Curso básico de Literatura Brasileira/Carta de Pero Vaz de Caminha

Fonte: Wikiversidade
Caminha lê a Carta a Pedro Álvares Cabral. Pintura por Francisco Aurélio de Figueiredo, de 1900.
Assinatura de Pero Vaz de Caminha (1450-1500)

Neste tópico, vamos conhecer um pouco da Carta escrita por Pero Vaz de Caminha, no ano de 1500, e que é considerada o marco inicial de nossa literatura.

Vamos ver que ela tinha por objetivo comunicar ao rei de Portugal, D. Manuel I, o que Pedro Álvares Cabral e sua frota haviam encontrado. Além disso, veremos também como um documento do distante século XVI já apresenta características que definiriam a sociedade brasileira em toda a sua história!

Literatura de viagem e literatura de informação[editar | editar código-fonte]

Imagem do livro do alemão Hans Staden, em que apresenta uma cena do ritual de Antropofagia dos índio Tupinambás brasileiros. Esse tipo de imagem causava grande impacto nos leitores.

As viagens empreendidas na chamada Expansão Marítima do século XVI deram impulso à produção de um grande volume de textos que relatavam essas viagens e descreviam o que os viajantes encontravam nas terras que alcançavam. A América foi objeto de muitos desses textos, nos quais eram descritos sua natureza e os contatos com os povos nativos. Essas obras fazem parte de um gênero de escritos chamado “Literatura de viagens” e foi muito popular na época: um livro como Verdadeira História de uma terra de selvagens canibais chamada Brasil, de 1557, escrito pelo alemão Hans Staden (1525-1576), que passou cerca de nove meses em uma aldeia dos indígenas Tupinambás como prisioneiro, foi um sucesso estrondoso (se fosse nos dias de hoje, seria considerado um verdadeiro best-seller). Outro relato muito interessante é o Naufrágios, do espanhol Álvar Nuñez Cabeza de Vaca (1488-1560), que, após naufragar e ver seu grupo de exploradores dizimado pelos indígenas (de 600 espanhóis, apenas Cabeza de Vaca e mais quatro teriam sobrevivido) vagou por cerca de oito anos no território entre o que hoje são os estados da Flórida e do Texas, nos Estados Unidos. O próprio nome “América” é derivado do nome de Américo Vespúcio (1454-1512), italiano autor do livro Mundo Novo, em que descreve sua viagem até o novo continente.

Rota feita por Marco Polo, partindo de Veneza, na Itália, passando pelo Oriente Médio e chegando à China, voltando pela Índia.

A literatura de viagem não era uma novidade. Já na Idade Média alguns textos foram muito famosos como o Livro das Maravilhas, do também italiano Marco Polo (1254-1324), em que narrava sua ida ao Oriente, chegando à China, e voltando para a Itália. Mas, no século XVI, esses relatos de viagem forneciam ao Velho Mundo imagens e informações sobre o que estava acontecendo no outro lado do oceano e, com a propagação da imprensa (a partir dos inventos de Johannes Gutenberg, em 1439), caíram no gosto popular, trazendo notícias que causavam grande curiosidade.


Boa parte desses textos são também conhecidos como “literatura de informação”. Muitos dos primeiros textos escritos sobre o Brasil e no Brasil têm características descritivas e intenção informativa e foram produzidos não só por portugueses, mas por franceses (como o História de uma viagem feita ao Brasil, de 1578, de autoria de Jean de Léry) e espanhóis (como o Relación del nuevo descubrimiento del famoso río Grande, por Gaspar de Carvajal, de 1542, que narra a viagem da primeira expedição que percorreu todo o rio Amazonas, em uma viagem de dois anos e meio). Lembremo-nos de que diversas eram as nações europeias que buscavam fixar-se no território americano, “rivalizando” não só pela posse do território, mas também na produção de escritos sobre o Brasil, uma vez que, para apossar-se da terra era preciso conhecê-la.

Pero Vaz de Caminha e sua Carta fazem parte desse conjunto de textos: ela pode ser vista como literatura de viagem e também como literatura informativa.

Quando se diz que esses escritos visavam informar, deve-se ter em vista que seu objetivo não era tão simplesmente “saciar a curiosidade” dos europeus sobre as terras americanas, embora essa fosse uma dimensão importante. Esses textos informativos foram importantes para criar um conhecimento que embasaria os projetos de colonização. Como dito mais acima, era preciso conhecer a natureza para saber quais eram as riquezas que dela se poderia tirar; era preciso conhecer os povos nativos, para justificar a necessidade da catequese (agindo para acabar com seus costumes “bárbaros” e “selvagens”), para traçar estratégias para combatê-los (conhecendo, por exemplo, suas táticas bélicas e armas) e para estabelecer alianças políticas (ao conhecer como eles se organizavam, quais as relações entre as diferentes nações, os europeus manobravam dentro da política interna indígena). Logo, a “descrição” e a “informação” que esses textos faziam estavam voltados para a efetivação do controle das terras americanas pelas potências europeias.

Uma outra forma de se referir aos textos escritos no Brasil no decorrer dos anos de 1500 a 1599 é “Quinhentismo”, em referência ao intervalo dos anos do século XVI. O termo "quinhentismo" não designa um movimento literário ou cultural, mas o que se produziu entre os anos de 1500 e 1599.

Quem foi Pero Vaz de Caminha?[editar | editar código-fonte]

Pouco se sabe sobre a biografia de Pero Vaz de Caminha. Segundo informações da Biblioteca Nacional de Portugal[1], é provável que tenha nascido na cidade do Porto. Desempenhou funções na cidade, como "mestre do balanço das moedas". Em 1500, embarca como escrivão-mor da esquadra sob comando de Pedro Álvares Cabral. Sabe-se que morreu em 1500, ainda enquanto membro da esquadra de Cabral, quando este retomou o percurso para a Índia, após a chegada ao Brasil. Chegando em Calicute, na Índia, houve uma grande batalha, e Pero Vaz nela foi morto.

Por que estudar a Carta de Caminha?[editar | editar código-fonte]

Essa é uma pergunta a se fazer, já que a carta não é um texto que identificamos como "literário". Sua produção não tem preocupação artística e tem por objetivo descrever a D. Manuel I, rei de Portugal à época, o que o grupo de portugueses havia encontrado. Então, por que estudá-la em literatura brasileira?

Alguns autores defendem que o texto de Caminha tem “qualidades literárias”, apesar de o autor não ter tido essa intenção. Caminha seria uma "escritor nato"... Essa é uma resposta bastante vaga, porque se baseia naquilo que o crítico enxerga como “qualidade literária” (e podemos argumentar que “literário” não é algo que existe em si mesmo, como uma “essência” dos textos literários; “literário” é o que uma época define como “literário”, e isso varia de tempos para tempos...).

Uma outra resposta, que é mais objetiva, diz o seguinte: “[...] não é só como testemunhos do tempo que valem tais documentos: também como sugestões temáticas e formais. Em mais de um momento a inteligência brasileira, reagindo contra processos agudos de europeização, procurou nas raízes da terra e dos nativos imagens para se afirmar em face do estrangeiro: então, os cronistas voltaram a ser lidos [...]”[2]. Em outros termos: os relatos de viagem e, em especial, a Carta de Pero Vaz, são retomados como uma fonte de imagens e temas sobre o Brasil “original”, revisitados sempre que ocorrem movimentos de afirmação da identidade nacional – veremos isso de mais perto quando tratarmos do Romantismo e do Modernismo brasileiros.

Mas as sugestões da Carta também influenciarão a sociedade brasileira como um todo, de modo que ela pode ser vista como o esboço de um grande projeto a ser implantado no Brasil em sua história: um projeto econômico, social e cultural. Da vocação agroexportadora à imagem internacional da mulher brasileira como naturalmente bonita e sensual, a Carta já esboça elementos que irão constituir nossa sociedade.

Vale dizer que a Carta de Caminha não é o único documento que registra a chegada da esquadra de Cabral às terras brasileiras. Outros membros da tripulação também redigiram relatos. São exemplos o Relato do Piloto Anônimo, o Diário de Navegação de Pero Lopes de Sousa e o Relato de Mestre João, de João Faras. São textos escritos por outros tripulantes que também testemunharam a chegada da esquadra de Cabral ao Brasil.

A Carta: carnaval, sem-vergonhice, catequese e nenhum ouro...[editar | editar código-fonte]

Monte Pascoal, na Bahia, visto do mar. Primeira vista que os portugueses tiveram do Brasil.


"Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! A saber, primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz!”

Agora que já sabemos algumas coisas sobre a carta de Pero Vaz de Caminha a El-Rei D. Manuel I sobre o achamento da Terra de Santa Cruz, vamos ver mais de perto seu texto.

Nele, são dois elementos que Caminha procura sempre ter em vista: as possibilidades de riqueza da terra (em especial ouro, prata ou pedras preciosas) e os indígenas (em especial, as índias jovens...). Então, para abordarmos esse texto, vamos dividi-lo em algumas sessões.

O país do carnaval[editar | editar código-fonte]

Algo muito curioso na Carta diz respeito sobre os primeiros encontros entre os portugueses de Cabral e os indígenas: Caminha narra a grande hospitalidade com que os nativos os receberam, com direito a trocas de presentes e festa na praia! No primeiro contato, o marinheiro Diogo Dias e um grupo pequeno não desembarca na praia, mas chega perto o suficiente para trocar presentes com um grupo indígena que observava na margem. No segundo, dois nativos são levados para dentro do navio de Cabral e "interrogados" se haveria ouro ou prata na região (veremos essa cena daqui a pouco). No terceiro encontro, quando os portugueses enfim desembarcam na praia, ocorre uma das cenas mais famosas da Carta, que é a festa:


"E além do rio andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante os outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então para a outra banda do rio Diogo Dias, que fora almoxarife de Sacavém, o qual é homem gracioso e de prazer. E levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se a dançar com eles, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem fez ali muitas voltas ligeiras, andando no chão, e salto real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo os segurou e afagou muito, tomavam logo uma esquiveza como de animais montezes, e foram-se para cima."

"Davi" (1501-1504), do artista renascentista Michelangelo Buonarroti (1475-1564).

Diogo Dias e um outro marinheiro, que tocava a gaita ou uma pequena sanfona, dançam com os indígenas e Diogo Dias chega a fazer o "salto real", que é um tipo de salto mortal. Essa cena ficou famosa por vários motivos: ela mostra o que poderia ter sido o contato entre europeus e indígenas, uma festa de povos diferentes, que se celebram em suas diferenças. Esse "sonho" fica mais intenso quando olhamos para o que acontece depois e se pode ver que o que ocorreu foi justamente o oposto...

Ela reforçou também em muito aspectos uma ideia de Brasil que se vai construindo na Carta e em outro documentos: o do paraíso na terra, habitados por pessoas simples e inocentes, tal como era na época do Éden. A isso chamamos de "visão edênica": muitos serão os textos que pintarão essa imagem do Brasil como um novo Jardim do Éden (e ainda hoje é muito forte o discurso do Brasil como "paradisíaco", terra sem males em que tudo se resolve bem...).

Mas há também um detalhe importante nessa passagem: a "esquiveza" dos nativos. Por mais que festejem, chega um momento em que eles se retiram e não aceitam a companhia dos portugueses, que, inclusive tentam ir a uma aldeia, mas são expulsos. Isso contradiz a imagem passiva dos indígenas, que teriam apenas "recebido de braços abertos" os europeus. A Carta mostra que os nativos eram hospitaleiros, mas não eram bobos...

De vergonhas e sem-vergonhices[editar | editar código-fonte]

Famosa também é a insistência com que Pero Vaz de Caminha observa o corpo e a nudez dos indígenas. Ele descreve com bastante precisão os adornos que eram usados: perfurações nos lábios e nas orelhas; as penas; os colares e pulseiras; as pinturas corporais, o que nos permite ver algo da cultura indígena naquela época, como um registro. Esse é um valor documental da Carta. Mas Caminha repetidamente afirma sobre a beleza dos corpos masculinos e femininos indígenas, deixando que percebamos que foi realmente um impacto para ele, que ficou deslumbrado com os corpos fortes dos homens e curvilíneos das mulheres nativas. A nudez, em especial, chama muito sua atenção.

Gravura de um homem Tupinambá, presente na obra História de uma viagem feita no Brasil, do francês Jean de Léry, de 1578. As semelhanças com a obra renascentista são notáveis.

Os historiadores da literatura veem neste olhar de Caminha, que se admira com a nudez indígena, um dado sociocultural importante: a tensão entre a moral cristã medieval e o antropocentrismo renascentista (compare, por exemplo, as imagens do "Davi", escultura do italiano Michelangelo, com a figura do Tupinambá, que aparece em livro de Jean de Léry). Para o professor Massaud Moisés: “[...] homem de formação medieval, impregnado de superstições e preconceitos morais de base religiosa, é natural [que Caminha] se encantasse com o à vontade indígena, puro e amoral. [...] denota o fascínio do homem medievo em trânsito para o mundo moderno, renascentista, livre e humanizado, evoluindo do teocentrismo para o antropocentrismo”[3]. A nudez do corpo, sobre a qual há fortes tabus na moral cristã, é explicitada na América, e isso fascina Caminha, que não condena o indígena como "imoral", mas, antes, o elogia como belo e inocente - como deveriam ser Adão e Eva no paraíso original. Eis um trecho da Carta:


“Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim pelos corpos como pelas pernas, que, certo, assim pareciam bem. Também andavam entre eles quatro ou cinco mulheres, novas, que assim nuas, não pareciam mal. Entre elas andava uma, com uma coxa, do joelho até o quadril e a nádega, toda tingida daquela tintura preta; e todo o resto da sua cor natural. Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas, e com tanta inocência assim descobertas, que não havia nisso desvergonha nenhuma."


Aos olhos de Pero Vaz, os nativos são galantes e, pintados de preto e vermelho, "quartejados" (ou seja, com uma pintura quadriculada sobre o corpo), "pareciam bem". Vale notar que, se o olhar de Caminha para o corpo do homem é "genérico", observando basicamente a pintura, quando vai ao corpo das mulheres, novas, a atenção redobra: analisa as partes do corpo - coxa, joelho quadril e nádega - e as "vergonhas", as partes íntimas, descobertas e "nuas", ou seja, depiladas (tanto homens quanto mulheres indígenas raspavam os pelos do corpo). Outro trecho muito famoso é o seguinte:


"Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha."


Ao lado do "registro" do corpo e dos ornamentos indígenas, coexiste então um dado do próprio tempo de Caminha: a passagem entre Idade Média e Renascimento. Mas também, existe um imaginário que a Carta deixa de legado à sociedade brasileira: a objetificação do corpo feminino, visto como uma “beleza” que é, principalmente, jovem, física e sexualizada... Aqui nasce o mito da mulher brasileira sensual, de corpo escultural e “sem vergonha” de mostrar-se e dar-se ao estrangeiro...

A catequese[editar | editar código-fonte]

Se, no que toca à visão dos corpos nus, Caminha apresenta uma tensão entre a moral cristã e a visão renascentista, no que toca ao projeto de catequizar o indígena não há nenhuma dúvida. Fervorosamente cristão, defende que é preciso convertê-los ao catolicismo. Na Carta, há o constante “zelo missionário de uma cristandade medieval”[4], que se aproxima do espírito de Cruzada. Aqui também é preciso retomar alguns elementos do contexto histórico da época de Caminha, quando o catolicismo se viu confrontado, de um lado, por movimentos de questionamento que culminariam nas Reformas Protestantes do século XVI, e, de outro, pelo mundo islâmico que dominava o Oriente e contra o qual a Igreja Católica, desde o século XI, lançava ataques com as famosas Cruzadas.

Ao chegar ao Brasil, uma das preocupações principais de Caminha é apontar a necessidade e possibilidade de conversão do indígena à religião católica:

"Primeira missa no Brasil" (1859-1861), obra de Victor Meirelles.


“Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências. E portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa tenção [intenção] de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade. E imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons. E o Ele nos para aqui trazer creio que não foi sem causa. E portanto Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação deles. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim!”

Essa “certeza” no sucesso da catequese se baseia em um trecho do texto no qual Caminha narra a realização da primeira missa no Brasil, em que um grupo de indígenas participa, imitando os gestos e movimentos dos portugueses. Caminha entende esse momento como uma propensão "natural" dos nativos a quererem aprender a religião católica, o que era reforçado pelo entendimento preconceituoso de que os indígenas não tinham nenhum tipo de religião (já que os portugueses não viam nenhum templo ou igreja...).   Historicamente, essa “crença” levou à dizimação da cultura indígena, que precisava ser destruída para que fossem impostos novos valores e crenças, por meio da educação religiosa (como veremos em mais detalhes quando tratarmos da obra literária de São José de Anchieta). Atualmente, esse movimento continua, com a presença de igrejas e templos (em especial os neopentecostais) que se instalam em aldeias e buscam converter indígenas às crenças cristãs, não raro demonizando as suas crenças espirituais. Essa dinâmica de violência cultural é muito bem retratada no documentário Ex-Pajé, de 2018. Há também o manifesto “Mais pajés, menos intolerância!”, lançado também em 2018 por lideranças indígenas para denunciar a invasão de suas terras por igrejas. Eis um trecho do manifesto:


Alguns leem na Bíblia a mensagem para invadir o mundo inteiro para forçadamente pregar o evangelho para todas as criaturas, entendendo que quem não se converter irá arder no inferno que essa própria religião inventou. Essa corrida colonial provoca ainda hoje, talvez como nunca antes, uma disputa por almas que esconde poder, dinheiro, controle de territórios, mercados de almas [5](Trecho do manifesto "Mais Pajés, menos intolerância!").

Onde está o ouro?[editar | editar código-fonte]

Lembremos que a frota de Cabral tinha como objetivo identificar possíveis fontes de riqueza para a Coroa de Portugal, e isto está muito presente na Carta, durante a qual se narra que muitas vezes os portugueses tentam questionar os indígenas sobre a existência de ouro ou prata na região. Caminha deixa perceber que há uma frustração para os europeus, pois os nativos não usavam nenhum adorno nem utensílio de ouro ou prata - nem colares, nem brincos, nem pulseiras (diferentemente dos indígenas com quem os espanhóis haviam se deparado no Peru). Entendemos melhor a importância do ouro e da prata para os portugueses ao nos lembrarmos do Mercantilismo do século XVI e como esses metais eram fundamentais para a construção da riqueza e do poder dos Estados.

Um dia após a chegada, os portugueses levam dois nativos a bordo. Lá tentam perguntar se há ouro, prata ou pedras preciosas na terra:


“[...] um deles fitou o colar do Capitão, e começou a fazer acenos com a mão em direção à terra, e depois para o colar, como se quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. E também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá também houvesse prata!”


Neste trecho há um desejo intenso por ouro e prata, que faz com que os portugueses entendam o que querem entender! Há uma vontade de acreditar que ali há metais preciosos, o que está ligado a uma "transparente ideologia mercantilista"[6], como diz o professor Alfredo Bosi.

Imagem de uma mina de ferro na região dos Carajás, feita por satélites.

Pedras e metais preciosos serão encontrados no Brasil a partir do século XVI, dando origem ao chamado "ciclo do ouro" que terá nas Minas Gerais seu centro econômico. Mas sabemos que, até hoje, a atividade mineradora é uma das bases da economia brasileira, não com ouro e prata, mas com ferro, alumínio e outro metais usados na indústria. O olhar de Caminha, que procurou no Brasil um fornecedor de metais para Portugal, acabou se concretizando, já que o Brasil é um dos maiores exportadores de minério de ferro do mundo...

O Brasil do futuro![editar | editar código-fonte]

"Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d'agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!

Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que não houvesse mais do que ter Vossa Alteza aqui esta pousada para essa navegação de Calicute bastava. Quanto mais, disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa fé!

 E desta maneira dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta Vossa terra vi. E se a um pouco alonguei, Ela me perdoe. Porque o desejo que tinha de Vos tudo dizer, mo fez pôr assim pelo miúdo”.


Este trecho encerra a Carta de Caminha e, lido com os olhos no presente, se mostra quase profético! Nele, quase todas as imagens que são usadas para definir o Brasil estão presentes:

  1. Grande exportador de minérios (como o ferro);
  2. Grande exportador de produtos agrícolas (como a soja);
  3. A exploração do potencial hidroenergético;
  4. O país "terrivelmente cristão" (que embora se diga laico, tem sérios problemas em desenvolver debates ou ações que "contradigam" a moral cristã);

E, retomando um tópico anterior, completaríamos o quadro com:

5. O estatuto da mulher brasileira como "sensual" e de fácil acesso ao estrangeiro.

A Carta: "certidão de nascimento", definição do nosso futuro?[editar | editar código-fonte]

Como vimos, a Carta de Caminha guarda muitas relações com os acontecimentos e com a cultura do século XVI: os impactos causados pelas Grandes Navegações e as imagens de terras e povos até então desconhecidos dos europeus, levando a uma "febre" por informações, suprida pela literatura de viagem e pela literatura de informação. Esses textos visavam não só a curiosidade das pessoas, mas munir os governantes com dados sobre a terra e sobre os nativos, a fim de pensarem estratégias de exploração colonial, no contexto do mercantilismo e fortalecimento dos Estados nacionais.

A Carta apresenta ainda uma visão sobre a cultura europeia do período: a passagem entre Idade Média e o Renascimento, a tensão da Igreja Católica, que procurava aumentar seu espaço de influência e poder, já que vinha sendo confrontada pelos muçulmanos do oriente e por movimentos de contestação que logo estourariam na forma das Reformas Protestantes.

Além disso, através do olhar de Caminha (apesar de ser um olhar atravessado de preconceito) temos ainda um vislumbre dos povos nativos de nosso país naquele momento - como viviam, seus costumes, os ornamentos que usavam. Essa imagem da beleza dos indígenas e de seu caráter festivo, cordial, será essencial para os movimentos de afirmação nacionalista do século XIX (o romantismo e o contexto da independência) e do século XX (o modernismo e a reafirmação da "originalidade" do Brasil).

Também, a Carta nos mostra muito da cultura que seria implantada no Brasil - de maneira muito eficaz, diga-se de passagem! Cultura da mineração, cultura da agroexportação, cultura do etnocídio dos povos nativos, cultura da objetificação e sexualização da mulher.

Desse modo, vemos como a Carta é um documento extremamente rico para conhecermos e pensarmos sobre a história e cultura do nosso país!

O texto de Caminha no Enem[editar | editar código-fonte]

Em 2013, o Enem trouxe uma questão sobre a Carta de Pero Vaz de Caminha. A questão era a seguinte:

De ponta a ponta, é tudo praia-palma, muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa. Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares [...]. Porém o melhor fruto que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente.

Carta de Pero Vaz de Caminha. In: MARQUES, A.; BERUTTI, F.; FARIA, R. História moderna através de textos. São Paulo: Contexto, 2001.

A carta de Pero Vaz de Caminha permite entender o projeto colonizador para a nova terra. Nesse trecho, o relato enfatiza o seguinte objetivo:

a. Valorizar a catequese a ser realizada sobre os povos nativos.

b. Descrever a cultura local para enaltecer a prosperidade portuguesa.

c. Transmitir o conhecimento dos indígenas sobre o potencial econômico existente.

d. Realçar a pobreza dos habitantes nativos para demarcar a superioridade europeia.

e. Criticar o modo de vida dos povos autóctones para evidenciar a ausência de trabalho.


Trata-se de uma questão que demanda atenção na leitura do trecho apresentado, sendo necessário interpretá-lo e ativar alguns conhecimentos sobre a Carta, especificamente sobre a articulação, nela, dos projetos de catequização e de exploração econômica, termos que aparecem nas alternativas. O comando pede para identificar a alternativa que confirma a intenção ou o sentido do trecho. Vamos primeiro ler com atenção o trecho, para depois olharmos as alternativas, certo?


Bom, o trecho basicamente descreve a terra: "De ponta a ponta, é tudo praia-palma...", "Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande...", "Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata...", "[...] a terra em si é de muito bons ares". Em seguida, emite uma ideia sobre o que seria uma ação importante a ser empreendida: "[...] o melhor fruto que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente". Vemos, então, que o trecho traz uma descrição breve da terra e a sugestão de "salvar" as gentes que nela habitam (e lembrando-nos que "salvar", aqui, tem o sentido religioso). Vamos às alternativas, para identificarmos qual delas está de acordo com o trecho:


A alternativa a. diz que o trecho enfatiza a catequese a ser realizada sobre os indígenas. Parece ser isso mesmo, já que se diz muito claramente que "o melhor será salvar esta gente".

A alternativa b. diz que o trecho descreve a cultura local, sendo ela comparada com a portuguesa, para enaltecer esta última. Vimos que há uma descrição, mas é da terra, e não da cultura indígena. Além disso, não há nenhum momento em que se coloca a comparação com a "prosperidade portuguesa". Então, esta alternativa não está de acordo com o sentido do trecho.

A alternativa c. afirma que, no trecho, vemos o "conhecimento dos indígenas" sobre o potencial econômico da terra. Ora, em nenhum momento (e mesmo da Carta como um todo) vemos a fala ou o conhecimento dos indígenas, apenas a visão dos portugueses e de Caminha sobre a terra e seus habitantes. Além disso, veja que Caminha diz que "não pudemos saber que haja ouro, ou prata, nem cousa alguma de metal ou ferro", o que era, na verdade, uma frustração para os planos de acumulação desses metais, tão importantes para os reinos europeus do período... Logo, esta alternativa se desvia do sentido do trecho.

A alternativa d. afirma que há um "realce" da pobreza dos nativos para demarcar a superioridade europeia. Novamente: o trecho não estabelece um comparativo entre nativos e europeus. Também é preciso ter atenção neste ponto: uma vez que o trecho diz que não há indícios de ouro ou prata, o estudante pode ser levado a marcar esta questão, identificando nessa ausência de metais a "pobreza" de que fala a alternativa. Mas o trecho deixa claro que, APESAR dessa ausência, a terra é "muito formosa" e "em si é de muitos bons ares". Por isso, não há a constatação da "pobreza" nem comparação dessa "pobreza" com a "superioridade" europeia.

A última alternativa, e., diz que o trecho critica o modo de vida autóctone, realçando a ausência de trabalho. Em nenhum momento do trecho em questão se diz algo sobre o modo de vida dos nativos ou se fala em "trabalho". A preocupação principal que se evidencia nele é a questão religiosa. Logo, a alternativa e. não se encontra com o sentido do texto.


Portanto, a alternativa correta desta questão é a a., já que o trecho defende que "o melhor fruto" que a Coroa pode cultivar nas terras brasileiras será a salvação dos nativos, o que é uma clara referência ao trabalho de catequese, como é muito claro em vários momentos da Carta de Caminha.


Inclusive, no próximo tópico, veremos, na obra do padre José de Anchieta, como o aspecto da catequese, já indicado por Caminha como importantíssimo para a colonização, começou a ser implantada e como os textos de Anchieta são importantes para pensarmos acerca da construção de nossa identidade e cultura, já sendo atravessada pelo sincretismo e pela mestiçagem desde o século XVI. Até lá!

Ligações externas[editar | editar código-fonte]

Abaixo, alguns texto e vídeos para conhecer melhor a Carta e percorrer algumas discussões que ela apresenta:

Neste link, o texto integral da Carta de Pero Vaz de Caminha, em arquivo preparado pela Biblioteca Nacional (PDF);

Aqui, um breve vídeo em que a historiadora Mary del Priori fala um pouco sobre a Carta (youtube);

Neste outro vídeo, o historiador Eduardo Bueno fala sobre a viagem de Pedro Álvares Cabral (youtube);

Manifesto "Mais Pajés, menos intolerância!", elaborado por lideranças indígenas contra a intolerância religiosa;

Aqui você confere o trailer oficial do documentário Ex-Pajé (2018), que tematiza o conflito religioso em aldeias indígenas e suas consequências culturais.

Referências[editar | editar código-fonte]

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 6a. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil - introdução geral (vol. 1). 7a. ed. São Paulo: Global, 2007.

MANIFESTO "Mais Pajés, menos intolerância!". 2018. Disponível em: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/liderancas-indigenas-lancam-manifesto-contra-onda-de-intolerancia-religiosa. Acesso em: 18/07/2020.

MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira - Das origens ao romantismo (vol. 1). 9a. ed. São Paulo: Cultrix, 2009.


Notas:

  1. http://purl.pt/162/1/brasil/23_biografia_caminha.html
  2. BOSI, 2006, p. 13
  3. MOISÉS, 2001, p. 30
  4. BOSI, 2006, p. 14
  5. MANIFESTO, 2018.
  6. BOSI, 2006, p. 14.