Utilizador:Alessandro W. T. Ferreira
Memórias de um mestre capoeira: do preconceito à representatividade cultural do Brasil
1. Introdução
A capoeira é uma arte reconhecida no mundo todo, sendo ela umas das representantes da cultura do nosso país.
Através da oralidade e de algumas experiências vividas por mim, escolhi esse tema, pois acho de grande relevância a preservação da memória de uma arte que não só fez parte da construção cultural do Brasil, mas também permanece viva como símbolo de luta e resistência de um povo.
A força da capoeira é comprovada através de sua resistência aos longos dos anos, pois faz parte de um movimento de luta pela liberdade. Foi associada à criminalidade, até ser o símbolo representante da nossa cultura.
Os praticantes da capoeira foram por muitos anos considerados vagabundos e vadios, bastava o simples fato de praticá-la para receberem ordem de prisão.
Quando trabalhamos a memória, é preciso levarmos em conta o que dela foi preservada, como cada um traduz o que vivenciou, como se dá a interpretação individual daquilo que é experimentado pela memória do outro.
Tratando-se especificamente da capoeira, deparamo-nos com algumas questões: diante de tantas lutas até os dias de hoje, quais foram as memórias conservadas dessa arte? O que foi passado através da oralidade que ainda é ensinado nos dias de hoje? Quais mudanças aconteceram ao longo do tempo?
É preciso entender a importância da preservação da memória, pois somente dessa maneira seremos capazes de conservar nossas raízes, termos nossa identidade e nos reconhecermos historicamente.
É preciso evitar o apagamento da história, para que não aconteça distorções de acontecimentos importantes, e a oralidade, em muitos casos, é a melhor forma de entendê-los.
Diante do exposto, entre o prazer de matarmos a saudade em meio a uma boa conversa, entrevistei um grande mestre de capoeira e velho amigo, Edvaldo Pereira dos Santos, conhecido como Mestre Pereira. A entrevista ocorreu no dia 28 de outubro de 2024, precisamente às 10:00 horas, na cidade de Marília - SP.
2. Apresentação
Edvaldo Pereira dos Santos, 51 anos de idade, formado em Educação Física (Bacharel e Licenciatura), nascido aos 23 de março de 1973, na cidade de Tupã. Migrou para a cidade de Marília ainda com cinco anos, e foi com essa idade que se aproximou da capoeira.
“Com cinco anos me iniciei como passista da escola de samba Unidos do Bonfim, escola essa que pertencia ao antigo Morro do Querosene, hoje conhecido como Alto Cafezal. Logo depois mudei para o bairro Vila Nova em Marília, ingressando então à escola de samba do Castelo Branco”.
Aproximadamente, aos dez anos de idade, mestre Pereira assistindo ao ensaio da escola de samba que era realizado no posto de saúde do bairro Castelo Branco, depara-se com duas pessoas que realizavam movimentos de capoeira, deixando-o impressionado.
Esses dois capoeiristas, um de nome Joaquim, vindo de São Paulo e o outro Carlos que treinava capoeira aqui na cidade com o mestre Maurilio, em meio ao ensaio da escola de samba, estavam jogando capoeira. Dentre as movimentações, Joaquim deu uma tesoura1 em Carlos, deixando mestre Pereira entusiasmado. “Rapaz, que negócio legal que é isso aí”.
Ao terminar o ensaio, mestre Pereira pergunta a Joaquim e ao Carlos o que era aquilo que eles estavam fazendo, e eles respondem que era capoeira. Mestre Pereira encantado com o que viu procura se informar com eles onde teria capoeira para praticar, e é dito que ele encontraria com o mestre Maurílio, na avenida Santo Antônio. Mestre Pereira relata na época ser muito moleque, e ainda não tinha muita noção de ir a alguns lugares. Porém, no dia em que ele estava assistindo ao ensaio, junto dele tinha um amigo conhecido como Natal. Mestre Pereira e seu amigo Natal, começam, então, treinar na rua da sua casa os movimentos que haviam assistido no
ensaio da escola de samba, criando assim uma sequência de movimentos.
Nessa época, estava surgindo a questão da Consciência Negra, movimento relacionado às culturas de matrizes africanas, e por eles realizarem na escola as
1 Golpe em que o capoeirista se aproxima do oponente, vira-se tronco e braços e salta. Quando está no ar, contrai-se as pernas como uma tesoura a ser usada na perna ou na cabeça do adversário. Sendo preciso percepção visual, coordenação motora, orientação espacial, consciência corporal e força muscular.
movimentações que tinham aprendido e praticado na rua, foram convidados a realizarem uma apresentação de capoeira juntamente com o pessoal do samba.
Essa primeira apresentação aconteceu na escola Antônio de Baptista, escola essa que hoje eu faço estágio, e saber desse acontecimento me faz olhar para esse lugar de maneira diferente, porque ali nascia um mestre que posteriormente se tornou um grande amigo.
Logo após se apresentaram na escola Geraldo Zancope e na Unimar. Na Unimar o convite veio devido a uma missa afro realizada na universidade.
Para o mestre Pereira foi dessa forma que eles conheceram e deram os seus primeiros passos com a capoeira, sem ao menos saber ou entender exatamente o que ela era.
3. Início da sua trajetória como capoeirista profissional
Mestre Pereira relata que dos quinze para os dezesseis anos de idade ele encontrou um professor de capoeira na rua, conhecido hoje como mestre Babu. Em uma conversa, após mestre Pereira ter feito uma ponteira2 na rua, Babu o elogia pelo movimento realizado e o convida para treinar na Unesp. Na época a aula era administrada pelo contramestre Kal. Após seis meses de treino, consegue sua primeira graduação representada por um cordão3 verde-claro. Mestre Pereira permanece com o contramestre Kal por nove meses, encontrado depois, Antônio Carlos, que ainda não era professor, e atualmente é conhecido como mestre Nenê.
Após uma pausa para um café e para colocarmos a conversa em dia, dou continuidade pedindo para que mestre Pereira conte um pouco mais sobre esse trabalho na Unesp e sua trajetória com o mestre Nenê.
Mestre Pereira relata que começou a capoeira na Unesp no ano de 1988, através do convite realizado pelo, hoje, mestre Babu, dando início a sua prática com o contramestre Kal, no grupo África Negra.
2 Movimento de ataque que consiste em dar um chute rápido e preciso com a ponta do pé. É uma técnica bastante comum na Capoeira Regional, criada pelo Mestre Bimba, mas também pode ser encontrada em outras vertentes da Capoeira.
3 Variam nas cores e nas combinações, representam diferentes níveis de experiência, desde o iniciante até o mestre, cada um carregando seu próprio significado e importância. Iniciantes geralmente recebem cordões de cores claras, simbolizando o início de sua jornada na capoeira.
Relata que frequentava muitos lugares procurando boa música para dançar. Em um desses locais, a boate Neon, conheceu um rapaz que tinha características que se assemelhavam as dele, não somente o visual, mas também na dança, e assim começaram a conversar. Apresentaram-se como capoeiristas, fizeram um jogo, e dentre as movimentações, ele destaca o parafuso4 do rapaz como algo absurdamente incrível. Pereira pede para que ele o ensine, tornando-se seu primeiro aluno.
Mestre Pereira descreve o mestre Nenê como uma pessoa fantástica, criando- se entre eles uma grande amizade. Desenvolvem um trabalho que recebe o nome de Raízes da África. Atualmente Mestre Nenê mora na Espanha onde dá continuidade ao seu trabalho com a capoeira.
Após três meses do início do projeto Raízes da África, mestre Pereira relata que desciam ao “buracão” onde realizavam o treinamento. Havia aproximadamente trinta pessoas de branco com todos os instrumentos, como berimbau, atabaque e pandeiro, o que chamava a sua atenção de maneira positiva. Mestre Pereira permanece com o mestre Nenê por nove anos. Ele é inserido nas competições, alcançado o primeiro lugar por várias vezes, sendo por nove anos campeão invicto pela cidade de Marília nos jogos regionais.
Nessa época, já com o cordão amarelo, ingressou de cabeça no mundo das competições, viajando para todos os lugares, não só com o mestre Nenê, mas também com mestre Kal, com o mestre Escravo, entre outros. Isso proporcionou a ele a oportunidade de ser conhecido e conhecer outros mestres, como Baianinho, Terra, Tatu, Mocotó e Galo de Briga.
Ao ouvir as respostas sobre sua trajetória, quis saber do mestre Pereira qual o ensinamento que ele havia recebido do seus mais velhos sobre as cores da graduação na capoeira.
Segundo o mestre Pereira, as cores da graduação tem como função representar a bandeira do Brasil, sendo elas: verde, amarelo, azul e branco, podendo serem intercaladas por: verde e amarelo, amarelo e azul, azul e branco.
Existia uma quantidade de graduações que, com o passar do tempo, foram aumentadas com o objetivo de prolongar a formação dos capoeiristas, além de poderem ganhar um pouco mais, pois antigamente era difícil viver apenas da capoeira.
4 Consiste em um giro completo no ar, o qual o capoeirista gira em torno de seu próprio eixo.
Hoje em dia, com a chegada da internet, podemos observar a facilidade de divulgação e consequentemente a abertura de portas para se trabalhar com essa arte.
A capoeira, hoje, segundo o mestre Pereira, é reconhecida como profissão.5 Entretanto, antigamente, a capoeira exercia muitos trabalhos sociais, e para que isso fosse possível, muitos mestres viviam do apoio e da ajuda dos alunos.
Mestre Pereira reforça que a capoeira cresceu muito nos dias de hoje, tornando-se responsável pela divulgação da cultura brasileira como a arte que mais divulga o nosso idioma para outros países. Isso se dá pelo fato de quem procura a capoeira não é somente para conhecê-la, mas também para conhecer a cultura do povo brasileiro. É despertado nesses alunos a vontade de estudar a língua portuguesa, devido ao fato das cantigas presentes nas rodas e os nomes dos movimentos serem ditos todos em português.
A capoeira tem um papel importante para manter viva nossa cultura que envolve a língua, a culinária etc.
4. A importância da capoeira na construção histórica do Brasil
Durante a entrevista foi possível sentir o quanto a capoeira realmente tem um papel considerável na construção do país e ao observar isso, perguntei qual seria a contribuição histórica que a capoeira teve na formação do Brasil.
De acordo com o mestre Pereira, a capoeira é uma luta de resistência, e foi proibida de 1890 a 1930. Todo cidadão que realizasse movimentos que fizessem referência à capoeira era açoitado ou preso de dois a seis meses.
A proibição da prática de capoeira se deu por ela ser conhecida como a luta da morte. Com a Lei Áurea muitos escravizados foram para as ruas, e por não terem como se alimentarem, acabavam por atacar pessoas com o intuito de roubar alimentos, resultando muitas vezes em morte. Mestre Pereira narra que muitos matavam por peso de ouro. Capoeiristas contratados por fazendeiros eram pagos para matar seus desafetos e donos de engenhos devido às divergências por terras.
Maltas de capoeira6 também eram contratados para destruir comícios em época de eleição e segundo o mestre Pereira eles chegavam e arrebentavam com tudo.
5 PL 7150/02, do deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP).
6 Grupos de capoeiristas do Rio de Janeiro compostas principalmente de negros e mulatos, que lutavam e resistiam contra o sistema da época.
Ele continua relatando que a capoeira tinha uma força e uma energia muito grande. Tudo isso vinha da dor e, sobretudo, do que tinham passado, como dificuldades e necessidades, pois foram tirados da sua terra, de seu país, e escravizados. Eles não nasceram escravos e foi através das mãos do povo negro, com muito trabalho e muito sangue derramado, que o Brasil foi construído.
Para estarmos aqui hoje conversando e falando sobre a capoeira, sobre a cultura do povo, sobre a história do Brasil, o povo negro teve uma gigantesca contribuição, e todos os brasileiros têm um pouco do sangue desse povo, e ainda que não concordem, hoje estão bem por conta daquilo que os negros fizeram aqui.
Durante um período da era Vargas, buscando atrair a simpatia do povo brasileiro, foi possível observar a liberação de manifestações culturais que estavam proibidas, dentre elas as afro-brasileiras como a capoeira, o samba e o candomblé. Mestre Pereira também relata que quando Getúlio percebe que iria perder a eleição, “libera” e abre uma “oportunidade” para os negros poderem votar, e isso é algo muito marcante na nossa história, que somente foi possível através de muito sangue derramado, pois muitos morreram pela “liberdade” que se tem hoje.
No decorrer da entrevista, refleti ainda mais sobre a importância da memória para se manter a história viva. Isso me levou a querer saber qual era a sua opinião sobre a oralidade, forma de ensinamento tão presente nesses povos. Sendo Pereira um mestre de capoeira, considero-o um porta voz dessa cultura e dessa memória, e por esse motivo quis saber como ele se sente ao ver algo que era tão marginalizado, ter ganhado tanta força e que hoje representa o Brasil, sem renunciar a sua língua e os seus costumes.
Mestre Pereira responde que no mundo da capoeira se diz que o capoeirista é como o camaleão. Todavia para ele isso vai muito mais além, pois muitas vezes o capoeirista é como a água que se molda às montanhas, aos locais onde ela se encontra, e assim, ela vai seguindo o caminho até chegar ao seu destino.
Quando se leva uma criança de cinco a nove anos e começa a trabalhar com questões cognitivas através da musicalidade, trabalhando a coordenação motora, e as insere na cultura, obtém-se um desenvolvimento mais completo. Para o mestre Pereira, o esporte ajuda muito no desenvolvimento do indivíduo, e enfatiza que a
musicalidade mexe muito com o emocional, sendo assim, você vê algo muito forte em função das emoções, pois quando se trabalha esse sentimento juntamente com o esporte, é possível ver um desenvolvimento maravilhoso.
Isso faz que o indivíduo se torne mais forte, mostrando-nos uma linha de guerra, pois o povo negro teve que lutar em várias guerras, tiveram que desenvolver um espaço físico dentro de um país que eles não conheciam e não entendiam, algo que remetesse ao seu passado e a sua terra natal.
5. De Marília para o mundo
Quando mencionado pelo mestre a importância da capoeira em levar a cultura para o mundo, perguntei-lhe sobre sua experiência em outros países, Pereira diz que isso foi possível através do mestre Laudelino de Lima, conhecido como mestre Lima.
Mestre lima foi o terceiro mestre de Pereira, sendo o responsável por colocá-lo em viagens pelo Brasil e pelo mundo. Mestre Lima, na época, encontrava-se em Ribeirão Preto e tinha muitos trabalhos desenvolvidos por ele, esses trabalhos eram realizados nas cidades de Marília, Itápolis, Borborema, até chegar em Ribeirão Preto. Mestre Pereira diz ter conhecido mestre Lima na cidade de Agudos, sendo esse o primeiro contato entre eles.
No ano de 1996, já professor formado, Pereira vai à cidade de Santos, onde é realizada sua formatura, tornando-se contramestre de capoeira pelo mestre Lima. Pereira acreditava que quem deveria formá-lo era o mestre Nenê, mesmo assim ele aceita a formatura que se deu através de muito estudo, dedicação, viagens, treinamentos e torneios por ele vencidos. Na época era necessário fazer os cursos, além de muita prática, diferente de hoje que se busca “conhecimento” através da internet.
Mestre Pereira relata ter feito cursos não apenas com o mestre Lima, mas também com o mestre Moraes, em Jaú, e o Mestre Jogo de Dentro, em São Paulo, procurando em seus estudos o pessoal da capoeira regional, momento em que conhece o mestre Macaquinho e o mestre Sagui, mestres que vêm da linhagem da capoeira regional do mestre Bimba. Ele atribui suas participações e vitórias nos torneios ao vasto conhecimento que adquiriu tanto da tradição quanto dos fundamentos da capoeira, pois lhe proporcionou qualidade de jogo, e isso chamou a atenção do mestre Lima.
“Mestre Lima é o cara mais resistente que eu já vi até hoje dentro de uma roda de capoeira, joga com treze, quatorze mestres, um atrás do outro, e ele era muito técnico, dava muita queda em todo mundo, e eu gostei daquilo.”
A partir daí o mestre Pereira passa a acompanhar o mestre Lima, que o levava sempre para mais longe. Após a formatura de contramestre em Santos, Pereira é formado como mestre em Curitiba no ano de 2001. Logo após, Lima vai embora para Genebra, na Suíça, convidando-o para ir com ele. Essa foi a primeira cidade fora do país que mestre Pereira conheceu, permanecendo lá por quinze dias, o que possibilitou fazer contato com capoeiristas de diferentes países como França, Espanha e Portugal. Mais tarde também teve a oportunidade de estar em todos esses países, chegando a Cabo Verde e à Ilha de Santiago, através da amizade que fez com Orizambi.
Como um apreciador e defensor quando se trata de manter viva a memória ancestral, em particular a africana e a indígena, acabei por perguntar ao mestre como se dão os diferentes estilos existentes dentro da capoeira. Qual memória foi mantida nessa cultura através dos mais velhos e permanece viva até os dias de hoje?
Pereira relata que através de seus aprendizados, a capoeira Angola surge apenas depois que o mestre Bimba7 cria a capoeira regional, pois eles não queriam vincular a capoeira do mestre Bimba a capoeira tradicional que era praticada.
7 Manoel dos Reis Machado, conhecido como Mestre Bimba, foi o criador da capoeira regional, também chamada de luta regional baiana, no final da década de 1920.
As diferenças existentes acontecem porque através de uma análise de mestre Bimba, ele percebe que a capoeira de Angola tinha perdido suas características de luta, sendo que essa luta que teria libertado os escravizados, passando a ter uma função mais teatral para chamar a atenção do povo, conquistar dinheiro e sobrevierem dessa arte. Mestre Bimba, então, resolveu desenvolver uma parte da capoeira como luta para competições, surgindo então a capoeira regional, chamada de capoeira regional baiana. É criada por ele nove sequências, e dentro delas coloca movimentos de savate8, judô9 e batuque10, arte que seu pai era campeão.
Mestre Bimba era um cara muito forte, que tinha muita postura, ele pega essa capoeira que era mais baixa, mais para o chão e a levanta um pouco mais, trazendo a questão da luta, deixando-a um pouco mais agressiva e mais técnica.
Mestre Pereira relata que no prefácio do mestre Bimba ele diz assim: “Eu criei sequências até aqui, então vocês deem continuidade.”
De acordo com Pereira a capoeira que chega para nós, na verdade, não tem nem a função de Angola nem a função da Regional, porque se diz que “capoeira Angola joga lento e capoeira Regional joga rápido”, mas quando se fala em capoeira regional, está se falando de uma capoeira que é da região.
Mestre Pastinha diz, segundo Pereira, que a capoeira é tudo que a boca come, e quando ele diz isso, ela fala que tudo que você colocar nela, ela vai aceitar.
Para Pereira, existe aí algo muito interessante conectado com as funções emocionais, ou seja, se você colocar ódio na capoeira ela vai aceitar, se você colocar raiva ela vai aceitar, se você colocar amor ela vai aceitar, se você colocar caridade ela vai aceitar. Na verdade, tudo o que você entregar ela vai aceitar, mas ela vai te devolver, então é algo que você vai ter que entender, mas que às vezes as pessoas não entendem. Você quer ser o melhor lutador, você quer ser o melhor guerreiro, vai fazer e acontecer, mas no final você vai ter resposta disso. Se você for uma pessoa que se entrega para ela, ela também vai se entregar para você, e vai te dar a resposta,
8Também conhecido como boxe francês, transcende o simples kickboxing com sua combinação única de habilidade, enganação e uma maestria incomparável com as pernas.
9 Criada por Jigoro Kano em 1882, o judô é uma adaptação do jiu-jitsu, que tem por objetivo desenvolver técnicas de defesa pessoal, fortalecer o corpo, o físico e a mente de forma integrada.
10 Luta popular, de origem africana, muita praticada nos municípios de Cachoeira e Santo Amaro e capital da Bahia, uma modalidade de capoeira. A tradição indica o batuque-boi como de procedência Bantú.
assim portas serão abertas, mas tudo é determinado pela pessoa que você é, através do seu comportamento e do seu caráter.
Referente aos fundamentos e às tradições da capoeira, você não vai aprender somente o que teu mestre lhe ensinar, mas muito mais aquilo que você busca, não dá para ficar só dentro de casa, você não pode ser “mestre de quarteirão”. É preciso ir muito mais além, precisa buscar fundamentos, estar com mestres antigos, pois o conhecimento e o fundamento estão nesses mestres, é preciso “encostar”, conversar com os mestres, pois eles têm muita história para contar.
“Às vezes a gente busca o mais novo, porque ele está mais rápido, ele tem movimentação bonita, e por muitas vezes nos esquecemos dos mais velhos, por estarem cansados, muitos não conseguem mais nem erguer a perna, mas são os que possuem o fundamento, a tradição e a memória, e é primordial valorizar e respeitar isso”.
Perguntei ao mestre o que deveria ser feito para que essas memórias continuem vivas, qual a importância da oralidade, da vivência e de ser fazer presente para acessar o aprendizado.
Pereira diz que para achar água para beber é preciso ir à fonte, e a fonte para ele está dentro desse trabalho de reprodução, mas entendendo aquilo que os mestres antigos trabalhavam.
“Eu estive em Salvador, fazendo um trabalho de pesquisa durante nove dias, e a maioria dos mestres que a gente viu, 95% deles eram analfabetos. Nenhum deles havia estudado, mas eram pessoas muito ricas na cultura. Quando você encontra um quilombo, você entende que a oralidade é muito importante, às vezes é possível escrever, mas a história é passada de pessoa para pessoa”.
Pereira diz que há pouco dias antes dessa entrevista, ele esteve em Curitiba, e lá afirmava que o futuro da capoeira está nas crianças, e tudo o que não existe crianças morre muito rápido. É preciso fortalecer a história, e a história começa pelas crianças, na educação, na função disciplinar, em você relatar o que está dentro da história juntamente com o que se desenvolve com o conhecimento esportivo. Para Pereira, o desenvolvimento da criança precisa ser trabalhado de forma conjunta, ou seja, cultura, esporte e educação.
É possível observar na narração do mestre Pereira a importância da capoeira para a história do país, não só a capoeira, mas toda a cultura africana.
Diante disso, perguntei-lhe se a capoeira é africana, brasileira, ou até mesmo se é possível as duas coisas.
O mestre diz que a capoeira nasce com a questão da liberdade dos negros, ela surge no Brasil, porém desenvolvida pelos africanos, diante do que eles tinham de metodologia e desenvolvimento de luta na África. É uma arte de origem brasileira, pois diante dos estudos realizados, e todos os relatos históricos, não existia capoeira na África. Segundo o mestre, a capoeira encontrada na África é a que migra do Brasil para lá.
6. Trabalhos desenvolvidos por intermédio da capoeira
Pedi ao mestre que falasse um pouco mais sobre seu grupo e o trabalho que ele exerce.
Pereira diz ter sido um menino que veio da periferia e parou de estudar na 5ª série. Voltou a estudar fazendo supletivo, e logo após ingressou no ensino superior para cursar a faculdade de educação física, na FAIP, já aos 42 anos. Pereira diz que a capoeira o incentivou a continuar com os estudos.
Formou-se aos 46 anos, sendo o primeiro aluno a fazer um projeto de extensão na FAIP que lhe proporcionou uma bolsa de estudo integral. Relata também que de acordo com o trabalho que desenvolve hoje, alega não ter ido aprender educação física para inseri-la na capoeira, mas sim inserir a capoeira na educação física, levantando a sua bandeira, que é a bandeira da capoeira, para que as pessoas pudessem entender os benefícios que ela tem.
Pereira também conseguiu com que 9 (nove) pessoas tivessem a oportunidade de estudar, através das competições realizadas, fazendo como uma moeda de troca: “nós vamos, ganhamos, trazemos medalhas para a cidade e o retorno é o estudo, buscando bolsas de estudos, e assim tivemos essas oportunidades de inserir pessoas. Eu sou o primeiro mestre de capoeira que inseriu pessoas da cidade para estudar na Unimar e na FAIP, e no curso que desejavam”.
A capoeira foi uma porta aberta para ele, pois hoje ele desenvolve um trabalho com o seu grupo que se chama “Marília Brasil”, nome escolhido por achar importante levar a bandeira da cidade. Realizou um trabalho em Padre Nóbrega, onde esteve dando aula por nove anos, logo após veio para Marília em um centro comunitário do bairro Jânio Quadros onde permaneceu por quinze anos.
Atualmente ministra aulas na academia Menina Rosa, onde tem um espaço para a capoeira, e no bairro Jânio Quadros, cujos objetivos são divulgar cada vez a capoeira e levar mais pessoas da periferia para as universidades.
“Essa é nossa função, fazer essa troca, mostrar para o pessoal da periferia que existe um leque de oportunidades para eles, às vezes a pessoa acha que é só aquilo que ela vai vivenciar, e não vai ter um pouco a mais. Eu saí da periferia e acabei conhecendo o mundo”.
“É isso que os pretos velhos nos Quilombos faziam, eles traziam o conhecimento dentro da oralidade, e hoje a gente pode trazer o conhecimento na escrita, então conseguimos dar um passo maior, mas houve alguém que abriu uma porta, e a porta veio da oralidade, dos negros velhos lá atrás e a gente só continua, vamos trabalhar com isso o resto da nossa vida, até quando Deus permitir a gente chegar”.
Ainda sobre memória, o que ficou marcado em você em relação aos aprendizados com os mais velhos?
“O respeito e os valores que precisamos dar aos mais velhos, principalmente pai e mãe, pois um dia estaremos no lugar deles. Respeitar os mais velhos, os mestres de capoeira como no meu caso, os seus professores, profissionais que trazem algo para que você possa aprender, isso é algo que será válido para sua vida toda, então acho que o respeito e a valorização da história e dos mais velhos é importante, pois para a gente estar aqui hoje, teve alguém que um dia nos ensinou para chegarmos nessa posição. O primordial de tudo é o respeito, o amor, a valorização e o cuidado, porque é como eu disse para você: o que você der para a capoeira ela vai te devolver, assim é com a história da humanidade”.
7. Toques de capoeira
Pereira finaliza dizendo que existem diferenças também entre os toques, sendo onze toques da capoeira regional e quatro da capoeira angola. Cada toque tem uma função dentro do jogo. Diante disso, peço-lhe que fale sobre alguns toques.
Existem três toques que são muito tocados na capoeira angola. São eles:
• Toque de Angola: Os negros saiam do porto de angola para vir para o Brasil, mais precisamente Recife, Rio de Janeiro e Salvador. Esses eram os locais que chegavam os navios negreiros, então o toque de angola é por conta disso;
• Toque de São Bento: quando se fala São Bento pequeno e São Bento grande, esse nome se dá ao fato de que o padroeiro da capoeira é São Bento, pois quando os negros tomavam picadas de cobra, eles oravam a esse santo pedindo a cura e por isso foi criado o toque de São Bento;
• Toque Santa Maria: esse toque tem por função representar a reza: “Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós os pecadores”.
Além dos já citados acima, mestre Pereira comenta sobre alguns outros toques relacionados à história da Capoeira.
• Toque Cavalaria: esse toque surge pelo fato da capoeira ser proibida de 1890 a 1930, esse era o toque de aviso, era preciso avisar que estava chegando a polícia montada. Mesmo acontecendo o jogo de capoeira, ao escutarem o toque cavalaria, mudava-se tudo na mesma hora, acabando com a roda de capoeira e começando outras brincadeiras, e assim todos iam se dispersando por conta da cavalaria.
• Toque Samba de Roda: acontece no recôncavo baiano quando o samba ainda não era unido à capoeira, mas em todas as festividades que tinham a capoeira acabava por ter também o samba de roda, e assim surge esse toque criando-se uma unificação entre o samba e a capoeira, e como era uma grande festa e tinha toda uma harmonia, eles tocavam o samba de roda e todos participavam.
• Toque Iúna: a Iúna é um pássaro que tem esse canto do macho e da fêmea. Esse toque foi desenvolvido pelo mestre Bimba, que o torna um toque para jogos de formatura de capoeiristas, e em muitos lugares também era direcionado ao jogo de mestres.
• Toque Amazonas: Mestre Pereira relata que em um contato com mestre Brasília e conversando sobre o toque Amazonas, descobriu que esse toque era um toque para mulheres, mas também já viu esse toque sando usado para acrobacias, colocava-se esse toque para realizarem movimentos individuais acrobáticos, mas sua função era tocar para jogo realizado por mulheres.
• Toque de Banguela: criado por Mestre Bimba, esse toque foi feito por causa do “esquenta banho”, é como se você soltasse um carro na banguela, o deixasse solto, sendo assim esse jogo de capoeira é um jogo solto, não tendo característica de ataque, ou de ficar trocando golpes. Na academia do mestre tinha um chuveiro e era pouca água que descia, como todo mundo queria tomar banho, ficavam ali tocando e jogando capoeira de forma mais solta, livre, surgindo assim o toque banguela, era o jogo para se esquentar para tomarem banho, pois a água era gelada.
• Toque Idalina: esse toque era intermediário; existia o São Bento grande e a Banguela, e o toque Idalina era um jogo que fazia as duas funções, sendo um pouco para baixo e um pouco para cima, com a função de ser intermediário entre os dois jogos, um trabalho técnico, mas também livre, solto.
• São Bento Grande da Regional: é um toque de entrada e saída, com a função de fazer um jogo técnico, um movimento dentro do outro. É um jogo realizado sem acrobacias, devendo estar sempre com uma base no solo, seja a mão ou o pé, é um jogo que não pode parar, se você cair já sobe na negativa11 e dá continuidade no jogo. Nesse jogo, se você estiver gingando e parar, você está saído fora da tradição, é um jogo de técnica, de pergunta e resposta.
• São Bento Grande da Angola: é diferente da Regional por ser um jogo livre. O capoeirista faz salto, realiza o parafuso, faz salto mortal etc. São Bento Grande de Angola tem a função de ser livre. É dito que o capoeirista corta o vento, então, esse é o São Bento Grande de Angola.
11 Usado para negar o ataque do adversário, servindo como esquiva ou como início de um novo ataque.
8. Conclusão
Ao ouvir suas respostas, algo dentro de mim começa a mudar, estava diante de um amigo de muitos anos e que ao buscar visitar suas memórias, através de uma entrevista, deparo-me com uma trajetória extraordinária que eu desconhecia. Pereira me possibilitou viajar no tempo através de seus relatos, minha mente visualizava os acontecimentos como em um filme. Aquele amigo, que chamo de irmão e por ele também sou chamado, passa a ser nesse momento uma fonte viva de memórias de uma luta por muitos desconhecida.
Mestre Pereira diz, e com razão, que nosso tempo de entrevista é muito pouco para falar sobre esses benefícios e sobretudo o que a capoeira trouxe para nosso país através dos negros. A influência dessa cultura é constante e a vemos todos os dias na nossa vida, mas infelizmente muitos ainda não a enxergam. Pereira diz que estamos aqui para demonstrar isso, mostrar para as pessoas que existe algo importante que precisa ser lembrado sempre, todos os dias, para assim podermos fortalecer e marcar a história do nosso povo, para que não seja ainda mais apagada no futuro.
Produzir esse trabalho possibilitou com que eu revisitasse também minhas memórias, fazendo-me entender a importância de preservá-las, e uma das formas de fazermos isso é buscando ouvir e entender o impacto que os acontecimentos se dão de formas diferentes em cada indivíduo.