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Wikinativa/Barbara Dalmaso (vivencia Guarani 2018 - relato de experiência)

Fonte: Wikiversidade

VIVÊNCIA PICO DO JARAGUÁ, ALDEIAS TENONDÉ PORÃ E YVY PORÃ (18/08 – 19/08).

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           Chegamos na Aldeia sábado de manhã. Era um dia de sol e o clima estava um pouco seco. Com o grupo de alunos reunido, caminhamos por diferentes locais da Aldeia, onde pudemos conhecer o Centro de Educação e Cultura Indígena (CECI) Jaraguá. Neste momento o nosso contato com os indígenas se iniciava, uma vez que algumas crianças nos observavam com curiosidade e outras até caminhavam ao nosso lado. Conforme conhecíamos a Reserva, me sentia cada vez mais surpresa ao observar a situação vulnerável na qual os indígenas estavam vivendo. A maior parte das casas era feita de chapas de madeira com saneamento básico precário. Todas as discussões e rodas de conversa que já havia tido, dentro e fora da disciplina, sobre a negligência dos povos indígenas materializou-se na minha frente. Os 518 anos de violação dos JURUÁ-KUERY (não indígenas) ainda pulsava em cada centímetro daquela terra e daquele povo.

Minha sensação de espanto se cessou quando o monitor da disciplina, Carlos Henrique Ferreira, nos conduziu até OPY, a casa de reza. Era a primeira vez que eu entrava em uma casa de reza indígena e, neste exato momento, fui tomada de muita emoção. Era uma casa de barro de tamanho médio, porém muito ampla por dentro. Em uma das extremidades havia um altar, com instrumentos musicais pendurados na parede, enquanto as laterais possuíam bancos para que as pessoas pudessem se sentar. Foi intuitivo observar as características do local e sentir a forte presença ancestral da cultura Guarani e a toda força de sua resistência em cada detalhe daquele ambiente. Acho que essa sensação foi uma das mais bonitas que já senti em vida.

Ao finalizarmos nossa visita aos diferentes núcleos, fomos para um local da reserva mais afastado dos demais. Este local possuía algumas casinhas de barro e bastante mata nativa. Armamos nossas barracas e logo iniciamos os trabalhos: ajudaríamos a construir uma nova (e muito maior) casa de reza para este núcleo. A estrutura de madeira da casa já estava pronta e iríamos realizar o acabamento das paredes com barro. Nós, do grupo de alunos em parceria com os indígenas, passamos o resto do dia engajados em finalizar a nova casa de reza. Me impressionei com a forma alegre e despreocupada com que realizamos esta função. Como Pierre Clastres diz em seu livro A Sociedade Contra o Estado (1974) “a ocupação [dos indígenas] não é encarada como trabalho, mas como prazer[1]”. Foi uma tarde em clima de festa, nossa relação com os indígenas foi agradável e descontraída.

Visita no café

Ao fim do dia, celebramos o término da construção com a inauguração da casa de reza. A cerimônia se iniciou com o pôr-do-sol e a fumaça da fogueira invadindo o ambiente por dentro. Os indígenas acendiam seu cachimbo e falavam algumas palavras em Guarani. Dançamos e cantamos em uma língua que eu não conhecia, e todos nos entregamos ao momento com muita intensidade. Conforme algumas pessoas tomavam a frente para realizar um discurso, normalmente com teor crítico social e político, meus olhos se enchiam de lágrimas. Este dia chorei muito. Chorei pela dor que os indígenas sentem, chorei pelo massacre e perseguição deste povo e chorei pelo simples fato de estar vivendo aquele momento.

Encerrando a cerimônia, fomos jantar, ainda em clima de celebração. Todos conversavam entre si, compartilhando histórias e festejando o momento. Conforme a noite passava, voltamos às barracas para dormir. Não parecia que estávamos a poucos metros de uma avenida movimentada. Tive a sensação de imersão na natureza e com isso dormi profundamente com o som do vento batendo nas árvores. Foi uma noite tranquila e cheia de paz.

Ao despertar no dia seguinte, tomamos café - em companhia de alguns macaquinhos – onde pude experimentar o xipá, uma comida tradicional. Ao término da alimentação, desarmamos a barraca e pegamos caminho de volta para casa, com um sentimento de intensa reflexão que me acompanha até hoje.

VIVÊNCIA ALDEIA RIO SILVEIRAS (11/10 – 14/10)

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           Chegamos na Reserva Indígena do Rio Silveiras por volta das 19h. Me responsabilizei de levar no carro as mudas que iríamos plantar na Aldeia, então não estava com o grupo. Ao olhar no mapa o tamanho da Reserva, logo percebi que seria uma experiência diferente da anterior. Neste dia estava chovendo muito e o caminho encontrava-se alagado. Senti medo de atolar o carro e não conseguir chegar no Núcleo onde ficaríamos alojados. Já estava escuro e a mata intensa dificultava que pudéssemos encontrar o local. Quando finalmente chegamos ao Núcleo da Porteira, percebemos que todos já estavam presentes e a reza já havia iniciado. Entramos silenciosamente na OPY e o professor Jorge estava fazendo um discurso de boas-vindas. Apesar da forte chuva, era possível observar que havia um grande entusiasmo pela nossa chegada, tanto por parte dos indígenas quanto do grupo de alunos.

Após algumas palavras, o Pajé comunicou que por conta do tempo não conseguiríamos montar acampamento, convidando-nos a dormir na OPY. A chuva ainda forte lá fora, cada pessoa do grupo arrumou seus pertences para que pudéssemos descansar. Em uma pequena casinha do lado de fora, algumas mulheres faziam o jantar. Comemos e voltamos para a OPY para descansar. Todo o grupo reunido em uma imensa casa de reza, animados com a vivência que estava apenas começando.

           No dia seguinte acordamos cedo. Alguns locais da Aldeia estavam alagados por conta da chuva intensa e tivemos que procurar alguma área com menos água para montarmos nossa barraca. Escolhemos um local ao lado de uma casinha de madeira, próxima aos banheiros comunitários. Não demorou para que duas crianças surgissem, um menino de aproximadamente 3 anos e uma garotinha de 6. Seus nomes eram Nayá e Lionel. Chegaram trazendo consigo um cacho de bananas, que nos ofereceram. Foi nítido perceber a diferença do sentimento de partilha que Lionel e Nayá tinham em relação às crianças JURUÁ-KUERY.

           Quando todo o grupo terminou de montar acampamento e tomar café, fizemos uma trilha para um Rio dentro da mata. O caminho ainda estava bastante alagado. Dois meninos indígenas nos conduziram pelo caminho, de chinelo pela lama, com passadas leves. Foi intrigante para mim, com minhas penas sujas até o joelho, observar a maneira como os indígenas flutuam ao caminhar. Ao chegarmos no Rio, pudemos nadar com os peixes e lavar nossa alma em suas águas cristalinas.

Ao voltarmos para o Núcleo da Porteira, iniciamos os preparativos para a plantação das mudas. Quando o grupo verificou o local destinado para a realização de nosso projeto, percebemos que a área estava completamente alagada e imprópria para plantação. Felizmente isso não impediu a execução do projeto de outros grupos. Assim, passamos o restante do dia brincando com as crianças e festejando o momento. O clima estava descontraído, com a intensa atividade e interação das crianças com os alunos da disciplina.

           Ao pôr-do-sol, nos reunimos na OPY para o momento da reza. A cerimônia foi bastante semelhante ao que presenciamos na Aldeia do Jaraguá. A OPY possuía a mesma arquitetura das demais e novamente dançamos e cantamos para celebrar NHANDERÚ, envoltos pela fumaça da fogueira e cachimbos. O momento mais intenso da vivência se iniciou com o discurso das lideranças indígenas ali presentes. Estávamos inseridos em um contexto histórico de eleições presidenciais, assim, ocorreram profundas discussões sobre o futuro indígena no país. Histórias de resistência foram compartilhadas, provocando um efeito de forte união entre todos os guerreiros ali presentes. Apesar de sentir um clima tenso que nos assolava, pude perceber que não estava sozinha.

           No terceiro dia fez sol. Acordei com Nayá e Lionel pulando na barraca e trazendo cachos de bananas. Me senti absurdamente acolhida por aquelas crianças. Brincamos um pouco e em seguida fomos integrar com o restante do grupo. Todos se preparavam para a trilha em direção ao rio que nomeia a Reserva e um dos locais mais sagrados para seus habitantes. O Rio Silveiras é bastante amplo e limpo, com muitas pedras e peixes, envolvidos por uma água cristalina. Estar em um ambiente tão sagrado me trouxe paz. Passamos algumas horas no local e todos pareciam sentir intensamente a força da natureza. Algumas pessoas do grupo experimentaram o Rapé, uma medicina tradicional indígena.

           Na trilha de volta para o Núcleo, o céu escureceu. Neste momento encontramos o Cacique da Reserva, onde paramos para conversar. Ele nos contou algumas histórias sobre a Aldeia e problemas que os indígenas vêm enfrentando. O Cacique tinha uma postura de autoridade. Ainda que muito simpático e receptivo, era possível notar sua presença forte e dominante.

           Assim que terminamos a conversa com o Cacique, voltou a chover. Ficamos um pouco entristecidos de saber que não conseguiríamos realizar o projeto de criação da estufa. Com isso, participei de atividades propostas por outros grupos, onde ficamos assistindo filme na OPY até tarde.

           No último dia levantamos cedo e encaramos mais chuva. Desmontamos o acampamento e fomos para a casa de reza. Havia um grupo de pessoas lá dentro. Ficamos algumas horas refletindo sobre a vivência, onde percebi que apesar da chuva me sentia em paz, eu sabia que estávamos sendo protegidos por NHANDERÚ. Após o almoço fomos para casa, deixando para trás um povo que conseguiu modificar de maneira delicada (e intensa) minha forma de enxergar a vida. HÁ’EVETE.

           Minha experiência na disciplina ACH3787 foi enriquecedora. As vivências com os indígenas me fizeram questionar o sistema de valores no qual estamos inseridos. Nos últimos meses pude aprender a importância da generosidade, partilha e troca verbal de experiências e de saber ouvir.  No decorrer das vivências, me aproximei de crianças e adultos de coração nobre. Compartilhamos uma relação de valores humanos que vão além de vivências físicas. Compreendi na pele o significado de ser NHANDEREKO (modo tradicional Guarani). Me considero atéia, mas ouvir as histórias de força e fé em NHANDERÚ me fizeram sentir que existe uma energia da natureza que atua sobre nós, e acredito que essa força tenha sido responsável pelo acaso de eu ter descoberto a disciplina.

É muito triste que a sociedade negligencie a cultura dos ameríndios e estimule o fortalecimento dos interesses econômicos do Estado e iniciativa privada na perseguição e interferência da demarcação de terras indígenas. Esse contexto catastrófico estimula o genocídio indígena e os insere em um contexto socioeconômico e cultural ameaçados.  Com isso, acredito que seja importante estimular a análise crítica dos impactos do etnocentrismo e relativismo cultural dentro de uma sociedade, para a promoção da preservação da identidade cultural e histórica dos povos indígenas, uma inquestionável riqueza da humanidade (e em especial do Brasil).          

  1. CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o estado. São Paulo: Cosac Naify, 2013.