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Sociologia e Comunicação Cásper/flâneur

Fonte: Wikiversidade
O "flâneur", a cidade e o cotidiano

Ao falarmos da modernidade é impossível não citar Walter Benjamin e seus estudos sobre Charles Baudelaire e Paris. São neles que encontramos suas observações sobre o flâneur – uma figura típica da vida urbana parisiense do século XIX – que vamos tentar resgatar para pensar o mundo contemporâneo.

Na crônica do João do Rio, A rua, o flâneur é um vagabundo, mas um vagabundo que reflete. O cotidiano das ruas da metrópole são seu objeto e os bares e cafés são o seu escritório.

Hoje, com a formação de ambientes urbanos híbridos, em que o espaço físico e o virtual integram-se de um modo cada vez mais complexo, por meio de dispositivos móveis, como podemos pensar essa experiência? Devemos olhar a cidade e o nosso cotidiano como uma rede, ou um conjunto de textos, um mapa, ou, ainda, uma cidade de dados (tão ao gosto da lógica digital)?

O que essas metáforas nos ajudariam a enxergar?


O flâneur / A flâneuse

Mike Featherstone[1] apresenta uma reflexão bem interessante sobre essas questões.

Charles Baudelaire (1821-1867)
Vamos começar lembrando que a palavra flâneur é masculina e que o seu equivalente feminino é flâneuse. Aquilo que o flâneur faz é chamado de flânerie e está relacionado ao seu profundo envolvimento com a observação do cotidiano das metrópoles. Mergulhar na cidade com todos os seus sentidos, adotando uma postura muito simples:
João do Rio (1881-1921)
Walter Benjamin (1892-1940)

“Tornar o estranho familiar e o familiar estranho”.

Além disso, como já observou João do Rio, se todo flâneur é um vagabundo, nem todo vagabundo é um flâneur. Ele é um vagabundo que reflete.

“É vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas. Do alto de uma janela como Paul Adam, admira o caleidoscópio da vida no epítome delirante que é a rua; à porta do café, como Poe no Homem da Multidões, dedica-se ao exercício de adivinhar as profissões, as preocupações e até os crimes dos transeuntes.”

(João do Rio. A alma encantadora das ruas)

Sua prática é uma arte, um ofício exercitado sempre que possível, sem hora marcada, sem duração determinada, sem trajeto pré-definido. Pode parecer fácil, mas perder-se na cidade não é uma tarefa tão fácil quanto parece para quem já a conhece.

Talvez, existam diversas formas de flânerie, mas a que destacamos aqui está diretamente relacionada ao trabalho de crônistas, poetas, fotógrafos, compositores populares, romancistas entre outros. E, por que não, publicitários, jornalistas, profissionais do audiovisual e relações públicas.

A flânerie não está relacionada apenas ao caminhar sem rumo e sem pressa pela cidade, mas em observá-la, em registrar e classificar o que se vê, fazer associações, buscar intertextualidades em seu cotidiano.

É preciso ser uma espécie de “botânico do asfalto”.

Dito isto, por que não pensar essas experiências nos tempos em que vivemos, um tempo de formação de espaços híbridos, em que o espaço físico e o virtual integram-se de um modo cada vez mais complexo.

Por que não passamos a olhar a cidade e o nosso cotidiano como uma rede, ou um conjunto de textos, um mapa, ou, ainda, uma cidade de dados (tão ao gosto da lógica digital). O que essas metáforas nos ajudam a enxergar?



Diversas faces da cidade moderna e da flânerie

A cidade é, então, uma fonte de alegorias… uma confusão de mercadorias e fragmentos da cultura de consumo…

A aceleração, o aumento da velocidade que caracteriza a vida na metrópole, associada à experiência constante do choque na multidão que toma conta das ruas, geram um tipo de hiperestímulo que lança o homem e a mulher moderna em um turbilhão de novas sensações e riscos. Trata-se da vida vertiginosa da cidade, nas palavras de João do Rio – grande cronista carioca do século XIX-XX.

Mobilidade, hiperestímulo e choque são as palavras-chave.

Essa sobrecarga é acompanhada, por outro lado, por novas experiências de distração como as revistas e o cinema. A reação dos homens e mulheres modernas é caracterizada pelo que o sociólogo Georg Simmel chamou de “atitude blasé”, as pessoas na metrópole vivem em uma espécie de autodefesa, tornando-se relativamente indiferentes ao turbilhão de estímulos que acontece ao seu redor.

Em meio a este cenário, surge o personagem que queremos estudar em nossa aula – o flâneur.

Há uma grande discussão a respeito da associação da flânerie a uma prática tipicamente masculina.

Na maioria das vezes, as flâneuses[2] foram associadas às experiências de espaços como as galerias (os centros de compras da metrópole) e atividades de caridade e auxílio aos mais pobres.

As Galerias, as Passagens, as Arcadas eram espaços totalmente novos de consumo e traziam experiências e estímulos muito particulares.

Para as mulheres, existiam alguns espaços muito restritos para a flânerie: lojas de departamentos, casas de chá, restaurantes, hotéis, museus, galerias, exposições e. com grandes restrições, os espaços literários. O jornal "The Guardian" fez uma reportagem especial sobre "female flâneurs"

O problema desses espaços é que muitos deles estavam vinculados, justamente, ao mundo do consumo. Por um certo preconceito, foram durante muito tempo desprezados pelos pesquisadores. Tratava-se de um mundo de mercadorias que crescia à volta dos habitantes das cidades – bombardeados pelos primeiros "anúncios" .

Ao lado dessa flânerie pela cidade, novas experiências sensoriais são trazidas pelo cinema, pela fotografia, pela publicidade, que cresce vertiginosamente.

ATIVIDADE I
João do Rio - O flâneur, o cotidiano e a cidade

A Rua ( João do Rio) -Trechos Link da obra: A Alma Encantadora das Ruas

"Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua. É este mesmo o sentimento imperturbável e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas. Tudo se transforma, tudo varia — o amor, o ódio, o egoísmo. Hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia, Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua...


Abri o primeiro, abri o segundo, abri dez, vinte enciclopédias, manuseei in-folios especiais de curiosidade. A rua era para eles apenas um alinhado de fachadas por onde se anda nas povoações. Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma!...


Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes — a arte de flanar...


Flanar! Aí está um verbo universal sem entrada nos dicionários, que não pertence a nenhuma língua! Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça...


É vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas. Do alto de uma janela como Paul Adam, admira o caleidoscópio da vida no epítome delirante que é a rua; à porta do café, como Poe no Homem da Multidões, dedica-se ao exercício de adivinhar as profissões, as preocupações e até os crimes dos transeuntes...


O flâneur é ingênuo quase sempre. Pára diante dos rolos, é o eterno “convidado do sereno” de todos os bailes, quer saber a história dos boleiros, admira-se simplesmente, e conhecendo cada rua, cada beco, cada viela, sabendo-lhe um pedaço da história, como se sabe a história dos amigos (quase sempre mal), acaba com a vaga idéia de que todo o espetáculo da cidade foi feito especialmente para seu gozo próprio...


[Sobre as ruas] Algumas dão para malandras, outras para austeras; umas são pretensiosas, outras riem aos transeuntes e o destino as conduz como conduz o homem, misteriosamente, fazendo-as nascer sob uma boa estrela ou sob um signo mau, dando-lhes glórias e sofrimentos, matando-as ao cabo de um certo tempo. Oh! sim, as ruas têm alma! Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem história, ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas, spleenéticas , snobs, ruas aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes, que ficam sem pinga de sangue...


Se as ruas são entes vivos, as ruas pensam, têm idéias, filosofia e religião. Há ruas inteiramente católicas, ruas protestantes, ruas livres-pensadoras e até ruas sem religião...


Nas grandes cidades a rua passa a criar o seu tipo, a plasmar o moral dos seus habitantes, a inocular-lhes misteriosamente gostos, costumes, hábitos, modos, opiniões políticas. Vós todos deveis ter ouvido ou dito aquela frase: — Como estas meninas cheiram a Cidade Nova! Não é só a Cidade Nova, sejam louvados os deuses! Há meninas que cheiram a Botafogo, a Haddock Lobo, a Vila Isabel, como há velhas em idênticas condições, como há homens também. A rua fatalmente cria o seu tipo urbano como a estrada criou o tipo social...


As ruas são tão humanas, vivem tanto e formam de tal maneira os seus habitantes, que há até ruas em conflito com outras. Os malandros e os garotos de uma olham para os de outra como para inimigos. Mas, a quem não fará sonhar a rua? A sua influência é fatal na palheta dos pintores, na alma dos poetas, no cérebro das multidões. Quem criou o reclamo? A rua! Quem inventou a caricatura! A rua! Onde a expansão de todos os sentimentos da cidade? Na rua!


Referências

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

ELOY, S. (2017) A cidade e a experiência do digital. In André, P. (edit) Antologia de ensaios, VI Ciclo de Conferências LISBOA XXI, ISCTE-IUL, Lisboa, pp 206-216.

JACQUES, Paola Berenstein. Errâncias Urbanas - a arte de andar pela cidade. Arquitexto, 7, 2005

JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos Errantes. Salvador: EdUFBA, 2012

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

  • BALBI, Thiago Machado Balbi, FERRARA, Lucrécia D’Alessio Ferrara. Por uma teoria psicogeográfica da comunicação. Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 41, p. 14-34, jan./abr. 2018
  • BASTOS, Marco Toledo de Assis. Flâneur, Blasé, Zapeur: variações sobre o tema do indivíduo. Revista e-Compós s/data
  • ELKIN, lAUREN. Flâneuse: mulheres que caminham pela cidade em Paris, Nova York, Tóquio, Veneza e Londres. São Paulo: Fósforo, 2022
  • FEATHERSTONE, Mike. O “flâneur”, a cidade e a vida pública virtual. In: ARANTES, Antonio A. (org.). O Espaço da Diferença. Campinas/SP: Papirus, 2000.
  • PEREC, Georges. Aproximações do quê? Alea, Rio de Janeiro , v. 12, n. 1, p. 177-180, June 2010
  • ______________.Vida: Modo de Usar. São Paulo São Paulo: Companhia das Letras, 2009 (capítulo 1: Escadarias)
  • PINO, Claudia Amigo. O espaço modo de usar: Georges Perec Lettres française, n.7, 2006
  • PONTUAL, Virgínia, LEITE, Julieta. Da cidade real à cidade digital: a flânerie como uma experiência espacial na metrópole do século XIX e no ciberespaço do século XXI. Famecos, v.13, n.30, 2006

ROCHA, Roseani Vieira. A Figura do Flâneur no Entendimento da Prática Jornalística sob a luz de João do Rio, um caso brasileiro. Revista Anagrama: Revista Científica Interdisciplinar da Graduação Ano 4 - Edição 1 – Setembro-Novembro de 2010


OUTRAS REFERÊNCIAS

TEORIA DA DERIVA E O URBANISMO SITUACIONISTA – Blogue Cidadades Contemporâneas – Posted 02/03/2016

  • A tribute to female flâneurs: the women who reclaimed our city streets – The Guardian, (cities) 29/07/2016
  • Ricardo Luís Silva. Elogio à Inutilidade. O trapeiro e a cidade.

"A sociedade dos sonhadores involuntários" de José Eduardo Agualusa, 2017. No epílogo, o personagem principal, Daniel Benchimol, se descreve como um "flâneur", mais especificamente como um "flâneur bantu"

Flâneuse by Lauren Elkin review – how women walk -This elegant book considers defiant female walkers from Martha Gellhorn and Virginia Woolf to the author, and celebrates the freedom of being on the move -Lara Feigel – The Guardian, Thu 25 Aug 2016

Minha participação na reportagem “Divagar por aí” da Revista “E” do SESC em 30/01/2018

Vídeo “Flanantes” (skate)

UMA CIDADE NÃO É UM COMPUTADOR. Intersaber, 15/05/2017

Artigo de Shannon Mattern, “A City Is Not a Computer”, publicado originalmente no Places Journal, em fevereiro de 2017 (https://placesjournal.org/article/a-city-is-not-a-computer). Mattern é pesquisadora e professora da New School, faculdade de Nova York, e escreve sobre arquitetura, bibliotecas, arquivos e infraestruturas urbanas de comunicação.

9 rolês nas quebradas de SP para você aproveitar seu bairro – 29/06/2018 – 17:45Atualizado: 02/07/2018 – 13:30 – Por: Agência Mural de Jornalismo das Periferias

Caderno de Domingo – Jornal do Brasil, 2003 Caminhar, atitude anticapitalista - Carlos Madrid. Outras Palavras, 24/11/2020

Win Wenders – Entrevista

Canal Motoboy

ROLEZINHO: TERRITÓRIOS E TERRITORIALIDADES EM CIBERCULTURAS – Eliane Costa e Jorge Luiz Barbosa* – Z Cultural

Sonia Luyten. A cidade e os mangás

João do Rio: um novo personagem na indústria cultural - Cremilda Medina

The Mobile Story: Narrative Practices with Locative Technologies - Jason Farman

Forget the flâneur - C McGarrigle

Following the flâneur : a methodological and textual critique - Kevin Milburn

Imagining the flâneur as a woman - Elfriede Dreyer and Estelle McDowall

Flâneurs of Fashion 2.0 - Jess Berry

Beyond the Flâneur: Walking, Passage and Crossing in London and Paris in the Nineteenth Century - Estelle Murail

A Rua como plataforma - Blog City of Sound

Wikipedia: Wiki Game Players (one or more) start on the same randomly selected article and must navigate to another pre-selected article (home) only clicking links within the current article. The goal is to arrive at the home article in the fewest number of clicks (articles) or the least time)

Bertold Brecht. O escrivinhador de peças

Mapeamento Afetivo: como transformar o espaço público em uma comunidade - Educação & Território, 10 DE NOVEMBRO DE 2016

FILME

Christopher Nolan – “Following”


MÚSICAS

Dívidas – Paulinho da Viola

Profissão Perigo - Rodrigo Ogi

Dias de Santos e Silvas – Gonzaguinha

Ladeira da Memória – Grupo RUMO

Na Zona Sul– Sabotage

Endereço dos Bailes – Mc Júnior e Mc Leonardo

Modão de Pinheiros – O Terno

Museu Humano – Débora Setera (1 JOA- Casper)

Passeio - Belchior Fotografia 3X4 - Belchior

São Paulo: não há saídas! – Itamar Assumpção

Santa Sampa – Vespas Mandarinas

Flanerie musical – Every Noise at Once/Repórtagem Nexo

Le Flaneur : In Walter Benjamin Shadow (Based on and inspired by the work of Walter Benjamin, this Danish documentary by Torben jensen is as much about the thinker as it is about Paris. A beautiful, poetic interlacing of both Benjamin's and Jensen's visions, produced by the Danish Film Instiute, with English Subtitles)


Referências

  1. FEATHERSTONE, Mike. O flâneur, a cidade e a vida pública virtual. In: ARANTES, Antonio A. (org.). O Espaço da Diferença. Campinas/SP: Papirus, 2000
  2. Lauren Elken. A tribute to female flâneurs: the women who reclaimed our city streets - The Guardian, 29/06/2016