Vivência na Aldeia Guarani (Amanda Gabrielli, Leticia Kling, Lucas Maia, Sofia Grunewald e Vittoria Silveira)
1. INTRODUÇÃO - por Sofia B. Grunewald Candido
O Brasil conta atualmente com 462 terras demarcadas que sofrem constantemente pressões externas, tanto pelo poder público, como de proprietários rurais, incorporadoras imobiliárias que querem explorar comercialmente as terras, especuladores financeiros e até moradores locais, que visam somente o lucro sem a preocupação e o respeito pelas aldeias que ali encontraram seu lugar para viver, desde muito antes da formação dos próprios municípios e divisões territoriais. A aldeia Guarani do Ribeirão Silveira, com área demarcada de 948,4 hectares - decretada dia 8 de julho de 1987 - ocupa territorialmente o Bioma da Mata Atlântica nos municípios de São Sebastião, Bertioga e Salesópolis, no Estado de São Paulo. Nela estão presentes as etnias Guarani Mbyá e Guarani Nhandeva, com população aproximada de 500 pessoas, dentre as mais de 300 etnias indígenas presentes no país. Nesta aldeia ocorreram alguns dos problemas citados acima, principalmente o da especulação imobiliária crescendo na área. Os condomínios estavam praticamente começando a invadir seus territórios, foi até proposto uma grande quantia de dinheiro por uma determinada área, como foi relatado pelo Cacique. Não bastassem esses problemas, em 2010 foi negada ampliação ao aumento da terra já demarcada. Esta pressão constante faz com que os líderes tenham que tomar a difícil decisão de muitas vezes, abandonar as áreas mais afastadas das cidades e se mudarem para locais mais próximos, para facilitar o contato com as prefeituras e com a população local. Essa mudança traz muitos problemas para as aldeias, a perda de sua cultura é um dos exemplos mais presentes - a língua original é uma das primeiras que sofre com essa mudança - porém a aldeia do Rio Silveiras impressiona nesse quesito: eles conseguiram manter a língua tradicional e também implantar o português. Um dos principais motivos pelos quais outras lideranças Guarani os procuram é para aprender como manter as características culturais mesmo recebendo a influência do Juruá (o não indígena). Com essa vivência foi possível perceber a intensa relação que esse povo tem com a terra e a natureza, vivendo assim em uma sociedade sustentável, que ficou evidente quando pudemos conhecer o núcleo inicial da aldeia. Aquela paisagem foi de espantar. E com isso fica claro como nós temos responsabilidade não só pelo que aconteceu mas também pelo futuro desses povos e da natureza; como precisamos nutrir nossas esperanças e lutar ao lado dessa gente para que o futuro seja um bom lugar, justo e com a natureza viva, pois o que temos hoje só está aqui graças a eles.
2. DIÁRIOS DE CAMPO E OUTRAS OBSERVAÇÕES
a) 07 de Junho: Chegada e Primeiras Impressões - por Amanda G. Costa e Silva
Chegamos à aldeia pelo fim da tarde de sexta-feira. Logo que desci do ônibus fui recepcionada pelo chão de terra enlameado e pelo arrependimento de não ter arranjado uma galocha para a viagem. Pela época do ano, já era possível prever que a luz do dia não duraria no céu por muito mais tempo, então - apesar do incômodo que surgia a cada passo dado fundo no barro - corremos para montar as barracas antes que a escuridão dificultasse todo o processo. Alguns acampamentos se formaram no descampado em frente ao portal de entrada da aldeia; outros, entre as palmeiras e árvores baixas que circundavam a área comum do local. Eu saí de São Paulo sem nutrir maiores expectativas, justamente para que, quando chegasse, não passasse por nenhum grande susto. Entretanto, eu já pressentia que não seria uma noite fácil. Já estava escuro quando fomos informados de que a comida estava pronta e, pode parecer bobagem, mas a mistura de arroz com feijão e macarrão (ligeiramente frios) não se encontra no meu cardápio habitual - imagine você que essas são as minhas primeiras impressões. Para a minha imensa felicidade, esse foi um caso isolado durante as minhas refeições. Comemos o mais rápido possível, a maioria em pé na área em frente à cozinha simples, já que estávamos atrasados para as atividades na casa de reza. Já era possível ouvir o violão e alguns cantos vindos de lá. Guardamos nossos pratos e canecas e nos juntamos no gramado para que entrássemos todos de uma vez. A casa de reza era bastante ampla e, nessa primeira noite, a luz estava ligada, mas a visão, entretanto, não era nítida graças à fumaça espessa gerada pelas brasas da fogueira acesa ao fundo. Os olhos ardiam, a garganta e os pulmões sentiam o ar quente e seco do ambiente. Nos acomodamos, mulheres para um lado e homens para o outro, todos às margens da casa de reza, deixando o meio relativamente livre. As paredes de madeira eram cobertas por mantas no canto em que ficavam as crianças; o chão de terra batida era constantemente molhado pelo pigarro de homens e mulheres que fumavam cachimbo - tragavam e sopravam a fumaça em direção aos itens que compunham o “altar”; faziam-no com calma e por toda a sua extensão, numa espécie de cumprimento ou reconhecimento, como se saudassem seus antepassados por meio de tal ação. O altar era composto por muitos objetos: fotos antigas, chocalhos, vários colares feitos de sementes, cocares de antigos pajés e outros inúmeros artigos que não fui capaz de distinguir pela distância. Não tive a coragem de me aproximar tanto, fiquei com o receio de parecer intrometida. Da mesma forma que não tive a coragem para perguntar como um violino tinha chegado até lá. Mas é certo que nada estava ali por acaso. Enquanto eu observava, o pajé conduzia a cerimônia. Falava em guarani, pausadamente, e os outros afirmavam suas palavras: anhete! Eu, que estava sentada no chão, ao fundo e próxima das crianças, reparava no quão agitada estavam naquela noite e me surpreendi com a atitude dos adultos - ou melhor, com a falta de atitude de todos eles. Elas brincavam, falavam alto e corriam de um lado para o outro. Fiquei imaginando que, como qualquer outra criança da nossa cultura juruá, nenhuma delas tinha muita noção do que estava acontecendo naquele momento. Eram muito novos para fazer qualquer reflexão mais profunda sobre o que significava tal reunião, muito jovens para pensar em seus ancestrais e entender a grandeza de Nhanderu. Estavam ali apenas sendo crianças e nenhum adulto presente lhe tolheria tal direito. Não pude deixar de pensar no quão felizes e livres devem se sentir as crianças guarani. Aliás, não só as crianças, mas todos que vivem na aldeia (já que eu não entendia nada do que era dito durante a reza, tive bastante tempo para pensar). Eu olhava para o rosto dos indígenas que me cercavam, procurando por qualquer expressão que me indicasse seu estado de espírito, e me perguntava quais poderiam ser as suas aflições. Com certeza a luta para manter e expandir o território guarani é uma preocupação geral, mas isso em nada se relaciona com a cultura e com o modo de viver que por centenas de anos foi cultivado por esse povo. O que quero dizer é que os problemas que eles carregam pela demarcação de terras é culpa nossa, não deles. E então, se não fosse esse o empecilho maior, quais seriam suas aflições? Eu via gratidão, via paz, via plenitude. É uma vida simples, mas completa em muitos sentidos. Nunca saberemos ao certo o que dá sentido às nossas vidas, mas os guaranis parecem tê-lo. A reza vai chegando ao fim. Nos levantamos, dançamos e ouvimos extasiados o canto forte das índias guarani. Então todos formam uma fila e juntos seguimos para receber a “benção” do pajé. Saímos aos poucos da casa, alguns param um pouco para admirar as estrelas que não vemos aqui em São Paulo. Mal dá pra acreditar que é o mesmo céu daqui. A noite estava bastante fria, então o tipa quentinho que depois foi servido na cozinha era muito bem-vindo. As crianças ainda estavam acordadas, brincando perto da fogueira, e logo um grupo se formou para aprender a brincadeira com elas. A criança guarani que nos ensinou tudo estava claramente tímida, mas cantou a brincadeira para nós e nos divertimos bastante. Mas como eu disse antes, não seria uma noite tão fácil. As coisas já se acalmavam na aldeia, alguns estudantes se juntavam perto da fogueira para conversar e cantar, mas eu estava ansiosa para dormir. Fui buscar minha nécessaire e, junto com uma amiga, fomos em busca de uma pia para escovar os dentes - eu, inocente, esperava tomar um banho ainda na sexta-feira, mas isso não aconteceu. Fiquei sabendo de um banheiro nos fundos da aldeia, mas já estava escuro e eu não sabia muito bem por onde andar. Os outros chuveiros (frios) estavam um pouco mais longe, então não me atrevi de caminhar pelo barro e, novamente, no escuro até lá. Me restava o banheiro perto de onde estavam estacionados os ônibus e foi a visão dele que me fez desistir do banho naquele dia: o chão de cimento estava imundo, as paredes cheias de lodo, o vaso sanitário sem assento ou tampa e igualmente sujo, roupas molhadas penduradas na janela contribuindo com a sensação de umidade do ambiente. Foi o banheiro das minhas primeiras impressões e não existem palavras para descrever o meu pânico por achar que todos os outros seguiriam o mesmo padrão. Me contentei em escovar os dentes, mas devo admitir que fui dormir meio chateada e com o peso na consciência de não ter tomado banho e lavado meu cabelo naquele dia. Voltei para a barraca sozinha. Vesti meu pijama e tudo que imaginei serem suficientes para passar a noite - isso inclui uma calça extra, uma meia grossa, um moletom e uma touca. Não foi suficiente. Passei bastante frio na minha primeira noite na aldeia e, como se não bastasse a temperatura, minha falta de costume com a vida ao ar livre não me permitiu prever o orvalho da madrugada, que deixou a barraca úmida e ainda mais fria. Naquela noite, fui dormir ansiosa pela inconsciência do sono e, na manhã seguinte, acordei desejando não estar onde estava. Hoje, depois de toda a experiência, tenho vontade de voltar.
b) 08 de Junho: Reunião com o Cacique e Conversa na Praia - por Letícia Proença Kling
O segundo dia começou cedo, com o sol aliviando o frio que nos assolou de noite, poucos de nós estavam preparados para a queda na temperatura. Tão cedo tomamos o café e nos aprontamos, já fomos chamados a comparecer na casa de reza para uma conversa com o Marinho, integrante da aldeia que respondeu algumas de nossas questões sobre a cultura e crenças da tribo, alguns dos pontos mais interessantes da conversa foram: a apropriação cultural, como é tênue a linha entre uma homenagem aos indígenas e uma apropriação desrespeitosa que não dá o devido valor ao que é sagrado para eles (muito dessa mentalidade se deve também ao etnocentrismo); como os animais e as plantas também têm espírito; quando ocorre casamento entre alguém da aldeia e um juruá o indígena tem que abandonar a aldeia; desde criança os indígenas aprendem o português e o guarani; os índios podem se deslocar entre as aldeias de sua etnia e sempre serão bem vindos nelas. Ficou muito claro para nós que preservar a cultura é essencial para eles, isso significa a preservação da etnia e da aldeia, e consequentemente da área de preservação em que eles vivem, muito da sobrevivência da mata depende da sobrevivência dessas aldeias, também notamos que eles aceitam visita de juruás na aldeia justamente para mostrar esse trabalho que eles têm com a natureza e suas tradições antiquíssimas Depois que a discussão terminou e saímos da casa de reza os monitores propuseram algumas brincadeiras onde nos integramos entre nós e entre as crianças da aldeia, que sempre foram receptivas conosco apesar de ficarem tímidas às vezes. Foi um momento muito divertido, o tempo passava e todos nós sentíamos que estávamos ficando mais próximos, até pelas atividades serem muito colaborativas e nossas chances de vencermos serem maiores se nos mantivéssemos juntos. Almoçamos e fomos direto para a praia, durante nossa passagem por lá ficamos sem contato com os residentes da tribo, que tinham participado de uma maratona de corrida pela manhã. Antes de sairmos da praia nos reunimos na areia e outra roda de conversa aconteceu, dessa vez foi discutida a demarcação do território indígena, a maneira como as terras habitadas por alí perderam espaço para o comércio e empresas que se instalaram nas redondezas, o que consequentemente atraiu residentes e uma crescente demanda por infraestrutura na cidade A especulação imobiliária aparece nesse processo e a aldeia vive uma constante batalha judicial para não perder seu território. Chegamos da praia e fomos para a casa de reza. A reza foi diferente da primeira noite pois dessa vez já conhecíamos o pajé e outras autoridades da aldeia, e agora um de nossos colegas se manifestou durante a cerimônia, ele falou da gratidão de estar ali recuperando sua vontade de lutar pelo o que acha certo, contra a injustiça, e por tentar mudar o mundo, tornando a vida melhor para alguém. A reza desse dia foi muito emocionante, ter a chance de refletir sobre o nosso modo de vida, como vivemos com tanta pressa e com tanta ansiedade que raramente paramos um momento para refletir o que está nos fazendo bem, onde encontramos felicidade verdadeira, e como é importante se sentir humano, estar em contato com a natureza, e como coisas que parecem tão triviais quando moramos numa cidade grande, na verdade são as coisas mais importantes. Depois da janta desse dia fomos chamados para fazer pão, mas muito mais que um momento onde pudemos ajudar a preparar um alimento para ser consumido no dia seguinte, foi um tempo onde nós do curso de Têxtil e Moda ficamos juntos, focados em conseguir preparar o pão mas também nos divertindo, cantamos, competimos para ver quem faria o melhor pão e acabamos até dando nome para eles. Essa foi a última atividade do dia, uma das barracas de nossos amigos era muito grande, então vários de nós nos juntamos lá antes de irmos cada um para suas barracas dormir, como o frio da madrugada já era esperado colocamos mais roupas dessa vez e até dormimos abraçados para nos esquentarmos mais, o que acabou dando certo.
c) 09 de Junho: Trilha, Rio Silveiras e Partida - por Vittoria Silveira Azevedo e Silva
No terceiro dia, a temperatura da noite anterior e o cheiro de fumaça em nossos cabelos já haviam deixado de ser um problema. Por volta das 6 horas nos chamaram para colocar nossos pães para assar, porém o cansaço e o calor formado dentro da barraca não nos permitiram levantar esse horário. As 8 foi quando o dia começou, tomamos o café da manhã o mais rápido possível e nos trocamos para seguirmos para a trilha, o sol apareceu cedo e sentimos que iria fazer muito calor. Na saída do núcleo, formamos grupos de revezamento para carregar as mudas que seriam plantadas numa área no meio da trilha. A trilha foi um momento onde tive um dos maiores contatos com a natureza da minha vida, o ar puro, a diversidade da mata e seus sons traziam uma paz de espírito para qualquer um que passasse por ali. As conversas com as pessoas das outras salas se tornavam cada vez mais naturais e fluiam naturalmente, é incrível como passamos 4 meses na mesma sala sem trocar uma palavra sequer com as pessoas fora do nosso círculo. Em certo momento, pensamos que passaríamos por dentro do rio, tiramos nossos tênis e entramos em contato direto com o solo - e foi uma das melhores decisões. Mesmo sabendo que não iríamos passar pelo rio, um indígena que nos acompanhava não disse nada, nos permitindo sentir aquele momento. Ao chegarmos no local onde o Pajé cresceu em sua infância, fizemos uma roda em volta da paineira que ele se lembrava estar lá desde que ele saiu, não era possível ver ruínas e o único vestígio de que alguém já havia passado ali eram alguns cacos de vidro que encontramos. Ouvimos aquele homem forte nos contar com brilho nos olhos sobre as diferenças daquela época com o hoje, como ele quer que os jovens resgatem elementos da cultura daquele tempo, a importância de pajés “verdadeiros” como seu avô fazem na comunidade e como a re-ocupação daquele local pode lhe ajudar a fazer mudanças e retomar certos costumes do passado, descobrimos como os indígenas tupi foram sumindo e se fundindo com os guarani. Antes de plantarmos as árvores, uma das integrantes do projeto AUPI nos explicou o motivo de cada planta estar ali e como deveríamos plantá-las. Escolhemos a nossa plantinha que carregamos durante a trilha, e carinhosamente apelidamos de Bentinha em homenagem ao pão feito no dia anterior. Foi um momento de conexão muito forte entre nós e energia de ocuparmos uma área que já havia sido tão importante na vida de antepassados do Pajé. Após esse momento, voltamos para a trilha em direção à cachoeira, para acessar o local, foi necessário andar por uma parte do rio com pedras que causavam uma dor relativa nos nossos pés, após atravessarmos essa parte, ainda haviam mais obstáculos da natureza para chegarmos em nosso destino. As dificuldades para acessar alí fizeram com que o final valesse mais a pena, mesmo quem nem pensava em entrar na cachoeira deu uma chance a água gelada após tantos obstáculos para chegar ali. A água fria sob a pele quente, os sons da natureza, a preservação e o respeito de tudo que estava ali, a sensação era mais do que uma limpeza externa, estávamos em sintonia com o coração daquele lugar - o Rio Silveiras. Na volta, passar pelas pedras já era tranquilo, as pedrinhas do rio sob o solado dos nossos pés nem doíam mais, o desespero do primeiro dia de sujarmos nossos tênis de lama já nem eram mais uma preocupação- nossos pés estavam em contato direto com o chão. A volta foi mais tranquila que a vida. Os pequenos detalhes daquele dia mostravam uma mudança de postura em apenas três dias em contato com aquela gente “simples”, que na verdade tinham muito mais a nos ensinar do que nós sequer poderíamos ensinar a eles, na hora do almoço sentamos no chão, sem se preocupar com sujeira, possíveis formigas ou qualquer outra preocupação rasa que teríamos em um dia em São Paulo. Na hora de desmontar as barracas e arrumarmos nossas coisas, o sentimento que nos possuía não era exatamente tristeza, mas sim uma vontade de retornar ali em algum momento, não havia uma vontade de voltar para nosso cotidiano, ainda que fosse necessário. Dar adeus aquele lugar, no fundo, carregava um sentimento de retorno. Dentro do ônibus, eu só conseguia pensar em tudo que havia mudado naqueles dias ali, por ter ascendência indígena, tudo que eu vivi ali me lembrava muito da minha bisavó e seu jeito tão calmo como os que conheci na aldeia, eu sentia que todos naquele ônibus tinham sentido alguma diferença tanto em suas vidas individuais como no grupo em si, como dito anteriormente, a união com as pessoas que compartilhavam essa aula conosco e que até então só possuímos as aulas de terça em comum, a união de nossa sala, mudaram nossa atmosfera na universidade, além das experiências individuais que acho que seriam impossíveis de serem transcritas em palavras, nenhum texto pode expressar as sensações de estarem ali.
3. CONCLUSÃO - por Lucas Maia Gonçalves
Depois da base teórica de Sociedade, Multiculturalismo e Direitos Humanos no decorrer do semestre, passar três dias na Aldeia Rio Silveiras nos possibilitou experienciar estruturas sociais pautadas em pensamentos que divergem do pensamento do Ocidente eurocentrado. A educação básica brasileira, em sua maioria, é fundamentada no etnocentrismo carregado de superioridade em relação aos povos originários para legitimar o genocídio em curso há 519 anos. O genocídio, segundo POWER(ANO), implica no ataque a todos os aspectos de uma determinada sociedade: biológicos, físicos, políticos, sociais, culturais, econômicos e religiosos. Para Meneses (1999), o relativismo cultural é pautado na ciência e tem como pressuposto a ideia de que cada elemento de uma determinada cultura só faz sentido enquanto parte daquela cultura e, também, que uma cultura não é superior à outra, apenas diferentes. Discutir a questão do etnocentrismo e do relativismo cultural e da importância da relação de alteridade em sala nos fez chegar de peitos abertos na aldeia. Essa discussão prévia nos permitiu deixar que a experiência na aldeia sob o método da observação participante na prática nos levasse embora os resquícios de nossa educação etnocentrista e introduzisse uma relação de alteridade pautado no relativismo cultural. No primeiro dia, sofremos um choque cultural em todos os níveis e fomos nos adaptando à medida que o tempo e a vivência foram passando. Viventes de uma sociedade capitalista, percebemos que a sociedade guarani vive se fundamenta numa lógica que não tem o capital como base. Diferente do juruá que enxerga qualquer ser ou coisa como instrumento para satisfazer seus desejos, o guarani se enxerga como parte do meio que ele vive. Em suma, o guarani convive no ambiente com responsabilidade. Ele extrai da natureza os materiais que necessita para o sustento da aldeia sem pensar no acúmulo material. E por pensar o trabalho de forma diferente do juruá, ele difere também o tempo. O tempo guarani não é o tempo do relógio, mas o tempo social. Não há a correria que o tempo do trabalho impôs na sociedade pós revolução industrial. Com isso, eles tendem a viver o presente em equilíbrio. Sem excessos de passado ou de futuro, ou depressão e ansiedade, cada vez mais comuns no mundo juruá. A casa de reza é onde os guaranis fazem a reza todos os dias às 18h30 e é lá que entram em contato com Nhãnderu, o deus que tudo provê, com o mundo espiritual e, por consequência, com seus ancestrais. Logo, a religião está estritamente ligada a todos as esferas da vida social guarani porque Nhãnderu é, digamos, a mãe-natureza. Outro ponto divergente é a tradição oral. Se os juruás guardam suas memórias por meio da escrita, os guaranis as guardam em histórias contadas. E essa relação com língua difere desde as referências de memórias como, por exemplo, uma paineira no caso guarani e um livro no caso juruá, quanto nos nomes próprios que os guaranis precisam ter dois para colocar o nome em português no RG. Em suma, podemos observar que a visita à aldeia nos permitiu não só saber sobre a vida do outro, mas vivenciar a vida dele de modo que conseguimos compreender a forma que ele enxerga o mundo abrindo novas formas de nós mesmos construir nossos caminhos repensando alguns aspectos da nossa cultura juruá.
BIBLIOGRAFIA
https://terrasindigenas.org.br/en/terras-indigenas/3678
http://www.funai.gov.br/index.php/terras