Wikinativa/Beatriz Cari (vivencia Guarani 2016 - relato de experiência)

Fonte: Wikiversidade

A disciplina ACH3707 - Seminários de Políticas Públicas Setoriais 2 - Multiculturalismo e Direitos ("SMD 2") possui como objetivo “aprofundar os ensinamentos e conteúdos oferecidos na disciplina SMD, através da aquisição prática de conhecimentos adquiridos através de uma imersão na cultura do povo originário Guarani”, disciplina ministrada pelo Professor Jorge Machado na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo.

Para tanto, foram realizadas aulas preparatórias com conceitos básicos de aspectos sociais dos povos indígenas, assim como seus problemas e contradições que são de extrema complexidade, o modelo de aula se deu pelos princípios construtivistas onde os alunos levavam suas percepções e questionamentos primários a serem discutidos com os companheiros de sala, por intermédio do professor. Nestas aulas, ainda se prepararam a viagem, dividindo a sala em grupos responsáveis por diversas atividade a serem realizadas juntamente com a comunidade indígena. Meu grupo ficou responsável pelas brincadeiras voltadas ao público infantil, buscando preparar brincadeiras tradicionais como rouba bandeira, pula-corda, guerra de bexigas, petecas e algumas mais recreativas com pinturas.

A viagem à Reserva indígena Guarani Rio Silveiras, em Bertioga, ocorreu nos dias 28, 29, 30 e 31 de outubro de 2016, em que foi realizada uma imersão, onde pudemos ter contato com a cultura, tradições e visões de mundo da comunidade. No primeiro dia, chegamos a aldeia ainda um pouco tímidos, montamos o acampamento, tivemos uma roda de conversa com o líder político da comunidade e o pajé que apresentaram a aldeia, explicaram os procedimentos de nossa visita e nos deram as boas-vindas.

Em seguida, meu grupo realizou as brincadeiras com as crianças, começamos com o “pula-corda”, que teve boa aderência por parte delas que são muito ativas e enérgicas. Na seguida, montou-se outros grupos com novas brincadeiras, que realizaram uma pequena partida de futebol e pinturas infantis nas crianças. Contudo, a brincadeira com a corda permaneceu por toda a tarde pelo forte interesse por parte delas. Neste primeiro contato com as crianças percebemos forte carinho vindo delas que sempre buscavam atenção, também a falta de competitividade em algumas brincadeiras propostas, a impressão que me deu era que elas não se importavam muito com quem iria ganhar, talvez pelo forte sentimento de comunidade.

Algumas percepções interessantes notadas, foram que as crianças que brincaram possuíam entre 7 e 10 anos em sua grande maioria, que preferiam brincadeira mais enérgicas como corda, bola e correr. As crianças menores prefiram atividades com pinturas e desenhos. Nestas atividades percebemos que as crianças possuíam certa dificuldade de acatar regras, gostavam muito de atividade física com brincadeiras mais agitadas. O interessante é que foi um processo duplo onde apesar de termos planejado diversas atividades fomos adaptando, segundo suas demandas.

Outra observação interessante foi que essas crianças eram realmente crianças com brincadeiras tradicionais, ou “brincadeiras antigas”, bem diferentes das novas brincadeiras com mais tecnologias das crianças da cidade, percebendo assim a manutenção cultural. Em relação aos adolescentes percebemos que de uma forma geral eles não enturmaram conosco visitantes, exceto o Lenilson que possuía 17 anos e estava recebendo treinamento para se tornar Cacique, isto é, líder político da comunidade. Além dele ser aquele que mais se relacionou com o grupo, nós percebemos nele um forte discurso articulado principalmente em relação aos direitos dos indígenas.

Em seguida, foi servido o almoço no formato tradicional, arroz, feijão e linguiça, e os alunos foram levados a tomar banho de rio. Na volta todos nos encontramos na casa de reza que teve uma apresentação musical seguida de um ritual espiritual e finalizando com uma longa conversa entre o líder político e os alunos, onde fizemos diversas perguntas a respeito do modo de vida da comunidade, os interesses e direitos dos indígenas, os costumes antigos e as mudanças que a modernidade os trouxe, onde pudemos perceber a forte resistência da comunidade que tenta manter seus costumes mesmo com a forte influência das sociedade externa.

De uma maneira geral, como primeiras percepções percebemos que o grupo ao qual nos recebeu meio que estavam voltados para prestar assistência a nossa presença, principalmente as mulheres com a nossa alimentação. De maneira geral, as crianças foram as que estavam mais abertas a se relacionar com o grupo, posteriormente conforme o cacique e o pajé foram se aproximando alguns homens também se aproximaram do grupo e tiveram certo contato. As mulheres se mantinham muito tímidas e atarefadas em seus afazeres como cuidar da casa e cozinhar. Praticamente não tivemos contato com os jovens e os mais idosos.

Segundo, o Lenilson esse processo pode ter ocorrido porque na comunidade existem as atividades particulares do cotidiano de cada um, assim como as atividades comunitárias que são optativas, isto é, o grupo que nos recebeu foram as pessoas que se dispuseram a participar de tal atividade comunitária, por conta disso, a sensação de contato restrito com a comunidade. No final do dia, os guaranis realizaram uma apresentação musical e de dança tradicional de sua cultura antes de irmos dormir. No dia seguinte, realizamos uma trilha pela reserva em que tivemos um maior contato com a natureza, a trilha durou cerca de quatro horas, fizemos uma parada num primeiro rio no caminho e posteriormente entramos numa trilha de mata fechada guiados pelo pajé até um rio de pedras.

Nesta experiência tivemos muito contato com a vegetação natural do local, pudemos notar também a relação dos guaranis com o espaço, principalmente com as crianças que foram nos acompanhando e que nos permitiram um contato maior com elas, notamos uma relação de muita proximidade e respeito com o meio, onde as crianças brincam com muita naturalidade e sem nenhum medo, com o pé no chão, se escondendo entre as árvores, sem medo do contato com a terra, animais e insetos ou até mesmo de se perder.

Inclusive em um momento o pajé falou um pouco a respeito disso, pois o cuidado que eles têm com as árvores e os rios muito se tem a ver com a relação de respeito, pois para eles, se eles respeitam as limitações impostas pelo rio, por exemplo, o rio acaba respeitando suas limitações. No final da trilha voltamos para o acampamento nos alimentamos e fomos novamente a casa de reza onde presenciamos um ritual ainda mais tradicional com uma “oração de libertação” e muita música.

No domingo de manhã acordamos cedo participamos do café da manhã onde pude provar uma iguaria tradicional, o pão indígena, e eu e mais um pequeno grupo deixamos a aldeia mais cedo, por conta do segundo turno das eleições.

Concluindo esta experiência para mim foi muito enriquecedora no sentido de conhecer uma realidade extremamente distinta da minha, o que me levou a um forte choque cultural, pois vivenciar todas as dificuldades que este grupo passa, tentando manter sua cultura em meio ao descaso do Estado, a falta de infraestrutura de saneamento, falta de recursos financeiros e ainda resistindo e buscando conservar seus traços culturais. Deve-se considerar ainda o quão interessante é essa cultura que mesmo a duas horas de uma grande metrópole tenta se manter tradicional, se preservando, o que me fez questionar algumas questões como: até que ponto essa resistência é saudável para aquelas pessoas, que possuem pouco contato com todas as mudanças da sociedade tradicional, tanto do ponto de vista cultural, quanto do tecnológico e também refletir sobre o quão bonito é essa resistência e até quando eles conseguirão se manter?

Sem dúvidas uma experiencia enriquecedora que muito me contribui enquanto futura profissional gestora de políticas públicas, pois tal vivencia permitiu uma sensibilidade ao pensar futuras políticas e também enquanto cidadã, pois me possibilitou uma ampliação nas minhas percepções culturais e de diferentes formas de se viver e enxergar o mundo ao qual estamos inseridos.