Sobre o tempo não-linear
Serres, M. Luzes: cinco entrevistas com Bruno Latour. São Paulo: Unimarco Editora, 1999. p. 63-84
[Excertos sobre a definição de uma temporalidade não linar]
Latour: —…O aspecto mais marcante, creio, para todos nós que somos leitores modernos, é que o Sr. [Serres] é absolutamente indiferente à distância temporal. Pitágoras, Lucrécio, não são nem mais nem menos distantes, para o Sr., do que La Fontaine ou Brillouin. Dir-se-ia que para o Sr. não existe o tempo. Que tudo é contemporâneo. (…) O que lhe permite manter no mesmo tempo todos esses gêneros, autores, livros, mitos? … [63]
Serres: — Para dizer ‘contemporâneo’, já é preciso pensar um certo tempo, ou pensá-lo de certa maneira. (…) …o que é contemporâneo? Considere um modelo recente de automóvel: constitui um agregado díspar de soluções científicas e técnicas de épocas diferentes. Pode-se datá-lo peça por peça: tal órgão foi inventado no início do século, outro há dez anos e o ciclo de Carnot tem quase duzentos anos. Sem contar a roda, que remonta ao neolítico. O conjunto só é contemporâneo pela montagem, pelo desenho, pela carroceria, às vezes somente pela futilidade da publicidade
Do mesmo modo, quantos livros que são publicados hoje são, de fato, e inteiramente, contemporâneos? Tome, por exemplo, tal obra que procura pensar algumas descobertas científicas recentes: sua reflexão filosófica data do século XVIII e mesmo de antes, uma espécie de materialismo cientificista à moda de Helvetius ou de d’Holbach. Há com freqüência uma defasagem grave entre o debate filosófico e a informação científica; enquanto esta data de hoje, a filosofia que o autor dela extrai provém de um tempo pretérito, e essa defasagem faz desses livros — ou de alguns debates, com já observei — verdadeiras caricaturas.
Esse é muitas vezes o caso em epistemologia: os dois elementos raramente datam da mesma época; dir-se-ia uma construção da qual uma das alas seria grega, com colunas e um pórtico, e a outra metade contemporânea, cm concreto pré-fabricado e vidro fumée. Metade Gioconda, metade Max Ernst. Que diabo, manipula-se os átomos com uma picareta? Eu tinha até mesmo a impressão, ao iniciar meus estudos, que não havia reflexão verdadeiramente contemporânea sobre as ciências. [63-4]
—Não havia?
— Não que eu saiba. Mesmo a escola analítica refina constantemente questões já resolvidas ou postas, ou no século XVIII nos textos de língua francesa, ou na Idade Média nas universidades européias de língua latina, ou na Antiguidade grega, entre as escolas sofísticas. Quando é encerrada na escolástica universitária a filosofia pouco se move. O que é perene é a instituição, cuja função continua sendo reproduzir jovens obedientes. Dir-se-ia que ela impõe um método.
Já as questões eram novas e motivadoras, realmente inesperadas, imprevisíveis…, quero dizer que nunca a ciência se impusera desse modo à humanidade…, era preciso, pelo contrário, promover uma modernidade. [64-5]
— Não compreendo. O Sr. queria ser moderno?
— O que sou e quando sou não tem realmente importância. Mas quero poder pensar o tempo e, em particular, o mesmo tempo.
Tomo, de novo, um exemplo simples. Ao reler o texto de Lucrécio todos dizem ultrapassado o estado filosófico do materialismo mecanicista tal como é discutido desde a Antigüidade até o século XIX. A ciência experimental se liberta desses sonhos abstratos, afasta-se dessa discussão e a torna definitivamente ociosa. Então os átomos, no sentido de Perrin, não têm mais nada a ver com os elementos, no sentido de Lucrécio. Logo, este último não é mais contemporâneo, nem mesmo é legível. Pertence, de um lado, aos latinistas, de outro, aos historiadores do materialismo. Ele é dessa forma duas vezes perdido: por que então estudá-lo em Filosofia? Além disso, é poesia.
Relendo-o com atenção, vejo que o De rerum natura na verdade fala da mecânica dos fluidos, de turbulência e de caos, que ele põe, e bem, as questões do acaso e do determinismo, que seu clinamen, primeira inclinação, é também uma quebra de simetria. Que não se podia ler tais coisas enquanto a ciência da época obrigasse a pensar exclusivamente a mecânica dos sólidos. Que a matemática que ele invoca é precisamente a de Arquimedes, e ei-lo realmente contemporâneo, não só no conteúdo científico, como na reflexão filosófica. Ainda mais contemporâneo na medida em que se interessa com paixão pelas questões da violência, pelas relações entre a religião e a ciência. E, portanto, repentinamente, bem mais atual do que a horrível massa de livros que pretendem demonstrar os problemas, em palavras voluntariamente ‘contemporâneas’. [65]
— Espere… Que sentido o Sr. atribui à palavra ‘contemporâneo’?
— Para começar, a palavra contemporâneo assume dois sentidos contraditórios: significa que Lucrécio, em sua própria época, já pensava, de fato, os fluxos, a turbulência e o caos e, em segundo lugar, que ele alcança, com isso, o nosso tempo, que repensa problemas análogos. Sou forçado a mudar de tempo, e deixar de seguir aquele utilizado pelo historiador.
(…)
Reler Lucrécio como eu o fiz lhe devolve ao mesmo tempo sua latinidade própria e essa dupla contemporaneidade. A Antigüidade mediterrânea carecia de água, logo só pensava nos fluidos, e nossa ciência há muito superou a exclusiva preocupação mecanicista com os sólidos. Daí decorrem descobertas singulares. Assim, enquanto pareço a seus olhos me situar fora do tempo, em uma espécie de formidável contemporaneidade, num ofuscante curto-circuito entre o tempo do poema e o de nossa ciência, restituo o verdadeiro sentido, duplo e único, tanto da tradição quanto da ciência de 1991.
Em que tempo se encerrava a escolástica do texto? A relação bifurcada entre as ciências e as letras estava de tal modo congelada, de tal modo distanciada, que duas eternidades se encaravam como cachorros de louça, como dois leões de pedra diante de um portal. [66]
— Mas é uma caricatura perfeita!
— Onipresente, essa caricatura tornou-se a maneira usual de estudar Lucrécio, e tantos outros; positivamente insuportável: ao mesmo tempo tolo do ponto de vista do latim – quantos contra-sensos tive de apontar na tradução utilizada! – e absurda do ponto de vista da ciência. Desse modo, a técnica de comparação que utilizei reconduz efetivamente à nossa época. [66]
— O Sr. vai rápido demais. Esse problema do tempo é a maior fonte de incompreensão, a meu ver. O que torna o passado dos outros vazio, cristalizado, atemporal é sempre supor que o passado está superado.
— Excelente fórmula. Chamava-se a isso, outrora, de cortes: entre os átomos de Lucrécio e os de Perrin, entre a Antigüidade mítica e a ciência contemporânea, intervém uma fratura que torna o passado simultaneamente [ultra-]passado e o presente verídico. Essa tese sempre me pareceu ser da ordem da religião: entre um arcaísmo perdido e a nova era, existe um acontecimento, o nascimento de um novo tempo. [67]
— O Sr. quer dizer que a idéia racionalista dos cortes epistemológicos é ela própria uma idéia arcaica?
— Uma palavra, se você me permite, sobre a idéia de progresso. Concebemos o tempo como uma linha irreversível, cortada ou contínua, pouco importa, de aquisições e de invenções. Vamos de generalizações a descobertas, de modo que deixamos para trás, como a nuvem de tinta das lulas, um rastro de erros enfim corrigidos. ‘Ufa! Chegamos finalmente à verdade’ . Jamais se poderá demonstrar se essa idéia do tempo é falsa ou verdadeira.
Mas não posso me impedir de pensar que ela eqüivale a esses esquemas antigos, dos quais rimos hoje, que situavam a Terra no centro do mundo, ou nossa galáxia no centro do universo, para que nosso narcisismo fosse satisfeito. Assim como, no espaço, nós nos situamos no centro, no umbigo das coisas e do universo, assim, para o tempo, pelo progresso, estamos sempre no cume, na extrema perfeição do desenvolvimento. Assim, temos sempre razão, pelo simples, banal e ingênuo motivo de vivermos no momento presente. A curva que traça a idéia de progresso parece-me portanto desenhar ou projetar no tempo a vaidade, fatuidade expressa no espaço pela posição central. Em vez de habitar no centro ou no meio do mundo , habitamos no cume, no ápice, no melhor da verdade.
Esse esquema nos permite ter, de maneira permanente (sim, de maneira permanente, jáque o presente é sempre a última palavra do tempo e da verdade; de maneira permanente, eis o belo paradoxo para uma teoria da evolução histórica), não só razão, como a melhor das razões possíveis. Ora, é preciso, sempre, creio eu, desconfiar de alguém ou de uma teoria que tem sempre razão: não é plausível, não é provável. [67-8]
— O que para mim, para um leitor comum, torna sua demonstração difícil de acreditar, inverossímil, é que não se pode tratar Lucrécio como um contemporâneo, pois é evidente que sua teoria é obsoleta. E são os cientistas, os epistemólogos, que sustentam constantemente esse argumento de que não existe pensamento científico antes deles.
— Os cientistas pensam com freqüência como Descartes: ninguém pensou antes de mim. Esse efeito-Descartes produz uma boa publicidade, bastante eficaz e convicente: ninguém pensou isto antes que eu o dissesse. Por dizer o contrário da Philosophia perennis, essa propaganda não deixa de ser absurda. [68]
— É esse filosofema que torna o passado completamente distante. É que é evidente para nós, modernos, que quando se avança no tempo, cada etapa sucessiva ultrapassa a precedente.
— Isso não é o tempo.
— É isso que o Sr. precisa explicar, por que essa passagem do tempo não é o tempo.
— Não é o tempo, mas uma mera linha; não é sequer uma linha, mas a trajetória da corrida pelo primeiro lugar, na escola, nos Jogos Olímpicos ou no prêmio Nobel. Não é o tempo, mas o mero jogo da concorrência: ainda a guerra. Por que substituir a temporalidade, a duração, pela querela? O primeiro a chegar, o vencedor da batalha obtém por prêmio o direito de reinventar a história em seu proveito. Ainda a dialética, que não é senão a lógica da aparência.
Mais profundamente: só o tempo pode tornar co-possíveis duas coisas contraditórias. Exemplo: sou jovem e velho; somente minha vida, seu temo ou sua duração podem tornar essas duas proposições coerentes entre si. O erro de Hegel foi de rejeitar essa evidência lógica e pretender que a contradição produz o tempo, enquanto somente o inverso é verdadeiro, que o tempo torna possível a contradição. De onde todos os absurdos desde então contados sobre a guerra, ‘mãe da história’.
Não, a guerra só é a mãe da morte, em primeiro lugar, e depois, e perpetuamente, da guerra. Só engendra o nada e, de modo idêntico, ela própria. Logo, a destruição se repete; de onde o eterno retorno do debate. A história dá razão, com grande regularidade, aos que não crêem em seus esquemas.
A hipótese de que antes de uma dada geração não houve ciência nega toda temporalidade, toda história. Enquanto que, com freqüência, a tradição traz até nós pensamentos vivos. [68-9]
— Desculpe, mas de onde o Sr. tira esse pensamento?
…a minha vida inteira jamais abandonou essa dupla via. Continuo a ler Plutarco e os físicos, ao mesmo tempo, por recusar a separação entre ciências e letras, esse divórcio que informa o tempo dos pensamentos ‘contemporâneos’ [69]
— A própria separação? A separação entre ciências e letras?
— Sim. A Era das Luzes muito contribuiu para rejeitar como irracional toda razão que não fosse formada em ciência. …A razão está estatisticamente distribuída por toda parte: ninguém pode reivindicar sua posse exclusiva.
Essa divisão, portanto, repercute sobre a imagem, o modo como se imagina o tempo. Em vez de condenar ou excluir, rejeita-se tal coisa na Antigüidade ou no arcaísmo; não se diz mais ‘falso’, prefere-se dizer: ‘superado’ ou ‘obsoleto’. Outrora, sonhava-se, agora, pensa-se; antes, recitava-se poesia, hoje, experimentamos de maneira eficaz. A história é, por conseguinte, a projeção em um tempo imaginário – até mesmo imperialista – dessa exclusão mais do que real. O corte temporal eqüivale a uma expulsão dogmática.
De um lado, pouco a pouco, desaparecem os literatos, aqueles cuja cultura, antiga, refere-se aos tempos arcaicos da poesia, da qual ninguém tem necessidade,enquanto que, de outro, os cientistas, únicos ‘contemporâneos’, falam verdadeiramente do mundo ou do cérebro, da matemática e da física. (…) A história confere um belo efeito de realidade à auto-publicidade.
Os cientistas do início do século XX ainda não conheciam esse divórcio. Jean Perrin, em Os átomos, cita Lucrécio desde o começo, e chega a refazer experiências ou observações inspiradas no texto latino. Pode-se admirar em sua casa um volume anotado de Lucrécio. (…) [69-70]
(...)
— A sua própria maneira de mostrar o passado não tem nada a ver, se compreendi bem, com uma ascensão da razão?
— Não.
— Qual a articulação entre a distinção ciências-humanidades, de um lado, e entre passado superado, aniquilado, e o presente, único racional?
— Isso se produz no século XVIII, que procura retirar a racionalidade de tudo o que não é ciência: OPC [Oferta Pública de Compra, na qual um comprador anuncia publicamente sua intenção de compra de ações] da ciência sobre a totalidade da razão. Desse modo, não têm mais razão nem as religiões, é evidente, nem as letras, nem as humanidades, bem como a história ou o passado, todos relegados ao plano do irracional. E o século XIX do Sturm und Drang irá confirmar essa enorme decisão, acantonando todos os movimentos literários no campo dos mitos e dos sonhos. A esse respeito, a história da ciência, a epistemologia, os cientistas, e mesmo o homem comum, ficaram presos a essa idéia. Daí o esquema histórico usual: razão após, desrazão antes. Como denominar isso, senão de preconceito?
O preconceito inverso, no entanto, não é mais esclarecedor ao pretender que esquecemos tudo de uma intuição inicial que, entre os antigos gregos, só alguns pré-socráticos teriam recebido e desenvolvido. Emana, justamente, dos maiores inimigos da ciência e da técnica. Belo efeito de simetria, reproduzindo os dois leões que há pouco nos referimos!
Se o temível problema do tempo da história pudesse se resolver de maneira tão simples, nós saberíamos disso.
(…)
— (…) Como eu abandonara a epistemologia, eu abandonava ao mesmo tempo toda perspectiva de julgamento. A crítica não é jamais fecunda, e a avaliação da ciência não é sequer possível, dada a rapidez como ela varia. Embora estimada na instituição, a crítica é fácil, temporária, fugidia, rapidamente fica fora de moda. Se a verdade de ontem se torna o erro de amanhã, sucede também, na ciência, que o erro condenado de hoje volte a se encontrar, mais cedo ou mais tarde, no tesouro das grandes descobertas.
Além disso, é estimulante restituir a conteúdos considerados irracionais o respeito que se deve à reta razão, salvaguardada a possibilidade de redefinir esta última: encontrar, por exemplo, uma ciência autêntica em Lucrécio, nos literatos, poetas, romancistas ou teólogos, dos quais muitos outrora se consideraram racionalistas. [71-3]
— Logo é preciso abandonar tanto a crença de que eles estão superados quanto a possibilidade de julgar a partir do estado atual da ciência?
— De um estado supostamente atual de uma ciência. Quem pode afirmar que isto é realmente contemporâneo, exceto os inventores, presentes, ativos no front da descoberta? Essa questão e a imensa dificuldade em responder a ela tornam problemático o que Sartre chamava de ‘engajamento’. O que é [isso], realmente, [em] nossa época, você pode me dizer?
— Mas, além disso, é abandonar a idéia de que se vai, a seu respito, ignorando-os, repetir os argumentos que talvez sejam mais antigos do que eles.
— Exato.
— Mas fazer isso é reintroduzir uma defasagem completa entre as épocas.
— Afinal de contas, seria preciso no limite falar de incultura. Desde o momento em que se reúne numa ilha tudo que tem razão e assume o direito de julgar sobre todo e abandona, , além disso, todo o resto, de todo eesse resto você não faz mais idéia alguma, de modo que, ignorando-o, corre o risco de repetí-lo. O esquecimento expõe à repetição. [73-4]
— Portanto, o princípio que o impulsiona é…
— Lutar contra o esquecimento. Assim, a censura que você me dirigia de ignorar a história se inverte. Dito de outro modo, quem fala realmente da história?
— Sim, mas nos deparamos com outra dificuldade: sua história não é bachelardiana, no sentido de que não é a história sancionada.
— Não, já que suspendo todo juízo. Você notou que o termo ‘sancionado’ provém tanto do direito quanto da religião, para exprimir ‘santificado’?
— Mas ela não é tampouco historicista, no sentido de que o Sr. não quer encontrar a história tal como era para as pessoas da época. isso tampouco o interessa. O Sr. não deseja nem a história sancionada dos epistemólogos, nem a história antiqüizante, historicista, documentária, dos historiadores. Uma vez que o Sr. quer essa história passada, que ela reviva agora?
— Sim. Retomando o exemplo de Lucrécio, a física contemporânea permite, pelo menos, relê-lo, mas de maneira oblíqua e finalmente descobrir nele o atual ainda ativo. O que significa oblíqüo aqui? Que se você traduzir átomo por átomo, não irá longe; é preciso olhar um pouco para o lado, ou mais globalmente, para o regime de turbulência. William Thomson, no século XIX, ainda assimilava os átomos às ondas de um fluido: logo, a tradição que eu revelo datava de dois mil anos e o seu esquecimento no máximo de cem anos. Não provém necessariamente de uma antiguidade formidável. O que nos parece esquecido há muito tempo se conserva ,às vezes em nossa mais próxima vizinhança. Daí a defasagem à qual me refiro.
(…)
— O que interessa é sempre o movimento contrário [à reconstituição do ambiente cultural do passado, ‘utilizar a história para efetua um deslocamento a partir do tempo zero em que nos encontramos, para nos transportar…’]. Tomar Lucrécio, saltar por cima dos filósofos que o anulam dizendo que ele está superado e reduzi-lo a hipóteses que são hipóteses atuais em física.
— É isso. Eis, além disso, métodos, estratégias ou ardis para responder a uma outra questão, a da perda. Tudo se paga. À medida que a ciência avança, avalia-se muito raramente a perda substancial de cultura que corresponde ao ganho. As letras se tornam evanescentes por perda de substância tendo, em contrapartida, um reforço considerável da compreensão científica: tanto nos conteúdos quanto nas instituições.
Daí a tentativa de redigir uma defesa e ilustração das humanidades, diante, contra e a favor dos próprio cientistas (...) mostrar uma razão em estado nascente e ilustrá-la diante da razão escolástica.
— Sim, mas com uma dupla dificuldade: o Sr. reutiliza autores e textos que são considerados pelos epistemólogos como sancionados e obsoletos…
— Quando ouvir dizer que Beetoven está ultrapassado, escute a música daqueles que o afirmam, dizia Schumann, sorrindo; em geral são apenas compositores de romances medíocres.
— Mas, ao mesmo tempo, o Sr. não salva os textos no terreno que as humanidades geralmente aceitaram, isto é, o do historicismo.
— Às vezes, não sempre.
— O Sr. não diz jamais: ‘Respeitemo-los ao menos em seus efeitos de realidade, em suas excentricidades, como testemunho interessante de um passado distante’. Não se trata jamais para o Sr. de exotismo…
— De fato.
— … seu passado e sua diferença não anulam seus efeitos de realidade, de racionalidade. O Sr. não respeita a diferença à maneira de um historiador ou de um etnólogo. O Sr. os põe no mesmo plano que as mais modernas teses.
— Sim.
— Sob risco, é claro…
— … de não ser compreendido nem pelo latinista, que pouco se importa com a termodinâmica, nem pelo cientista, que ri do clinamen
. Isso define a solidão dos pesquisadores; não é muito grave, o essencial consiste na exatidão. Quem não fica isolado quando pesquisa?
— É esse problema que é preciso abordar.
— Com efeito, o risco profissional existe, é preciso aceitar pagar seu preço (…)
Exceto pelo fato de que isso começa a mudar. (…) Exceto pelo fato de que cada descoberta importante revela repentinamente um passado inteligente por trás de cada bloqueio recente. A um novo avanço, nova anamnese! Cada invenção revela o real ao mesmo tempo que o histórico. [74-77]
— (…) Portanto, o tempo presente permite efetuar um curto-circuito entre aqueles que pretendem que o tempo é passado superado e aqueles que dizem: ‘O único meio de respeitar a temporalidade são os trabalhos dos historiadores’. Eis o que define bem o seu trabalho.
— É quase uma ressurreição de textos mortos. Ora, como a universidade produz, numa bifurcação máxima, de um lado, cientista, de outro puros literatos, as mensagens de duplo alvo são mal vistas.
— …o ponto, o regime particular de tempo que lhe interessa é o avesso do avesso que é a separação entre humanidades e ciências. A separação obriga as humanidades a serem historicistas, a contentar-se com os restos do passado e de explorar a fundo suas diferenças, e as ciências são bachelardianas em sua filosofia espontânea, isto é, elas anulam completamente seu passado de hora em hora, de certo modo, de ano em ano.
— Sim.
— Logo, é do mesmo problema duas vezes, resolver o problema do tempo e resolver o problema das ciências.
— Da interdisciplinaridade.
— Mas isso não supõe outra temporalidade, uma maneira que não é moderna de considerar a passagem do tempo?
— Eis a questão fundamental. Que essa seja a hipótese científica, de um lado, que chamamos de hipótese de excelência, ou, do outro, a do historicismo, ambas supõem que o tempo se desenvolve de maneira linear, isto é, que existe de fato uma enorme distância, a saber, várias dezenas de séculos, entre Lucrécio e a física de hoje. Que esse tempo seja cumulativo, contínuo ou entrecortado, ele continua sendo linear.
—Por sucessão. Ou por sucessões de revoluções, como para os epistemólogos ou mesmo para Foucault.
— Isso. Ora, o tempo é na verdade um pouco mais complicado que isto. Você conhece, sem dúvida a teoria do caos, que permite que uma dada desordem na natureza possa ser explicada – ou reordenada – por meio de atratores fractais.
— Sim, desse modo o acaso é determinado e a desordem traçada por uma ordem subjacente.
— Exato; mas a ordem é mais difícil de apreender como tal, e o determinismo usual muda um pouco o seu aspecto. O tempo não corre sempre segundo uma linha (…), nem segundo um plano, mas segundo uma variedade extraordinariamente complexa, como se mostrasse pontos de parada rupturas poços chaminés de aceleração fulminante, rasgos, lacunas, tudo isso inserido aleatoriamente, pelo menos numa desordem visível. Dessa forma, o desenvolvimento da história reúne de fato o que a teoria do caos descrever. Não é muito difícil quando se compreendeu essa teoria, aceitar que o tempo não se desenvolve sempre de acordo como uma linha: que possa existir, portanto na cultura, coisas que a linha fazia parecer muito distantes e que na verdade estão próximas, ou pelo contrario muito próximas e que na verdade estão distantes. (…)
Para explicar essas duas percepções, é preciso elucidar a teoria do tempo. A teoria clássica é a da linha, contínua ou entrecortada, enquanto que a minha seria mais caótica. O tempo escoa de maneira extraordinariamente complexa, inesperada, complicada…
— Logo, não é o Sr. que vai muito longe, são os elementos que se tornam próximos nesse tempo caótico.
— Certo. Paradoxal, o tempo se dobra ou se torce; é uma variedade que seria preciso comparar à dança das labaredas em uma fogueira: aqui entrecortadas, lá verticais, móveis ou inesperadas.
A língua francesa, sábia, usa a mesma palavra para dizer weather que faz e time o tempo que passa. Em última instância, trata-se do mesmo. O tempo da meteorologia, previsível e imprevisível, poderá, um dia, sem dúvida, explicar-se mediante noções bastante complicadas: flutuações, atratores estranhos… Depois talvez compreendamos que o tempo da história é ainda mais complexo do que isso.
— Em todo caso, ele não passa.
— Passa, sim, e também não passa: é preciso aproximar o termo passar da palavra passeoire: o tempo não escoa, ele percola; isso significa justamente que ele passa e não passa. Gosto muito da teoria da percolação, que afirma, sobre o espaço e o tempo, coisas evidentes, concretas, decisivas e novas.
Em latim, o verbo colare, de onde proveio o francês couler [coar], significa, justamente: filtrar. Em um filtro, dado fluido passa e outro não. [77-80]
(…)
— ‘Sob a ponte Mireabeu escoa o Sena…: vê escoar o tempo linear classico. Mas Apollinaire, que não havia já, já, jamais navegado, pelo menos em água doce, não havia olhado o suficiente para o Sena; não percebeu as contracorrentes nem as turbulências… Sim, o tempo escoa como o Sena, mas sob a condição de ser bem observado. Nem toda a água que passa pela ponte Mirabeau chegará necessariamente ao canal da Mancha; muitos pequenos afluentes retornam para Charenton ou para a cabeceira…
— Eles não correm como afluentes paralelos…
— Não é laminar em tudo. A teoria usual supõe o tempo em toda parte e sempre laminar. Com distâncias geometricamente fixas e mensuráveis, pelo menos constantes. Algum dia se dirá que se trata da eternidade! Não é verdadeiro nem possível; não, o tempo escoa de maneira turbulenta e caótica, ele percola. Todas as nossas dificuldades sobre a teoria da história se devem a que pensamos o tempo dessa maneira insuficiente e ingênua.
— Todos os teólogos concordam com o Sr. …
(…)
— É um espaço topologicamente bizarro que lhe serve de referência para compreender o tempo.
— Existe em Lucrécio uma teoria global da turbulência, que pode permitir a compreensão desse tempo. Sua física me parece de fato bastante avançada. Assim como as ciências contemporâneas, ela fornece a esperança de uma teoria caótica do tempo.
— Todos ouviram o Sr. dizer isso e ninguém lhe deu crédito.
— Uma matemática bem simples, porém, pode conduzir também e sem dificuldade a tal idéia. Uma certa teoria dos números reordena sua seqüência de modo que números próximos se tornem bem distantes, enquanto que inversamente números distantes se aproximem. É divertido, instrutivo e modifica consideravelmente a intuição. Uma vez tendo adotado essa maneira de ver, percebe-se q que ponto tudo o que dissemos até hoje sobre o tempo simplifica as coisas de maneira abusiva.
Mais intuitivamente, esse pode ser esquematizado por uma espécie de dobradura, uma variedade que pode mudar múltiplas vezes. Se refletirmos dois minutos a respeito, essa intuição é mais clara do que aquela que impõe uma distância constante entre cisas móveis, e explica mais coisas. Todos se surpreendem pelo fato dos nazistas, depois de 1935, se entregarem às condutas mais arcaicas, no país mais avançado do mundo na ciência e na cultura. Ora, de maneira incessante, fazemos ao msmo tempo gestos arcaicos, modernos e futuristas. Tomei há pouco o exemplo dos elementos de um automóvel, que podem ser datados de várias épocas; qualquer acontecimento da história que seja é multitemporal, remete a algo passado, contemporâneo e futuro simultaneamente. Esse objeto, esta circunstância são, por conseguinte, policrônicos, multitemporais, mostram um tempo estampado, multiplamente dobrado. [80-2]
— O Sr. explica com isso uma frase que eu desejava que o Sr. esclarecesse em Le Tiers instruit, que diz respeito justamente a essas variedades não métricas: ‘Eu sempre me servi de um processo de abstração desse tipo, que se pode chamar de topológico, e cuja principal característica consiste em descrever variedades não métricas, no caso, a rede’.
— Sim. Se você apanha um lenço e o estende para passá-lo, você pode definir sobre ele distâncias e proximidades fixas. Em torno de um pequeno círculo que você desenha próximo a um lugar, você pode marcar pontos próximos e medir, pelo contrário, distâncias longínquas. Tome em seguida o mesmo lenço e amasse-o, pondo-o em seu bolso: dois pontos bem distantes se vêem repentinamente lado a lado, até mesmo superpostos; e se, além disso, você o rasgar em certos lugares, dois pontos próximos podem se afastar bastante. Denomina-se topologia a essa ciência de proximidades e dos rasgos, e geometria métrica à ciência das distâncias bem definidas e estáveis.
O tempo clássico se relaciona à geometria: não ao espaço, como dizia de maneira precipitada Bergson, mas principalmente à métrica. Pelo contrário, inspire-se na topologia e essas aproximações, ou inversamente, os distanciamentos que a seus olhos parecem arbitrários, e talvez você descubra agora o seu rigor. E sua simplicidade, no sentido literal da palavra dobra [sin-plis]: é toda a diferença entre a topologia – o lenço é dobrado, amassado, em tiras – e a geometria – o mesmo tecido é passado, de modo plano.
Tal como o experimentamos, tanto em nosso sentido íntimo como no exterior, na natureza, tanto no da história como no do clima, o tempo se assemelha muito mais a essa variedade amassada do que à plana, excessivamente simplificada.
Que se tenha necessidade desta última para medidas, não há dúvida, mas por que induzir a partir daí uma teoria geral do tempo? Confunde-se em geral o tempo e a medida do tempo, isto é, uma métrica com uma reta. [82-3]
— Portanto a matemática, que é seu modelo, não é métrica?
— Ela pode se tornar, se quiser: desenhe, sobre o lenço, redes perpendiculares, como coordenadas cartesianas, e você desenhará distâncias. Mas se dobrá-lo, a distância entre Madri e Paris pode repentinamente se anular e inversamente se tornar essa ooutra, entre Vincenne e Colombes.
Não, o tempo não escoa como se crê. O que utilizamos de maneira espontânea [espontânea, depois dos modernos?] imita a seqüência dos números inteiros naturais.
— Logo, não é jamais o Sr. que inventa as aproximações, o Sr. as constata? Enquanto que para um moderno o tempo passa, cai atrás de si, é superado.
— O arcaico encontra-se sempre a nosso lado, enquanto que, aqui e ali, Lucrécio, está, como se diz, na crista da onda!
Deixe-me dizer-lhe: você já ouviu falar que irmãos, com idade de setenta anos ou mais, reunidos em torno de seu pai, em um velório, possam chorar um morto de menos de trinta anos? Outrora um guia, desaparecido em um penhasco no alto de uma montanha, após um acidente, reapareceu, mais de meio século depois, depositado em um vale pela geleira, perfeitamente conservado, juvenil, conservado. Velhos, seus filhos preparam para enterrar um corpo que permaneceu jovem. Daí a cena da montanha, exatamente anacrônica, rara aqui, com certeza, mas muitas vezes observada… entre o autor e seus críticos. A arte, a beleza, o pensamento profundo conservam a juventude ainda melhor que uma geleira!
Admire como, sobre o problema do tempo, um relato sem pretensão se coaduna com uma ciência recente para produzir boa filosofia.
— É precisamente essa excentricidade biográfica e filosófica que o torna tão diferente dos modernos e que explica porque é tão difícil lê-lo.
— Somos arcaicos em três quartos de nossas ações; poucas pessoas, um número ainda menor de pensamentos estão, em toda parte, presentes na sua própria época. Lembre-se o que dizíamos há pouco a respeito do presente.
— Sim, mas dito desse modo, isso não é suficiente. Um moderno também poderia dizê-lo. Mas para ele isso significaria que o arcaico é recalcado, perigoso, que ele ameaça saltar sobre nós. Enquanto que para o Sr. se trata de uma afirmação positiva.
— Por que a aparição desse recalque inútil? O antigo está aí, na maior parte das vezes, sem que se tenha necessidade de uma bomba pneumática, instrumento realmente obsoleto, para recalcá-lo.
— Para o Sr. o arcaísmo não é um resto do qual precisaríamos nos desfazer ainda mais. Esta seria a posição de Bachelard, por exemplo.
— Talvez. tudo depende da maneira pela qual se compreende a passagem do tempo. [83-4]