Saltar para o conteúdo

Transmissão Intergeracional

Fonte: Wikiversidade

A ordem bíblica expressa no bordão “crescei e multiplicai-vos” evidenciou para a espécie humana, ao menos na cultura ocidental, o fato de que homens e mulheres provêm de um outro e uma outra que os/as precederam e, a partir disso, são interpelados para que deem continuidade ao processo, dando vida a novos seres humanos. O fenômeno que faz surgir as gerações de modo sequencial não é visto e vivenciado da mesma maneira, variando em cada sociedade, a cada momento histórico, em função de um determinado contexto cultural.

Na sociologia, como adverte Alda Brito da Motta[1] a preocupação com os grupos etários que se formam e se desfazem está presente neste campo de estudos desde seus primórdios. No entanto, o uso do termo “geração”, mesmo tendo recebido de Mannheim, um tratamento estrutural que o delimitou com muita clareza, permanece ainda - segundo Alda Motta - teoricamente instável e, portanto, sujeito a uma forte polissemia. Além disso, afirma a autora, a sociologia ainda hoje dedica pouca atenção às posições sociais geracionais bem como à dinâmica das relações entre os grupos etários que se sucedem.

No balanço feito por Alda Motta, a despeito do conceito de gerações ser bastante útil à análise histórica e sociológica, pois é “catalisador das relações entre grupos de idade no tempo histórico e na mudança social”, é comum ficarem “esquecidas” as referências às conexões coletivas, já que em sua aparência se mostram fluidas ou indeterminadas e devido ao seu dinamismo instável, não se prestam a alcançar as certezas objetivas que se esperam da ciência. A autora então assim define o conceito:

A geração, em um sentido amplo, representa a posição e atuação do indivíduo em seu grupo de idade e/ou de socialização no tempo. Daí o sentido dinâmico ou instável e plural que essa condição, de saída, representa. Mas o que a muitos parece insegurança de meios ou demasiada brevidade de realização e, portanto, aparente inexpressividade existencial, mas também epistemológica - mudança de idade de cada indivíduo a cada ano, assim como a gestação de uma nova geração a cada nova pulsação da vida social - em verdade significa o fazer-se estrutural de uma dimensão da vida social, que é, contraditoriamente, tecida com afetividade e relações de poder. Ao mesmo tempo complexamente entretecida com outros sistemas de relações, expressões das dimensões de gênero e classe social. Essa mudança, das idades e gerações, em suas posições e também conflitos no tempo, perturba os estudiosos que se detêm sobre o assunto (p. 227).

Uma das consequências do fenômeno geracional é que a idade passa a ser um critério chave para a organização e integração social, sobretudo porque ela determina a possibilidade (ou não) de participação na divisão social do trabalho. À semelhança do gênero, surgiram “formas organizativas outras que redundaram em discriminação, marginalização ou exclusão igualmente baseadas na idade. (...) De tal forma que, na modernidade, a vida social apresenta-se impregnada de etarismo (ageism).” (p. 228). Esse dado é fundamental se lembrarmos que, sob o capitalismo, a referência social principal deixa de ser o grupo para centrar-se no indivíduo. Em decorrência disso, o Estado passa a prescrever a idade adequada para a participação ou pertinência social dos indivíduos a determinadas situações ou processos. Para a análise sociológica, o problema é a variação, isto é, a mudança de posição etária - e, por extensão, geracional - porque passam as pessoas e os grupos ao longo do tempo. Buscando operacionalizar a pesquisa sociológica focada no conceito, a socióloga Kimi Tomizaki coloca o debate nos seguintes termos:

De acordo com a pesquisadora Attias-Donfut (1988), os primeiros estudos nas ciências humanas cujo tema era a relação entre diferentes gerações datam do século XIX, porém estes estão fortemente ligados à história, que, então, entendia a noção de geração como um instrumento metodológico para medir o tempo histórico e compreender seus movimentos. Já no início do século XX, foram elaborados ensaios teóricos que, definitivamente, introduziram o conceito de geração nas ciências sociais. Dentre eles, se destacam os trabalhos de François Mentré (1920), José Ortega y Gasset (1926) e, sobretudo, Karl Mannheim (1928), cujo ensaio Das problem der generationen, de 1928, ainda é considerado o mais completo esforço de caráter sociológico na constituição de uma “teoria das gerações. (p. 330)[2]

Trata-se agora de delimitar mais precisamente, dentro do campo da Sociologia, o conceito de transmissão intergeracional, o qual - como se viu acima - se insere na perspectiva mais ampla do estudo das gerações.

Segundo Claudine Attias-Donfut[3], socióloga francesa que se dedica à pesquisa geracional, o estudo da transmissão intergeracional pressupõe a análise dos processos de transferência de capitais materiais e simbólicos entre gerações mais velhas e mais novas, especialmente sob a ótica das continuidades e descontinuidades verificadas entre as gerações postas em contraste. Para a autora, a transmissão intergeracional é um tema bastante rico, por envolver uma série de fatores internos e externos ao indivíduo, mais ou menos conscientes e voluntários, tais como educação, gênero, comportamento frente à vida pessoal, familiar, social etc.

A transmissão intergeracional, nesse sentido, caracteriza-se - para além da herança tanto biológica quanto dos bens materiais - pelo processo de transferência de uma dada bagagem simbólica entre diferentes gerações que guardam, entre elas, a existência de diferentes perspectivas sociais e históricas. A ocorrência dessas diferentes perspectivas é o produto da diversidade de apreensões, sentidos, cognições e sentimentos desenvolvidos pelos indivíduos de uma geração a respeito das experiências comuns que compartilham em suas respectivas épocas de vida. Com o decorrer dos anos, e a partir da formação desse repertório singular, cada geração vai, de maneiras distintas e por vezes até opostas, experimentar e interpretar a realidade de um tempo histórico. Seria como se as diferentes gerações que dividem a mesma contemporaneidade criassem o seu próprio Zeitgeist[4]. É então nesse sentido que se diz que, no campo do estudo sociológico das gerações, todo conhecimento deve ser considerado a partir de uma certa posição.

Muitos elementos do conhecimento humano acabam sendo objeto de transferência de uma geração a outra, sejam elas mais novas ou mais velhas: modelos de comportamento e atitude; valores; características de linguagem; modo de falar e de se portar; modo como se vê, se sente, se conhece e interpreta o mundo à sua volta; heranças culturais; heranças de escolaridade; laços de relacionamentos familiares e pessoais; heranças advindas de recursos econômicos e patrimoniais; e modos de lidar com os sentimentos[5] são apenas alguns exemplos de elementos que são comumente passados de gerações a gerações. Apesar de o total deslindamento de como se dá esse processo de transmissão de capitais materiais e não materiais ainda depender de maiores estudos na área da Sociologia das Gerações, alguns sociólogos, como Pierre Bourdieu, Daniel Bertaux e Isabelle Bertaux-Wiame, já desenvolveram interessantes ideias a respeito. De acordo com Pierre Bourdieu, por exemplo, as ações dos indivíduos pertencentes a determinado grupo social se delineiam a partir do chamado habitus, que são conjuntos ou sistemas de disposições duráveis e transponíveis ou, ainda, estruturas predispostas a funcionarem como alicerces de princípios geradores e organizadores de práticas e representações que podem ser adaptadas aos objetivos do indivíduo, ainda que tais adaptações prescindam das intenções conscientes quanto aos fins dessas ações[6]. Os comportamentos e as práticas dos indivíduos pertencentes a uma dada geração, então, seriam mais ou menos voluntários ou involuntários, e mais ou menos conscientes ou inconscientes, de maneira que a herança deixada para a geração futura não dependeria necessariamente da capacidade (consciente ou voluntária) de recepção do indivíduo descendente ou da disposição de transmissão (consciente e voluntária) do ente ascendente[5]. Portanto, é com base nesse contexto que se tem entendido que a transferência dos capitais é um processo precipuamente dependente do modo como cada geração lida com seu tempo, elabora suas estratégias de acumulação de conhecimento e busca formar suas adaptações aos capitais que adquire e recebe[5]. Ademais, tem-se aceitado a noção de que a transmissão das realidades simbólicas é uma obra que depende do modo como cada indivíduo e cada família negociam e renegociam suas posições e visões de mundo nos momentos de fundação de um casamento, por exemplo, ou ao se relacionarem com outros tipos de culturas (sociais, familiares etc)[3].

Os sociólogos destacam ainda os seguintes conceitos como importantes fatores dos processos de transmissão intergeracional:

  • Habitus: as homogeneidades observadas nos limites de uma classe representam condições objetivas que, quando incorporadas pelos indivíduos, tornam-se práticas, por vezes automáticas e impessoais, que permitem a retomada e a reprodução das intenções objetivas que geralmente ultrapassam as próprias intenções subjetivas do indivíduo. O indivíduo, então, apesar de ter a sensação de agir exclusivamente conforme sua própria vontade, tende a circular dentro do que Pierre Bourdieu chamou de “campo dos possíveis”[5], que nada mais seriam do que as possibilidades consideradas realizáveis e acessíveis àquele determinado grupo, obtidas após a exclusão das demais possibilidades, já previamente assumidas como impossíveis ou inatingíveis. A homogeneidade objetiva do habitus, então modelada a partir dessas escolhas de classes e resultante das condições comuns de existência compartilhadas por um grupo geracional em um dado tempo e espaço, faz com que as práticas de cada geração possam ser teórica, prévia e objetivamente previstas. O momento presente do grupo ou da classe passa a funcionar, nesse sentido, como um porvir do mundo presumido[6]. Frise-se, ademais, que é justamente a partir dos comportamentos de cada geração frente a seu campo de possíveis que se dá a transmissão da herança de desigualdades, ou, em sentido contrário, que são feitas triagens prévias que terminam por direcionar (muitas vezes inconscientemente) as escolhas das futuras gerações em relação à sua carreira, seu cônjuge etc, a fim de que conquistem uma ascensão social. 
  • Classe Social: a noção sociológica de geração tem como um de seus fundamentos a classe social na qual estão inseridos os diferentes grupos etários que, conforme ressalta Marialice Mencarini Foracchi, vivenciam uma experiência estratificada dos fenômenos psicossociais. Segundo a autora, essa reciprocidade simbólica obtida pela classe ao longo do tempo abarca os conteúdos cognitivos e afetivos validados por uma geração e permite sua transmissão às seguintes, garantindo-se não somente a continuidade do processo de criação cultural, mas também o “desenvolvimento harmonioso do processo de socialização”[7].
  • Gênero: alguns estudos sociológicos[8] mostram que o processo de transmissão intergeracional sofre influências de acordo com o gênero do indivíduo e de seu grupo geracional. A socióloga Claudine Attias-Donfut, em suas pesquisas realizadas na França[3], constatou, por exemplo, que as filhas mulheres teriam maior tendência, quando comparadas aos filhos homens, a cuidarem dos pais idosos e, por outro lado, a lidarem melhor com a influência dos filhos mais jovens sobre as decisões da família. As mulheres, nesse sentido geral, podem ser consideradas melhores guardiãs das relações intergeracionais, por proporcionarem boas alianças de convivência entre as várias gerações de uma mesma família.
  • Tempo: como o estudo da transmissão intergeracional de conhecimento é geralmente realizado a partir de análises comparativas entre as gerações, o elemento tempo tem primordial importância nesse processo. Além de a própria caracterização das gerações ser efetuada conforme, dentre outros critérios, o etário, é também o elemento tempo que permite a construção das reciprocidades simbólicas e das identidades geracionais[3] representadas pelas diversas experiências vivenciadas e compartilhadas, em um determinado momento histórico, por uma geração, uma classe, um gênero etc.
  • Aspectos psicológicos: apesar de se saber pouco a respeito do funcionamento das funções psicológicas nos processos de transmissão intergeracional, alguns autores reconhecem a necessidade de sua consideração[5].
  • Mudanças sociais: estudos constataram[4] que, quanto maior o fluxo e a rapidez de mudanças sociais, maior é a possibilidade de ocorrerem discrepâncias entre as experiências vivenciadas por cada geração. Com isso, maior também é a acentuação das diferenças intergeracionais e, consequentemente, mais elevadas são as chances de ocorrerem conflitos entre as gerações.

Discussões contemporâneas

[editar | editar código-fonte]

Dentro do campo da transmissão intergeracional, muito se tem discutido atualmente sobre o problema causado pela contradição verificada entre a educação fornecida pelos pais e pelas instituições escolares e o surgimento de um novo contexto social. Essa cisão que prejudica o caminho de continuidades entre as esferas educativa e profissional resulta num fenômeno de quebra de expectativas, hoje experimentado por muitos jovens, que têm de lidar com as sensações de ressentimento e fracasso profissional. Segundo Pierre Bourdieu[6], a permanência de habitus primários do indivíduo é capaz de explicar a ocorrência de práticas objetivamente desajustadas às atuais condições sociais, da escola, do mercado de trabalho etc, porque eram adaptadas, pensadas e preparadas para funcionarem adequadamente em contextos passados e sob condições já historicamente ultrapassadas. Um exemplo brasileiro concreto de tais inadaptações, reforçado pelo sentimento provocado pela experiência de declínio social, pode ser encontrado nos relatos dos jovens filhos de metalúrgicos da região do ABC Paulista, relatos estes dispostos na obra Ser metalúrgico no ABC: transmissão e herança da cultura operária entre duas gerações de trabalhadores, da socióloga brasileira Kimi Tomizaki[9].

Outro aspecto bastante em voga na seara sociológica geracional refere-se a um fenômeno de inversão de padrões que tem sido verificado atualmente. Trata-se do recíproco deslocamento dos papéis da juventude e da velhice nas sociedades contemporâneas. Durante a Modernidade e boa parte do século XX, as sociedades ocidentais experimentaram a prevalência das tradições, dos valores e dos costumes, marcas típicas de sociedades seculares estruturadas sobre um estável patamar de continuidades e transmissões ininterruptas de conhecimentos entre as gerações[4]. Nessas sociedades, os jovens absorviam e acompanhavam a carga simbólica que lhes era transmitida pelas gerações dos adultos e velhos. Em contrapartida, as sociedades contemporâneas enfrentaram uma poderosa ruptura desses padrões tradicionais de transmissão intergeracional e, hoje, lidam com a preponderância dos padrões típicos da geração jovem. Conforme destacam alguns sociólogos[3], a inversão das hierarquias entre as gerações foi um efeito da modernização e, nesse novo cenário, os jovens adquiriram uma inusitada força política que vem se opondo ao poder tradicional atribuído às gerações de velhos e adultos. Em termos de relação intergeracional, essa ruptura dos padrões tradicionais de transmissão de conhecimento reflete diretamente na criação de conflitos entre as gerações. Ao tratarem dos conflitos, aliás, os sociólogos geracionais nos despojam de toda e qualquer carga pejorativa, para encará-los como um fato legítimo e corriqueiro na relação entre jovens, adultos e velhos. Os atritos insurgentes entre as gerações podem ter inúmeras causas. Os diferentes modos de educação, por exemplo, mais ou menos autoritários ou liberais, têm importante papel nesses conflitos, já que gerações submetidas a métodos mais autoritários de ensino tendem a reproduzi-los nas gerações mais novas e, ademais, tendem a depositar, nos mais jovens e principalmente nos meninos, maiores expectativas de que eles sigam rigorosamente os preceitos ensinados através dessa educação de marca tradicionalista[3]. Esses confrontos também ocorrem diante da dissonância verificada entre as expectativas paternas e a realidade educacional e profissional de seus filhos jovens: muitas vezes, os pais realizam processos de sucessão que são material e simbolicamente muito elaborados, mas que acabam demandando, dos filhos, estratégias nem sempre atingíveis para viabilizar concretamente os planos[9]. Além disso, os conflitos entre as gerações também se verificam entre as gerações dos velhos e a chamada geração “pivô”, diante da constante tensão formada pela dependência e autonomia dos mais velhos e a intromissão de seus filhos, para seus cuidados[3]. Todavia, esses conflitos, conforme reforça Marialice Mencarini Foracchi, pouco ou nada têm de ver com disputas travadas entre limites etários distintos, mas sim com o desencontro provocado pelas diferentes regras costumeiras instaladas dentro de cada sistema geral de reciprocidades simbólicas pertencentes a cada geração[7], i.e., os grupos etários funcionam como núcleos de socialização do indivíduo, que inclusive permitem sua inserção em um dado sistema social, porém a existência desses grupos, por si só, não pode ser considerada a causa dos conflitos nas relações intergeracionais.

Como o campo da transmissão intergeracional tem como objeto de estudo não somente os diferentes conhecimentos construídos pelas gerações, mas também as relações e trocas efetivadas entre elas, o método comumente utilizado em suas pesquisas é o da análise comparativa[10]. A partir do contraste e da comparação entre duas ou mais gerações[3], analisam-se os fatores internos e externos que levam os indivíduos a serem mais ou menos propensos a optarem, no decorrer da vida familiar, social e profissional, por determinados caminhos e não por outros; analisam-se seus comportamentos, seus microclimas familiares e as lições de vida transmitidas às gerações dos descendentes; verifica-se, enfim, como se dá a transferência de uma realidade simbólica em meio a contextos sociais, econômicos e históricos bem específicos[5].

Família e Transmissão Intergeracional

[editar | editar código-fonte]

O pressuposto para se entender adequadamente o conceito de família com o qual a Sociologia das Gerações trabalha é afastar, de antemão, aquela noção tradicional de família enquanto núcleo sanguíneo constituído por progenitores de sexos distintos e sua prole. Para a Sociologia das Gerações, o conceito de família deve ser expandido para uma perspectiva multigeracional (de pais, filhos, avós, tios, primos etc) que vai inclusive além dos laços sanguíneos, abarcando a existência de laços afetivos. A família não deve ser analisada apenas sob seu espectro funcional econômico, sentimental ou de procriação, mas também à luz do rico material relacional que seus componentes produzem[11].

Bem definido o conceito de família com o qual trabalha a Sociologia das Gerações, vale mencionar que o campo da transmissão intergeracional está intimamente relacionado ao estudo do status social como atributo familiar[5]. Como a família constitui uma unidade ou um núcleo social que corporifica os processos sucessórios entre as gerações, ela faz aflorar de forma bastante evidente as marcas de evolução ou involução social dos indivíduos pertencentes a seus quadros, apresentando-se como um dos elementos de imbricação mais perfeitos entre os campos micro e macrossociais. É através da família que a Sociologia das Gerações consegue executar análises comparativas entre os grupos etários nascidos em diferentes épocas, para então contextualizar social, histórica, cultural e economicamente a multiplicidade de práticas detectadas, obtendo-se, enfim, a construção das reciprocidades simbólicas enquanto padrões mais gerais de comportamentos geracionais. 

De acordo com Pierre Bourdieu[12], a relação das gerações familiares mais velhas e mais novas passa por sinuosos campos cognitivos e afetivos, de maneira que inúmeros fatores acabam perpassando a transferência intergeracional dos capitais humanos. Em termos afetivos, por exemplo, ao mesmo tempo em que um pai é sujeito e instrumento de um projeto familiar (conatus), ele pode desejar o sucesso pessoal ou profissional do filho, mas igualmente temer que esse bom desempenho das gerações mais novas termine por eclipsar sua própria figura, ocasionando uma morte simbólica das gerações mais velhas. Por sua vez, a transmissão intergeracional dentro das famílias também depende do bom ou mau relacionamento travado entre as gerações: ainda segundo Pierre Bourdieu, os herdeiros que aceitam herdar as práticas das gerações mais velhas sem grandes questionamentos escapam das chamadas “antinomias da sucessão”. E essa disposição afetivo-cognitiva para o relacionamento, por seu turno, também depende fortemente de transformações nas condições sociais e históricas nas quais estiveram e estão inseridas as diferentes gerações[3] Frise-se ainda ser justamente dentro da seara familiar que acontece a chamada “transmissão em equivalência”[5], caracterizada pela transferência de uma dada realidade simbólica dotada, contudo, de algumas adaptações realizadas pelas gerações dos descendentes. Pela transmissão em equivalência, as gerações mais novas tendem a atualizar e forjar novos rearranjos em relação às atividades e aos comportamentos realizados pelas gerações mais velhas para, a partir disso, darem continuidade ao exercício das práticas recebidas pelas heranças familiares. Através desse tipo específico de transmissão intergeracional, por exemplo, os descendentes tendem a continuar nos mesmos ramos de atividades profissionais dos pais, avós, bisavós etc, ainda que não desempenhem exatamente as mesmas funções e não lancem mão dos mesmos meios de execução das atividades: são aqueles exemplos típicos de famílias inteiras compostas de médicos, advogados ou engenheiros; são também aqueles exemplos típicos de famílias em que o avô era marceneiro, o pai tornou-se vendedor de uma loja de móveis e o filho, arquiteto.

Quer-se mostrar com tudo isso a existência de um sem número de maneiras, processos e funcionamentos de transmissões intergeracionais de conhecimentos no seio familiar, que terminam por terem como objeto de transmissão outro sem número de práticas, valores, modos de viver, sentir e conhecer o mundo, comportamentos, capitais culturais, econômicos, heranças de relacionamento pessoal etc. Tal ideia, aliás, apenas reforça a relevância do estudo da família no campo da Sociologia das Gerações.

Solidariedade Intergeracional

[editar | editar código-fonte]

Segundo o princípio da reciprocidade e da necessidade[13], a sociedade possui uma dinâmica geracional, resultante de sua incessante interação com a conjuntura histórica, e também tributária do ritmo biológico, que contribui para minimizar os efeitos das crises econômicas enfrentadas pelas sucessivas gerações. Forma-se assim uma rede de solidariedade que é capaz de mitigar os efeitos sobre os descendentes ao mesmo tempo que busca preservar a posição dos ascendentes. A título de exemplo, as gerações anteriores ajudam as seguintes a financiar seus estudos ou a estabelecer sua primeira moradia fora da residência familiar. Por outro lado, o cuidado dos mais velhos por parte dos mais novos - tanto na esfera da saúde e limitações físicas quanto no âmbito material - é um fenômeno típico de colaboração intergeracional. Vale ressaltar que, atualmente, não é incomum observarmos a geração anterior contribuir financeiramente para o sustento dos mais jovens, valendo-se de suas aposentadorias uma vez que, com a idade, seus gastos regulares tendem a diminuir. Some-se a isto, que avós costumam cuidar dos netos para que filhos e filhas (e também genros e noras) estejam liberados para trabalhar e gerar renda para a família, configurando um quadro de ajuda típica de situação social ascendente.

Esse verbete foi escrito como etapa obrigatória de conclusão da disciplina de “Transmissão Intergeracional, Educação e Trabalho” no Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Todos aqueles que participaram do curso, matriculados ou não, contribuíram com a construção de um verbete. Assim sendo, aos estudantes (reais autores do texto) à totalidade dos agradecimentos pelo saber compartilhado. 

Referências Bibliográficas 

[editar | editar código-fonte]
  1. MOTTA, Alda Britto da. A Família Multigeracional e seus Personagens. Educ. Soc., Campinas, v.31, n.111, p.435-458, abr./jun.2010.
  2. TOMIZAKI, Kimi . Transmitir e herdar: o estudos dos fenômenos educativos em uma perspectiva intergeracional. Educação & Sociedade (Impresso), v. 31, p. 327-346, 2010.
  3. 3,0 3,1 3,2 3,3 3,4 3,5 3,6 3,7 3,8 ATTIAS-DONFUT, Claudine. Rapports de générations. Transfers intrafamiliaux et dynamique macrosociale. In: Revue Française de Sociologie, 2000, 41-4, p. 650
  4. 4,0 4,1 4,2 BORGES, Carolina de Campos; MAGALHÃES, Andrea Seixas. Laços Intergeracionais no Contexto Contemporâneo. In: Estudos de Psicologia, 16 (2), maio-agosto/2011, p. 173.
  5. 5,0 5,1 5,2 5,3 5,4 5,5 5,6 5,7 BERTAUX, D. BERTAUX-VIAME, I. (1985) Le pratrimoine et as lignée: transmission et mobilité sociale sur cinq générations. Life Stories/Récits de vie. <http://www.daniel-bertaux.com/textes/daniel-bertaux-bertauxwiame-le-patrimoine-et-sa-lign-e.pdf<
  6. 6,0 6,1 6,2 BOURDIEU, Pierre. Estruturas, habitus, práticas. In: Senso Prático. Rio de Janeiro: Vozes
  7. 7,0 7,1 FORACCHI, Marialice M. O Conflito de Gerações. In: A Juventude na Sociedade Moderna. São Paulo: Pioneira, 1972, p. 30-31.
  8. MOTTA, Alda Britto da. A Família Multigeracional e seus Personagens. Educ. Soc., Campinas, v.31, n.111, p.435-458, abr./jun.2010.
  9. 9,0 9,1 TOMIZAKI, Kimi. Ser metalúrgico no ABC: transmissão e herança da cultura operária entre duas gerações de trabalhadores. Campinas: CMU Publicações; Editora Arte Escrita, 2007
  10. BERTAUX, Daniel; BERTAUX-WIAME, Isabelle. (1985) Le patrimoine e as lignéé: transmissions et mobilité sociale sur cinq générations. Life Stories / Réctis de Vie: Families and Careers in History, p. 8. Disponível em: http://www.daniel-bertaux.com/textes/daniel-bertaux-bertauxwiame-le-patrimoine-et-sa-lign-e.pdf. Acessado em 19 nov. 2016.
  11. SILVA, Marina da Cruz. As Relações Geracionais no Contexto Familiar e Social: Revisitando o Debate. Disponível em: http://www.ufpb.br/evento/lti/ocs/index.php/18redor/18redor/paper/viewFile/2116/661. Acessado 20 nov. 2016.
  12. BOURDIEU, Pierre. As Contradições da Herança. In: Escritos de Educação. Petrópolis-RJ: Vozes, 2007
  13. Attias-Donfut, Claudine; Lapierre, Nicole; Segalen, Martine (2002), Le nouvel esprit de famille. Paris: Éditions Odile Jacob.