Wikinativa/Beatriz Celestino de Brito (vivencia Guarani 2022 - SMD - relato de experiência)

Fonte: Wikiversidade

Nhandereko: a vida sob uma nova perpectiva

A presente pesquisa de campo relatada abaixo é de natureza exploratória e tem como objetivo descrever as impressões da aluna como observadora-participante da vivência ocorrida dos dias 04 a 06 de novembro na Aldeia Rio Silveiras localizada em Bertioga sob a condução de Jorge Machado, professor do Curso de Gestão de Políticas Públicas e ofertante da disciplina de Seminário de Políticas Públicas II voltada para imersão com os povos originários Guarani. Para fins de visualização e descrição, a lógica utilizada será análoga a um diário, contendo detalhamento do local, envolvidos, interações e sentimentos gerados seguindo ordem cronológica.


04/11/2022 - A ida

Estava ansiosa e ao mesmo tempo não tinha criado expectativas de como seria a viagem e vivência. Talvez parte de mim tenha trabalhado que precisamos viver o momento presente, acreditando no bem viver do agora e na possibilidade do futuro por não ser imaginado nos surpreender. A aula passada me fez refletir sobre o modo de vida Nhandereko, e agora pensando, fui internalizando ele dentro de mim. Mesmo sabendo pela manhã por meio do grupo do Whatsapp geral da disciplina que houve a queda da barreira Mogi-Bertioga e isso teria implicações no trajeto até a Aldeia e possível alocação das barracas no local, estava animada. Cheguei na EACH às 14:00 horas, conforme o professor tinha pedido, já que sairíamos às 15:00. Partimos próximo ao horário combinado, o professor fez chamada, avisou novamente quanto a mudança de rota e seguimos viagem.


A chegada

Estava escuro, o caminho para a Aldeia com o passar do tempo foi ficando estreito e barrento. A rua de terra em contato com a chuva produziu poças, que começaram a me preocupar quanto ao estado do espaço da Aldeia e onde colocaríamos as barracas. Preocupação não só ligada ao meu dormir e dos meus amigos, mas a responsabilidade compartilhada do grupo que fiz parte, Infraestrutura, composto por mim, Guilherme e Yure. A Aldeia era composta por 6 núcleos. O que ficamos era o primeiro, maior e chamado de “Porteira”. A iluminação era quase nula, ao adentrar, contamos com a iluminação do ônibus e as nossas lanternas dos celulares, já que as lanternas eletrônicas ou a pilha estavam nas bagagens. Descarregamos as mochilas, malas, barracas e sacos de dormir e começamos a montar as barracas. Tinha um espaço já pensado para as barracas e lá fomos. Eu, Guilherme e Luan, montamos nossa barraca. Depois, eu e Gui, como parte da Infraestrutura, fomos ajudar as outras pessoas nas montagens. Até esse momento, só me lembro de ver Josias, um guerreiro e indígena. Após esse processo, fomos nos ajeitar e ir ao banheiro. Descobrimos dois, ambos equidistantes da Casa de Reza, mas com suas diferenças e preferências. O que fica a Oeste não tinha luz, era uma casinha, com uma pia, vaso, descarga simples, sem papel higiênico, sabonete, toalha e tampa do vaso. Do lado de fora tinha um tanque de lavar roupa, uma pilha de roupas e um tanquinho do lado. A torneira parecia meio defeituosa, mas não tentei entender o que era naquele momento.


Casa de Reza

Fomos convidados a ir na Casa de Reza. A Casa de Reza é como se fosse um galpão feito de madeira e estacas. Internamente, tem troncos de árvores do lado direito e do lado esquerdo. No canto esquerdo tinha um colchão para as crianças ou pessoas usarem, tinha troncos avulsos. No centro da Casa, tinha uma estaca de sustentação do Galpão e um banco para a liderança da vez sentar. As mulheres sentavam no banco de tronco do lado esquerdo e os homens do lado direito. Na ocasião, Lucimara, a filha do Pajé, que foi nos recepcionar. Isso porque, o Pajé tinha sofrido um acidente, passado por uma cirurgia e estava acamado. O ambiente ao adentrar é de silêncio, mais do que um galpão que serve de abrigo, a Casa de Reza é, sobretudo, um espaço sagrado para os indígenas. Lucimara e os guerreiros estavam fumando cachimbo. Ela começa, na minha concepção, o ritual quando fuma o cachimbo próxima aos instrumentos, símbolos sagrados e quadros dispostos na parede principal, ou melhor, altar. Na sequência, ela começa a cantar e um dos guerreiros toca violão. Ao fim, Lucimara introduz o diálogo, começa falando do por quê estava ali e depois abre para perguntas para nós de uma forma aberta e acolhedora.


Das perguntas

As perguntas giravam em torno do modo de vida Guarani. Durante a conversa, nas respostas, a filha do Pajé compartilhou conosco que a Aldeia Rio Silveiras é composta por 6 núcleos indígenas, dos quais o núcleo porteiro é o único com um pajé e um cacique. Possui uma liderança mulher e que as regras das meninas mulheres foram alteradas ao longo do tempo. Antigamente, o tratamento das mulheres era muito mais exigente do que dos homens, quando completavam 11 a 12 anos precisavam passar por um período de isolamento de 1 ano para aprendizagem de costumes com as mulheres mais velhas e que depois elas se casavam com algum rapaz escolhido. Atualmente, o período passou a ser de 1 mês e a menina mulher pode escolher se deseja se casar ou não e com quem casar. Confesso que fiquei surpresa positivamente e contente pela mudança ocorrida, por indicar um avanço dos costumes frente ao conservadorismo e machismo da sociedade. Além disso, outro aspecto levantado pela Lucimara é a desmistificação do indigena distante da tecnologia, argumentando que todos os indígenas já possuem celular e redes sociais. Quanto à educação, os indígenas possuem professores e professoras indígenas que lecionam sobre disciplinas regulares, mas também disciplinas especiais, relacionadas a vida indigena. Achei super interessante que eles aprendem sobre seu modo de vida, porque assim seus costumes e práticas ganham maior profundidade e garantia de preservação. Por fim, sobre os hábitos alimentares foi demonstrado que os indígenas plantam, mas também compram alimentos, por exemplo, de natureza não perecíveis, como arroz e feijão.


Jantar e pós-jantar

Fomos chamados para o jantar. Era macarrão com molho vermelho e vegetal. Na cozinha, o fogão era normal, tinha uma geladeira precária, uma bancada e duas tomadas (as únicas revezadas por nós alunos para carregamento de celular). Comemos até não aguentar mais, tinha bastante macarrão. Os indígenas comeram conosco. Fomos dar uma volta pelas redondezas. Como estava tudo escuro, não andamos muito, mas o suficiente pra ver uma boneca pendurada no varal, um animal suspeito próximo ao arbusto de um dos banheiros e um céu lindo, tão lindo que dava pra ver as três Marias e mais outras estrelas que agora não me recordo o nome, mas que juntas formam o desenho de uma pessoa. Protegidos durante a noite por três guerreiros da Aldeia, que gentilmente se colocaram à disposição para garantir nossa segurança, fomos deitar. O frio com o entardecer dava vazão, os pés ficavam frios, mas já não tinha ânimo para buscar uma meia. Pois então, dormimos. No meio da madrugada, por duas vezes os galos cantavam e com isso acordamos, mas voltamos a dormir.


05/11/2022 - Manhã e antes do almoço

Sete horas a barraca começava a esquentar e com isso tínhamos o nosso despertador natural. Para o café da manhã, tínhamos Chipa, pão, banana, e pastas para colocar no pão e/ou chipa (pasta de amendoim natural, nutella natural e ricota). Chipa é um alimento típico dos indígenas à base de farinha, água e sal. Ele é frito, pode não cair bem para algumas pessoas, mas é interessante. Se pudesse, comeria de novo. Após o café, fomos guiados por dois guerreiros para a cachorreia. Andamos 3,5 km, passando pela Escola Municipal e Estadual voltada para as pessoas da Aldeia e Núcleo do Pajé e o seguinte a ele. Vimos casas de Alvenaria, o que nos chamou a atenção. Segundo um dos guerreiros, os indígenas poderiam escolher ter casas de alvenaria ou seguirem a tradição da construção de casas de barro. A primeira, era cedida pelo Governo, era um cômodo único sem repartições e com um tanque fora da casa. Já as segundas, eram as casas originais dos indígenas, que a cada 3 anos precisam reconstruí-las. O caminho para a cachoeira era de terra e tinha casas esparsas com cachorros vira-latas, galinhas, galos e gansos (em algumas casas). Fiquei impressionada quando vi uma das casas com uma casa imensa para os animais. Senti como uma materialização do cuidado que possuem com os animais e a vida. Outro ponto que me chamou atenção durante a caminhada foi que mesmo não conhecendo os indígenas e eles não nos conhecendo, quando cumprimentava eles demonstravam receptividade e cumprimentavam reciprocamente. Tudo bem que as crianças e idosos eram os mais receptivos e não pude compreender se o sentimento se mantém entre os adultos, mas achei significativo. Chegamos na cachoeira. A água estava gelada, mas foi muito bom. Tivemos o ritual do Rapé, uma pessoa me chamou pra ir, mas preferi ficar vendo de longe e dando suporte para aqueles que saiam do ritual e estavam se recompondo. A habilidade dos indígenas em andar pelas rochas me impressionou, era como se eles tivessem colas nos pés. Voltamos mortos de cansaço, todos queriam tomar banho ao chegar. Eu e Gui fomos no banheiro comunitário, eram 4 chuveiros, do lado dois tanquinhos e 4 vasos e pias individualizadas do lado oposto dos banheiros. Ainda bem que fomos em dupla. Só tinha uma chuveiro com água quente e tomar banho sem nenhum suporte, ralo entupido, paredes com musgo, chão com sujeira e sem escoamento de água foi desafiador. Quando fui no banheiro, também tive dificuldade, no começo achei que eles estavam entupidos, mas depois entendi com o Gui que é costume não darem descarga.


Almoço e parte da tarde

Tomar banho foi desafiador, mas extremamente renovador. Na sequência, fomos almoçar, o cardápio era vegano para todas as refeições, confesso que carnívora que sou achei que iria sofrer, mas foi tão bem preparado e pensado que superou minhas expectativas. Todas as nossas refeições eram feitas também pelos indígenas e foi interessante observar que alguns comem com talher e outros com a própria mão. Inclusive, na parte da tarde vi indígenas fazerem um miojo, o que me chamou bastante atenção. Na parte da tarde brincamos com as crianças e ficamos conversando entre nós. As crianças irradiam energia e alegria. Algumas levadas, mas com uma essência linda. Uma delas, Ana Clara em português, mas Ará em Guarani queria que eu brincasse com ela a todo instante. Demorou um tempo para que eu entendesse que ela não queria ir atrás da mãe dela, mas que eu era a “mãe” da fala dela. Isso me pegou de surpresa e me fez refletir do por quê teria sido chamada dessa forma.


A noite

Fomos chamados para a Casa de Reza. Dessa vez fiquei mais próxima do altar. O cheiro de tabaco era ainda mais forte. Na ocasião, fomos agraciados com a presença da Pajé, Pará, que começou fumando próxima ao altar, os instrumentos e monumentos sagrados, como se estivesse soprando a fumaça pra eles, em um sinal de benção. Depois de um tempo, eis que ela solta uma dissílaba. Confesso que senti como se fosse um grito, que repetido várias vezes acompanhado do tocar do violão de um guerreiro sem cifra nenhuma parecia um clamor. Na sequência, a música foi construída de forma conjunta, homens pegaram chocalhos de diferentes formatos e mulheres pegaram troncos de diferentes espessuras e começaram a tocar e dançar ao mesmo tempo. Conforme as pessoas iam integrando a música, ela ganhava maior beleza. A canção era em Guarani, então não entendíamos a tradução, mas dentro de mim senti como se fosse um chamado dos Deuses e que falava sobre a beleza da vida e natureza. Não sei dizer quanto tempo durou a música, porque quando entramos na Aldeia o tempo passou a ser do Guarani e não do homem da cidade. Terminado esse momento, a Pajé falou do por quê estava ali e abriu para perguntas. Interessante pontuar que a Pajé e outra indigena mais velha estavam de saia e as meninas mocinhas (11 a 12 anos), estavam com um colar de sinalização no pescoço. Depois desse momento, fomos jantar e com o cansaço do dia fui repousar.


06/11/2022 - Manhã

Ao levantar, seguimos a rotina, se trocar, arrumar a barraca e tomar café. Nesse processo, não encontrei a minha carteira que havia sumido na noite anterior e então avisei o professor Jorge e o guerreiro Josias. Estava preocupada e triste, mas como o dia estava livre, fomos para a praia. Ela ficava há 25 minutos de distância da Aldeia, no caminho, encontramos só um mercado e uma igreja. Quando chegamos na praia, que por sinal estava deserta, sentamos em umas cadeiras e por ali ficamos. A água estava gelada, mas depois de um tempo nos acostumamos. Lá não tinha banheiro, então precisei descobrir com um morador local um barzinho para ir, já que fazer no mato seria uma exposição e tanto diante do arbusto irregular. Além disso, embora constasse no Maps uma farmácia, também não achamos. Por sorte, conhecemos uma senhora que fez a conexão de nós com a farmácia. Aquele momento livre na praia foi maravilhoso. Na ocasião, 4 indígenas foram conosco. No começo, quando compramos comida no quiosque eles ficaram vendo, mas depois quando chamamos eles comeram conosco. Retornarmos para Aldeia.


Tarde

Naquele momento alguns foram tomar banho, outros desarrumar as barracas e outros ajudarem com o almoço. Eu fiquei sentada um pouco com meus amigos e novos amigos sob a grama descansando um pouco e depois tiramos fotos com os pequenos indígenas. Já tinha entregado pra Deus e conformada com o sumiço da minha carteira e eis que surge de forma misteriosa em um lugar que tínhamos procurado. Fiquei contente e sem acreditar, porque me fez sentir que os indígenas dali se preocuparam de fato com o sumiço. E o mais impressionante de tudo, é que devolveram de forma intacta, com tudo que tinha dentro. Conforme já dizia um colega, não importava a longa história que fez a carteira aparecer naquele local, mas que ela apareceu ! Dei três pulinhos para São Longuinho e agradeci a Deus. Na sequência, ajudamos a desarrumar todas as barracas e colocar as coisas no ônibus.


Considerações Finais

Mais do que ser uma nova realidade, me forneceu uma nova visão, a visão Guarani da vida. Pude conhecer os hábitos alimentares dos indígenas, baseado sobretudo no veganismo; os seus rituais de reza como forma de agradecimento diária ao nosso Deus que pra eles é Nhandereko e mais três Deuses (Trovão, Animais e Vida); a forma como não concebem o tempo racionalmente, mas como dia e noite, o tempo Guarani sereno e tranquilo de fazer as coisas; a vivência em comunidade, onde tudo é de todos e todos se ajudam colaborativamente; a relação com a natureza, fauna e flora; cuidado com as crianças; diferença de hábitos de higiene pessoal, que para nós pode ser encarada como falta de higiene e limpeza, mas para eles como algo normal; o lado reservado, mas ao mesmo tempo sociável. Para além dessas questões, também devemos observar de forma distante o contexto, que nos revela alguns pontos interessantes e de atenção, que serão reproduzidos no quadro abaixo organizado de acordo com tema/comentário.

Tema Comentário
Educação A Aldeia tem infraestrutura de educação, Ensino Completo para garantir o ingresso dos indígenas na Universidade.
Gênero A mulher ocupa novos espaços, suas regras são mais flexíveis e compatíveis às exigências dos dias atuais, onde a mulher está mais próxima do homem e não submissa a ele
Tecnologia Ela já chegou e os indígenas se adequaram a ela. Inclusive, vi até uma casa de barraco com a Antena Sky
Saúde Foram poucos os casos de covid-19 na Aldeia, mas pelos hábitos de limpeza e higiene acredita-se que seja um ponto de atenção. Para necessidade de medicamentos, remédios e curativos, o Pajé e sua esposa são acionados.
Saneamento básico Pouco presente, não se tem tratamento adequado de água. Os indígenas bebem água da torneira, a água dos chuveiros escoava pelo piso e terra. A única coisa que não estava a céu aberto eram os resíduos da descarga dos banheiros. No mais, era tudo visível e passível de transmissão de doenças ou infecções.
Hábitos de limpeza e higiene Alguns indígenas tomam mais cuidados que outros, mas no uso coletivo dos banheiros e chuveiros o estado coloca em risco a sua própria saúde; em um dos banheiros, na parte da lavanderia tinha uma pilha de roupa jogada que não sabia se era pro lixo/ali era o lixo ou se seria lavada.
Animais Os animais são grandes amigos dos indígenas, sobretudo os cachorros que durante a noite não só garantem a segurança, mas saem das casas na presença de qualquer corpo estranho perambulando pela rua à noite.
Trabalho Os indígenas vivem do artesanato, costura e aulas para os próprios indígenas que são remuneradas pelo Município e Estado.
Localização A Aldeia fica próxima a três Municípios, Bertioga, Boraceia e São Sebastião. Entretanto, para achar um bar e uma Igreja Evangélica você precisa caminhar 10 minutos da Aldeia Porteira; Mercado, 20 minutos; Igreja Católica, 25 minutos; Praia; 30 minutos. Farmácia, só pelo Ifood por Boraceia; outros estabelecimentos - sem conhecimento. Para os indígenas, seria interessante que o mercado fosse mais próximo já que eles compram alguns produtos para suas refeições.