asilo. Os loucos se deslocavam entre pavilhões, pátios, duchas geladas, choques, punições.  Certa mobilidade espacial foi importante para a produção do Asilo como instância de produção da obediência compreendida como cura.

2. Este deslocamento era também externo à realidade do Asilo. Inserido no que Michel Foucault chamava de Sociedade Disciplinar, os indivíduos se deslocavam entre espaços fechados como a fábrica, a escola, a caserna, o hospital.  Produz-se interioridades fechadas, incluindo aqui o próprio conceito de indivíduo, autoconsciente, autônomo, dotado de uma psique exclusiva.

3. A família habita as relações de força dessas instituições, atuando como um poder soberano que expulsa um de seus membros para estas prisões da saúde, ou aparecendo como princípio de correção no tratamento moral. No segundo caso, o louco era comparado com as crianças em seu triângulo familiar, dotadas de menos racionalidade. A mesma comparação ocorria com os povos colonizados. A comparação entre o louco e o colonizado fundamenta a prática psiquiátrica e estabelece o manicômio como uma colonização interna ao Estado.

4. Hoje, mesmo quando as práticas de saúde mental valem-se de espaços fechados muito próximos da instituição asilar, como as comunidades terapêuticas, elas tendem a conjugar de alguma forma o que chamamos de meio aberto. É preciso que os pacientes se desloquem pelas ruas, por um cinema, que se insiram no mercado de trabalho entregando currículos, mesmo que internamente se explore sua força de trabalho não remunerada como princípio de recuperação.

5. É preciso pensar o meio aberto como princípio de novas liberdade e a produção de novas sujeições, incluindo aqui uma readaptação de uma lógica manicomial.

6. Quando a saúde se individualiza em meio aberto seus cuidados se tornam permanentes. O CID-6 introduziu, por exemplo, a preocupação com “problemas de saúde”, democratizando uma distribuição branda da patologia. A mesma análise valeria para o conceito de Transtorno Mental.

7. Quando a sua preocupação com a saúde mental ganha a forma individual em meio aberto, se está preso em si mesmo? Um indivíduo sem mundo?

O segundo encontro: História da luta antimanicomial - Ontem e hoje[editar | editar código-fonte]

Dassayeve Távora de Lima, adm. do @saudementalcritica

Manicômios existem. Inicio este texto com esse dado concreto, quase axiomático. Tomo-o como ponto de partida para chegar a uma outra questão: como superá-los. Essa questão farei depois, ao fim. Por enquanto, retomo o fato incontestável de que manicômios existem. Acredito que até aqui poucas dúvidas existam quanto a isso, até porque sequer entrei no mérito de avalia-los: estes são bons? São ruins? Eficientes? Locais de tortura? Reitero apenas – e desculpe a insistência – que manicômios existem.

Há, portanto, que se pensar no seguinte: se manicômios existem, estes existem enquanto estruturas reais e concretas – no sentido de que estas instituições constituem e são constituídas pelas relações humanas reais, no intercurso social de produzir e reproduzir a vida.

Bom, a partir daqui tomarei liberdade para chegar objetivamente aonde quero chegar. Todo esse percurso e explicação insistentemente materialista teve uma única função: evidenciar que os manicômios não surgem do nada, não existem do nada, não se reproduzem ex nihilo. Não são instituições abstratas, que repousam em um mundo ideal e que, por acaso, vem pairar sob o mundo material, na vida cotidiana que conhecemos. Não se tratam de meros discursos (ainda que a ordem do discurso nunca seja “meramente alguma coisa”). Tratam-se, sobretudo, da dimensão da ideologia que se torna “força material”. A ideologia que se incorpora nas relações sociais e se corporifica, se tornando, como diria Zizek, em ideologia em si e para si – ideologia materializada. Isso significa que os manicômios não surgiram de abstrações do plano ideal, mas, sobretudo, como reflexo, como conjunto de determinações de uma “necessidade” profundamente material e social, situado num contexto muito específico política e historicamente. É o que Althusser vai dizer em “Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado”: é a base material, a estrutura social e econômica, que vai demandar a produção e constituição de uma superestrutura que mantenha, reproduza e naturalize ideologicamente o modo de organizar, produzir e reproduzir esta dinâmica social – ou seja, os alicerces ditam como deve ser construído o restante do prédio.

Bom, até aqui, imagino que tenha conseguido demarcar meu posicionamento em favor de uma leitura materialista histórica dialética dos manicômios e da lógica manicomial. Espero ter conseguido minimamente situar o caráter material dos manicômios e da lógica (ideologia) que faz com que essa dinâmica se reproduza. Dado o caráter investigativo da nossa proposta, após esse pontapé inicial, farei algumas perguntas que espero que norteiem nosso diálogo:

1) Qual a função social dos manicômios? Por que eles existem? A quem eles atendem?

2) Com base no exposto, qual seria o horizonte estratégico de um movimento político que se propõe construir uma sociedade sem manicômios?

3) O que significa pensar em uma radicalidade da práxis antimanicomial?

O terceiro encontro: Neoliberalismo e a gestão do sofrimento[editar | editar código-fonte]

Marina Thuane e Gabriela Fernandes, adm. do @smrevolucionaria

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Podemos partir do ponto de que o Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil nasce após intensas mobilizações sociais. Na contramão do que se pode pensar, a Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB), em paralelo à Reforma Sanitária, se configura em um cenário sociopolítico e econômico complexo. A luta acontecia em processo de redemocratização - que segue frágil - e o neoliberalismo tomava corpo. Isso aconteceu na década de 1970, mas atualmente, podemos pensar em alguns aspectos que rememoram esse período e que, igualmente, têm impactos na realidade e políticas públicas. Além disso, a expressão do neoliberalismo hoje também nos levar a pensar sobre quais as possibilidades de mobilização social na atualidade.

É importante olhar o contexto da RPB para compreender os avanços e os retrocessos vivenciados. Ao abordar e discutir a temática da “saúde mental”, podemos considerar as políticas públicas voltadas a esse campo, e também as possibilidades em compreender o “processo” de saúde. Aqui, chamaremos “processo” por compreender - tal como subsidia a epidemiologia crítica - saúde enquanto algo complexo, dinâmico e que se dá em dado momento da história e que está socialmente determinado.

As conformações do campo da saúde mental tomam suas nuances e se reverberam atreladas à realidade do contexto sócio-histórico e suas incidências nas políticas sociais. Fala-se sobre contrarreforma psiquiátrica como um processo que se desdobra com mais intensidade após o golpe de 2016, mas que, evidentemente, é histórico, não linear, e portanto, revitaliza e resgata questões essenciais ao modo de ser brasileiro. Nesse movimento, as políticas, que visam a garantia de direitos, sofrem constantes desinvestimentos e desmontes. Em paralelo a isso, há o fomento aos manicômios, os hospitais psiquiátricos e as comunidades terapêuticas, em detrimento dos serviços de base territorial e também uma criminalização dos movimentos sociais.

A remanicomialização dos serviços de saúde é a expressão mais explícita do que ocorre no campo da saúde mental, mas é preciso aprofundar-se nessa dinâmica. Faz-se necessário compreender as interlocuções diretas dos retrocessos com a precarização do trabalho e da vida, por meio de (contra)reformas trabalhistas e previdenciárias, encarecimento de itens básicos de subsistência, aumento da fome e insegurança alimentar, genocídio das populações pretas, indígenas e LGBTQIA+, criminalização e extermínio da juventude usuária de drogas. Ao passo que uma parcela ínfima de seres humanos compõem a parte mais rica do globo.

É impossível se ater à dinâmica social de forma superficial em um texto de poucas palavras. Mas são fatos que guardam entre si importantes e profundas ligações. Olhar para saúde mental requer compreendermos a dinâmica social, política e econômica existentes. É a partir de uma compreensão ampla que podemos também começar a refletir sobre o processo de saúde-adoecimento das populações.

Das populações? E os sujeitos? Podemos sim, pensar os sujeitos em suas singularidades, seus processos próprios de sofrimento específicos, no entanto, olhá-los e ignorar as determinações de gênero, orientação sexual, raça, território, relação de trabalho nos distancia de um olhar acurado ao real movimento diante sofrimento psíquico, bem como no trato e oferta de serviços de qualidade.

Rotelli, uma referência da transformação paradigmática em saúde mental, nos diz da “existência-sofrimento e sua relação com corpo social” e cada elemento dessa expressão não pode ser desprendido de uma concepção de totalidade. Isso nos leva à primeira questão: o neoliberalismo e a saúde mental. Os processos de existência - sofrimento dos corpos estão contidos nesse cenário latino-americano, brasileiro, no qual o Estado se diz mínimo - para os direitos e máximo para o capital - e defensor das liberdades individuais. Mas o que há por trás (ou na frente) disso? O que existe é uma maior conexão com as individualidades e competitividade, e muito menos com a comunidade. Ora, não é esse o contrário da compreensão de saúde enquanto um processo complexo, de cuidado territorial e comunitário?

Então… finalizamos o texto com algumas reflexões! Como pensar uma luta antimanicomial sem questionar estruturas que geram processos de sofrimento? A saber, os manicômios não são apenas espaços físicos; são modos de saber-fazer, preconceitos enraizados, a lógica de exploração e opressão dessa sociedade que se pauta no lucro em detrimento da vida.

O quarto encontro: Neurocentralidade e outras reduções[editar | editar código-fonte]

Caio Maximino, professor da Unifesspa

  1. O projeto atual da psiquiatria é resultado de políticas de cuidado baseadas no mercado, que constroem populações de indivíduos que são encorajados a garantir sua própria saúde e promover seu bem-estar e sucesso face à insegurança econômica e precarização.
  2. A manutenção da saúde torna-se responsabilidade individual ao invés de um direito coletivo, e corpos e si-mesmos tornam-se alvo de cuidado intenso e auto-atualização.
  3. Diferentemente de estágios anteriores de hegemonia da psicologia individual, agora os sujeitos são encorajados a ver a si mesmos como sujeitos biomédicos.
  4. O deslocamento biomédico para o campo da saúde mental cria "sujeitos em risco de" - não mais pelas condições de vida, mas por supostos desequilíbrios neuroquímicos. Essas noções de risco e empoderamento têm um importante papel na comercialização dos corpos e materiais biológicos sob o capitalismo biológico. A vitalidade biológica, da superfície da pele até a molécula e o neurônio são o principal recurso de comodificação no capitalismo biológico.
  5. Os riscos deslocam-se do exterior para o interior - longe de preocupar-se com problemas sociais, agora nos preocupamos com a saúde do cérebro. A presença do risco torna-se uma fonte de culpa, mas também de empoderamento: a capacidade individual de mitigar o risco através principalmente da farmacoterapia é equacionada com o seu empoderamento, mas sempre se pode detectar formas pelas quais o indivíduo não aderiu a alguma recomendação, ou o seu genótipo não é favorável ao efeito daquela droga - droga errada, genótipo errado, paciente errado.
  6. O discurso do risco aumenta a heteronomia, e o indivíduo busca apoio no discurso de especialistas. É uma armadilha dupla: você é responsável por sua felicidade, mas não é autônomo para escolher como.
  7. A farmacoterapia e a cerebralização do sofrimento também têm como consequência importante o movimento de buscar mitigar o próprio sofrimento sem nunca avançar sobre os principais determinantes psicossociais desse sofrimento.
  8. A psiquiatria biológica parte de uma concepção de sistema nervoso que é má neurociência. Parte de um reducionismo metodológico - é mais fácil estudar o sistema nervoso como se fosse um sistema fechado, monádico, que produz causalidade horizontal unidirecional - para um reducionismo ontológico - todos os processos mentais são prima facie redutíveis a processos de nível mais baixo. Uma parcela contra-hegemônica de neurocientistas têm proposto um sistema nervoso em transação aberta com seu nicho ecossocial, sendo corporificado, estendido, enativo, e afetivo. Um sistema nervoso em constante processo de co-construção com um ambiente histórico-cultural, atravessado a todo momento por micropolítica, circuitos interpessoais, e afetos biopolíticos.
  9. Para esse sistema nervoso biocultural, as velhas dicotomias entre natureza e cultura não têm sentido, e estudar (e mitigar) o sofrimento psicológico é tanto uma questão de entender as dimensões bio quanto as dimensões psico e social. Trata-de menos de perguntar "o que você tem? (Qual desequilíbrio neuroquímico? Qual sintoma?)", e mais "o que lhe aconteceu?", entendendo que o que acontece é sempre já mediado por uma cultura, uma economia, um poder.

O quinto texto: Drogas - Entre a patologia e a prisão[editar | editar código-fonte]

Thais Lasevicius, mestranda da Unifesp

Ao refletir que “toda prisão é uma prisão política”, essa proposição não vem ao acaso. Baratta (2002) nos lembra de que a seleção dos chamados “tipos penais” têm como base o movimento de produção e reprodução das relações sociais na sociedade capitalista. A idéia de que o “status de criminoso” é distribuído de modo desigual, implica justamente em caracterizar quem deve ser criminalizado em um modelo social que tem a barbárie como resposta.

Nesse sentido, não é de se espantar que a maioria dos sujeitos nas prisões brasileiras possui esse “status” bem definido: pretos, pobres, com o ensino fundamental incompleto e trabalho anterior extremamente precário, além, é claro, do “tipo de crime” mais comum: tráfico de drogas. É inegável que o Brasil sendo atualmente o terceiro país que mais encarcera no mundo, esse encarceramento em massa é extremamente seletivo: os tipos penais a serem criminalizados são forjados através desses sujeitos selecionados enquanto improdutivos e indesejáveis para a lógica desse sistema.

Com as drogas não é diferente. Tal como a categoria da loucura que em seus primórdios desenhava-se com traços ora metafísicos, ora como uma manifestação divina, as drogas também foram consideradas manifestações de cura e recreação. Ambas as categorias abaladas fortemente – tanto à loucura quanto a questão das drogas – conforme o processo histórico se transformava no sentido de penalizar e criminalizar condutas que fugiam a essa sociabilidade burguesa – moralmente conservadora e hipócrita em suas ações.

A seleção desses tipos penais, - vinculado a política de guerra às drogas -, incide em um processo histórico que é o de criminalizar a loucura ou as manifestações desta. Na atualidade, o que se verifica é o fortalecimento das comunidades terapêuticas e das internações tanto involuntárias quanto as realizadas através de medida judicial, justamente para cercear a liberdade do sujeito usuário de substâncias psicoativas ou mesmo em sofrimento psíquico com a falácia de um “tratamento”.

Sabe-se que nenhum tratamento corroborado por uma penalização, é de fato um cuidado. Pelo contrário, assiste-se a atualização das “penas-tratamento”, condensadas também pela continuidade das medidas de segurança que, mesmo com a Lei 10.216 em vigor e fruto da resistência coletiva contínua e antimanicomial, ainda assim, pouco adentra os muros dos manicômios judiciários e agora das comunidades terapêuticas, o que torna urgente esse debate, no sentido de fortalecer essas lutas e estratégias de resistência em comum.

Não se pode esquecer que quando se levanta a bandeira “por uma sociedade sem manicômios” também se diz o mesmo sobre “por uma sociedade sem prisões”. Não obstante, o horizonte é comum: o levante anticapitalista, antirracista e antiproibicionista, pois se toda prisão é uma prisão política, é justamente sobre a liberdade1 (e a criminalização) da classe trabalhadora a que estamos nos referindo.

1 Liberdade no sentido marxiano de poder realizar escolhas mediadas por um modelo social vigente – o capitalismo – entendendo a categoria “liberdade” permeada pelo condensar dessa mesma estrutura.

O sexto texto: Cuidado, autonomia e liberdade - redução de danos e GAM como exemplos de potência autônoma[editar | editar código-fonte]

Indianara Maria Fernandes Ferreira, doutoranda UFRN

No âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) a atenção e o cuidado direcionado as pessoas em sofrimento psíquico decorrente do consumo problemático de drogas acontece, principalmente, através da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Composta por diversos serviços de assistência à saúde, esta rede busca conformar um um modelo de atenção aberto, articulado, e principalmente, de base comunitária. Norteada pelos princípios, diretrizes e estratégias da Reforma Psiquiátrica no Brasil, podemos sublinhar aqui sua importância na busca pela defesa da vida, na garantia de direitos humanos e para a promoção e o exercício de autonomia no processo e na construção da participação social imprescindível para uma construção potente desta rede e das estratégias de cuidado

No entanto, é possível perceber que, paradoxalmente aos avanços conquistados e construídos ao longo do processo de reforma psiquiátrica brasileira, inúmeros impasses e desafios também emergiram.  Dentre estes impasses e desafios, direciono aqui minha atenção ao campo do cuidado no contexto da atenção em álcool e outras drogas.

Faz-se aqui importante sublinhar o campo de forças e de tensões presentes no campo do cuidado e da atenção ao consumo problemático de drogas. Considero que a visibilização desse campo de forças se torna cada vez mais necessária para pensarmos na produção de autonomia possíveis frente aos desafios emergentes no contexto brasileiro. Dentre diversas forças e tensões, estão os atravessamentos provenientes do discurso hegemônico e proibicionista de “guerra às drogas” e seus efeitos de recrudescimento do paradigma asilar e da abstinência como único meio de cuidado possível. Outro elemento, importante de destacar é a medicalização da vida e dos corpos através de uma lógica biomédica notadamente intensificada no contexto de pandemia que atualmente vivemos.

O consumo excessivo e acrítico de medicamentos psiquiátricos atualmente é se configura como um problema presente em diversos contextos e países no tocante ao cuidado no campo da saúde mental. Esta problemática fez surgir no Quebec, com o protagonismo de diversos movimentos sociais, o Guia de Gestão Autônoma de Medicação (GGAM) - uma metodologia e estratégia de cuidado participativa que visa promover uma reflexão crítica acerca dos psicofármacos na atenção à saúde (principalmente no campo da saúde mental), problematizando a lógica do cuidado centrada na medicalização.

Sendo este um desafio vivenciando também no contexto brasileiro, O GGAM foi traduzido e adaptado para o Brasil em 2010 surgindo assim o GAM-BR que possui como materialidade um caderno-guia chamado Guia GAM-BR e se constitui como um dispositivo, estratégia e metodologia que pressupõe a experiência em grupos e coletivos e trás como operadores e efeitos clínico-ético-políticos os princípios de autonomia (numa perspectiva coletiva e não individualista) e cogestão que a sustentam.

Atualmente, experiências com a GAM no cenário AD (contexto no qual pessoas em sofrimento decorrente do consumo problemático de drogas são “tratadas” com consumos excessivos de drogas psiquiátricas) apontam para a pertinência e para as potencialidades deste dispositivo para o cuidado nestes contextos, permitindo ampliar a discussão sobre autonomia, produção de cuidado em contextos de consumo de múltiplas substâncias (lícitas, ilícitas, prescritas e proscritas) e redução de danos.

A partir das breves pontuações acima, gostaria de fazer um convite para dialogarmos a partir de algumas questões disparadoras:

  1. Quais os desafios e possibilidades da estratégia GAM em contextos AD? Como ela se articula com a redução de danos?
  2. É possível falar de uma gestão autônoma de múltiplas substâncias e não apenas de medicamentos?
  3. A autonomia para além de um exercício de solidão: qual a potência da autonomia compreendida em sua dimensão de coletividade?
  4. Amizade e redes de apoio: quais seus efeitos para a produção do cuidado?