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Wikinativa/Caapor

Fonte: Wikiversidade
Caapores
População total

991 (Funasa, 2006)

Regiões com população significativa
Norte do Maranhão / Pará Brasil
Línguas
Ka'apor
Religiões
Xamanismo

Caapores (conhecido também por "urubus, cambôs, urubus-caapores, urubus-caapores, ka’apor) é um povo indígena que vive no estado do Maranhão, no Brasil. O seu nome significa "povo da mata", através da junção dos termos tupis ka'a ("mata")1 e poro ("povo")2 .

Surgiram como povo distinto há cerca de trezentos anos, provavelmente na região entre os rios Tocantins e Xingu. Talvez por causa de conflitos com colonizadores luso-brasileiros e com outros povos nativos, iniciaram uma longa e lenta migração que os levou, nos idos de 1870, do Pará, através do rio Gurupi, ao Maranhão. Uma fonte do período em torno de 1890 menciona os Ka'apor como guerreiros que atacavam as comunidades rurais com suas "terríveis flechas com pontas de aço". Grupos de colonizadores brasileiros que, por sua vez, atacaram e aniquilaram aldeias Ka'apor por volta de 1900, ficaram surpresos ao descobrirem esplêndidos cocares de penas amarelas, verdes, pretas e vermelhas dentro de pequenos baús de cedro, que os sobreviventes, em fuga, teriam deixado para trás.

Quando as autoridades brasileiras tentaram pacificá-los pela primeira vez, em 1911, por intermédio do recém criado Serviço de Proteção aos Índios (SPI), os Ka'apor, como os Nambiquara no Mato Grosso, eram considerados um dos povos nativos mais hostis no país e, portanto, prioritários para a pacificação. Tal pacificação, tanto dos Ka'apor quanto dos karaí (não índios), ocorreu em 1928 e durou por quase setenta anos. Recentes invasões da terra dos Ka'apor pelos karaí, entretanto, ocasionaram novas hostilidades e estão colocando a sobrevivência étnica dos Ka'apor novamente em dúvida.

Auto-denominação: Ka'apor ou Ka'apór (o apóstrofo representa uma parada da glote, um som ouvido na primeira parte da expressão inglesa "uh-huh"; o acento tônico na língua Ka'apor em geral cai na última sílaba).

Outros nomes: Urubu, Kambõ, Urubu-Caápor, Urubu-Kaápor, Kaapor. Ka'apor parece derivar de Ka'a-pypor "pegadas na mata" ou "pegadas da mata". Outro significado aventado para Ka'apor é o de "moradores da mata".

Contudo, a expressão "moradores da mata" na verdade exprime-se melhor pelo nome que os Ka'apor atribuem aos índios caçadores-coletores Guajá, seus vizinhos, Ka'apehar. A pessoa também pode ser identificada na língua Ka'apor como awá, que se refere à forma reflexiva ("alguém") e ao sujeito, enquanto pessoa, nas sentenças interrogativas ("quem?"); awá está relacionado com os termos inflexivos referentes a "pessoa" e "povo" em várias outras línguas Tupi-Guarani.

Kambõ parece ter sido assimilado do português "caboclo", um termo aplicado aos Ka'apor pela maioria dos brasileiros da região nos dias de hoje, provavelmente de origem amazônica e freqüentemente usado pelos que falam a língua Ka'apor numa auto-referência quando em conversa com terceiros. O termo Urubu foi evidentemente atribuído ao povo Ka'apor durante o século XIX pelos inimigos luso-brasileiros, sendo esta etmologia dada pelos próprios informantes Ka'apor, embora estes não se refiram a si mesmos pelo termo quando falando com terceiros.

Os termos hifenizados Urubu-Caápor e Urubu-Kaápor foram introduzidos pelos indigenistas brasileiros nos anos 50, numa tentativa de padronizar, na etnologia, a grafia dos nomes de grupos nativos.[1]

Localização

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Os Ka'apor vivem no norte do Maranhão. Suas terras fazem limite, ao norte, com o rio Gurupi, ao sul, com os afluentes meridionais do rio Turiaçu, a oeste com o Igarapé do Milho e a leste, com uma linha no sentido noroeste-sudeste quase paralela à rodovia BR-316. Todos os córregos e rios drenam para três grandes rios: Maracaçumé, Turiaçu e Gurupi, que, por sua vez, desaguam diretamente no oceano Atlântico.

A altitude máxima é de cerca de 250 metros acima do nível do mar nas regiões montanhosas, onde as cabeceiras do Maracaçumé, Turiaçu e Gurupi estão mais próximas umas das outras. Chove cerca de 2000 a 2500 mm por ano, sendo que a maior parte deste volume cai durante a predominância dos ventos vindos de leste de janeiro a maio.

A vegetação predominante é a floresta alta pré-amazônica. Certas espécies pan-amazônicas estão historicamente ausentes na região, tais como castanheira, assacu, mucajá, buriti e a vitória-régia. Vários espécimes da fauna aquática do rio Amazonas, tais como poraquês, arraias, botos e peixes-boi estão também ausentes. Mas a diversidade de espécies, a área basal e a fisionomia da floresta pré-amazônica são comparáveis às de outros lugares da floresta Amazônica. A maior parte da fauna terrestre, incluindo mamíferos, insetos, répteis e aves é amazônica; alguns deles são até mesmo endêmicos ou raros e ameaçados, tais como o jaguar, o periquito dourado, o macaco capuchinho Ka'apor (Cebus Kaaporii) e o sagüi barbado (Chiropotes satanas), também um macaco. As árvores de floresta alta predominantes no hábitat Ka'apor incluem o matá-matá (Eschweilera coriacea), breu (Protium spp.), andiroba (Carapa guianensis), pau cachimbo (Mabea caudata) toari (Couratari spp.), bacaba (Oenocarpus disticha) e pente-de-macaco (Apeiba spp.).

Nas florestas crescidas sobre antigas capoeiras, as árvores comuns incluem jenipaparana (Gustavia augusta), babaçu (Attalea speciosa), tucumã (Astrocaryum vulgare), inajá (Attalea regia), taperebá (Spondias mombin), jatobá (Hymenaea spp.) e abiu (Pouteria spp.). Outros importantes complexos de vegetação incluem as florestas pantanosas e as florestas sazonalmente alagadas, sendo espécies comuns o açaí (Euterpe oleracea), sumaumeira (Ceiba pentandra), marajá (Bactris spp.) e embaúba (Cecropia spp.). Complexos de menor porte são os roçados de idades variadas e os pomares, incluindo mandioca, lavoura de batata doce, de inhame, banana, urucum, algodão e mamão. Os antepassados Ka'apor, que parecem ter fugido da expansão da sociedade luso-brasileira no sul do Pará, chegaram e se estabeleceram nas suas terras atuais (indo além) no Maranhão nos idos de 1870.

As origens do povo Ka'apor como grupo étnico distinto remontam a um centro amazônico Tupi-Guarani localizado entre o baixo Tocantins e o Xingu no final do século XVII e início do século XVIII; os habitantes nativos daquela região naquele momento eram conhecidos como os Pacajás. Os Waiãpi são provavelmente um outro grupo derivado daquele centro; os Amanajós das bacias do baixo Tocantins/Capim foram provavelmente também originários de lá. Enquanto os Waiãpi migraram para o norte, atravessando o rio Amazonas na direção da sua localização atual ao longo da fronteira do Brasil com a Guiana Francesa, os Ka'apor migraram para o leste, cortando o rio Tocantins. Eles são conhecidos pela história documentada por terem se estabelecido sucessivamente nas bacias do rio Acará (ca. 1810), rio Capim (ca. 1825), rio Guamá (1864), rio Piriá (1875) e rio Maracaçumé (1878).

Cem anos depois, em 1978, a Área Indígena Alto Turiaçu, consistindo em 2048 milhas quadradas (5.301 km2) de floresta amazônica alta, ocupada por todos os remanescentes Ka'apor, assim como por alguns Guajá, Tembé e Timbira, foi demarcada pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). A demarcação foi homologada pelo Decreto nº 88.002 em 1982, na administração do Presidente João Figueiredo. No entanto, cerca de um terço da área vem sendo devastada ilegalmente e convertida em cidades, campos de arroz e pastagens por agricultores sem terra, fazendeiros, madeireiros e políticos locais desde o final dos anos 80.[2]

Os Ka'apor tiveram numerosos contatos documentados com a sociedade luso-brasileira entre o período dos Pacajás, nos idos de 1600, e o estabelecimento do contato prolongado, ou pacificação, em 1928. A maior parte dos episódios relatados foram violentos. Os Ka'apor da bacia do Capim atacaram vilas na bacia do Guamá no período de 1820 a 1830, evadindo-se com mulheres e canoas; os Ka'apor na bacia do Capim foram, por sua vez, derrotados por milicianos e por recrutas Turiuara, que também falavam uma língua Tupi-Guarani. Alguns homens Ka'apor saquearam vilas na bacia do Guamá em 1864. Depois disso, 25 soldados da guarda nacional destroçaram uma aldeia Ka'apor. Meses mais tarde, 150 soldados da guarda nacional perseguiram os remanescentes Ka'apor até as cabeceiras dos rios Guamá e Gurupi. Em 1874, alguns Ka'apor viviam na bacia do Piriá, desconhecendo-se qualquer contato dos mesmos com os colonizadores.

Nos idos de 1870, guerreiros Ka'apor derrotaram e expulsaram um quilombo do lado maranhense do rio Gurupi, ocupando subsequentemente o antigo local de refugiados como sua própria aldeia, próximo da atual aldeia de Gurupiuna. De 1870 até a chegada do Serviço de Proteção aos Índios em 1911, os ataques Ka'apor a lugarejos e cidades no Pará e Maranhão, assim como a trabalhadores do telégrafo, garimpeiros, coletores de balata e outros índios, como os Guajajara, Tembé, Guajá e os Kren-Yê Timbira, não diminuíram. Em sua maior parte, os ataques Ka'apor pareciam ter como propósito a aquisição das ferramentas de aço das vítimas para serem utilizadas nas roças e na confecção de pontas de flechas.

Antes de 1820, os Ka'apor podem ter gozado, de forma intermitente, de relações pacíficas com a sociedade luso-brasileira, até mesmo nos assentamentos das missões, o que se infere do folclore Ka'apor. Se isto é verdade, ajudaria a explicar por que há tantos empréstimos e outras influências na língua Ka'apor que parecem advir da língua geral amazônica, falada por missionários e por grande parte da comunidade paraense nos séculos XVIII e XIX.

Em 1911, o SPI empreendeu esforços visando a "pacificação" dos Ka'apor, organizando um grupo que levava presentes em forma de ferramentas de aço e coisas parecidas, rio Turiaçu acima, na esperança de "atrair" os índios. Guerreiros Ka'apor que espreitavam o grupo atiraram no maxilar de um voluntário, razão pela qual os esforços foram abandonados. Do outro lado do hábitat Ka'apor, ao longo do alto rio Gurupi, agentes do SPI também tentaram, em vão, pacificá-los entre 1911 e 1912. De 1915 a 1917, o SPI não teve recursos financeiros para os esforços de pacificação dos Ka'apor. Em 1918 e 1920, após vários anos de trégua, ataques Ka'apor em busca de ferramentas de aço tiveram lugar respectivamente na bacia do rio Guamá e em Bragança, perto da costa atlântica. Os Ka'apor também foram agredidos por turbas de brasileiros enfurecidos durante este período; um agente de telégrafo no Maranhão, que organizou invasões às aldeias Ka'apor, espetou as cabeças de suas vítimas próximo dos postos de telégrafo entre os lagos Viana e o rio Gurupi. Finalmente, em outubro de 1928, ambos os lados tinham experimentado violência suficiente. De acordo com o saber tradicional Ka'apor, um homem Ka'apor, denominado Pa'i ("padre"), "pacificou" (mu-katu) os brasileiros no Posto Canindé do SPI, na região do Gurupi. O SPI afirma que foram os seus esforços em oferecer ferramentas de aço e outros bens sob tapiris que teriam levado os Ka'apor a buscar a paz. Em 15 de dezembro de 1928, 94 índios Ka'apor visitaram o Posto Canindé do SPI. Mais ou menos ao mesmo tempo, guerreiros Ka'apor aproximaram-se da cidade de Alto Turi, junto ao rio Turiaçu, com as suas flechas apontadas para baixo, em sinal das intenções amigáveis. As guerras dos índios Ka'apor haviam terminado, mas talvez não definitivamente.

Cerca de 1.300 posseiros, madeireiros e fazendeiros invadiram e estão desmatando a Terra Indígena Turiaçu, homologada desde 1989. Mais ou menos um terço das terras Ka'apor, principalmente ao longo de seu limite oeste entre a área do igarapé do Milho e do igarapé Jararaca, vem sendo desmatada e ocupada por sem-terras insuflados por grileiros e políticos locais. A situação atual na região é marcada por tensão e pela escalada da violência. Ataques de posseiros e de madeireiros às aldeias indígenas, assim como contra-ataques dos índios aos acampamentos de posseiros e madeireiros dentro de suas terras têm ocorrido desde 1993 com pelo menos duas vítimas fatais do lado karaí. A paz atingida em 1928 entre as sociedades brasileira e Ka'apor vem sendo minada e um novo estilo de guerra parece estar se desenvolvendo.

Para os Ka'apor, o inimigo de hoje não é tão claro quanto em 1928. Naquela época, o inimigo era qualquer um que não fosse Ka'apor. A atual situação de contato interétnico é muito mais complexa. O Conselho Indigenista Missionário, outras ONGs interessadas, como a Survival International-Reino Unido, e alguns indivíduos levaram a questão das invasões ilegais das terras Ka'apor à atenção de várias entidades, incluindo-se a imprensa brasileira local e nacional, o governo federal, a Comunidade Européia do Carvão e do Aço, o Parlamento Europeu e o Congresso Americano. Mas, o governo brasileiro ainda não interveio para deter ou reverter as invasões.

Os últimos setenta anos (1928-1998) assistiram a uma acomodação cada vez maior, mas não integral, da sociedade e cultura Ka'apor aos modos ocidentais. Muitos falam português, embora todos falem Ka'apor como primeira língua. Alguns professam uma crença em Tupã-ra'ïr ("filho do Trovão", ou "Jesus Cristo"), já que a divindade cristã foi introduzida por missionários fundamentalistas do Summer Institute of Linguistics (hoje Sociedade Internacional de Lingüística), que atuaram na área de mais ou menos 1963 a 1985. Mas muitos Ka'apor acreditam nos poderes divinos e curativos de Ïrïwar, uma divindade feminina, indígena, relacionada à água, cujo conceito foi parcialmente trazido dos Tembé e que é invocada no xamanismo. Os Ka'apor de todas as idades ouvem notícias e músicas do Brasil e do mundo em rádios-transistores de ondas-curtas, mas ainda passam muito tempo proseando e visitando as aldeias uns dos outros a pé pela densa mata.[3]

Organização social e política

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A aldeia Ka'apor (hendá) consiste normalmente em um ou dois agrupamentos residenciais uterinos. O irmão mais velho das irmãs casadas em um agrupamento uterino é normalmente o chefe (kapitã) do agrupamento, de forma que uma aldeia pode ter mais do que um chefe se houver mais de um agrupamento residencial. Enquanto a residência tende a ser uxorilocal, com a maior parte dos homens deixando o seu agrupamento de origem em razão do casamento para residir com os familiares de suas esposas, pelo menos um homem permanece, normalmente um filho do chefe, sendo a sua esposa quem se muda para viver com ele; entretanto, se ela é filha da irmã do seu pai, real ou classificatória, pode ser do mesmo agrupamento. O agrupamento é, politicamente, uma facção, baseada tanto no fato da co-residência quanto na doutrina da descendência repartida. O poder político do chefe se limita a acertar os casamentos de suas irmãs reais e classificatórias com homens dispostos a casar no seu agrupamento, que lhe garantem lealdade difusa assim como as filhas solteiras casadouras deles, para que ele ou seus filhos possam casar mais tarde.

Há uma ligeira tendência para os contratos de casamento com a filha da irmã do pai e com a filha da irmã (neste último caso também dito oblíquo) reais ou classificatórias. A terminologia de parentesco é basicamente dravidiana, o que quer dizer que as pessoas chamam alguns de seus parentes por afinidade por termos de parentesco cognático (por exemplo, "tio" e "sogro" são a mesma palavra, tutyr). Portanto, a terminologia de parentesco dravidiana implica na regra de casamento de primos cruzados (filhos de um irmão e de uma irmã real ou classifcatória). A descendência é bilateral e não há metades, sibs ou linhagens. Não existem classes de idade tampouco grupos de festas cerimoniais. O privilégio da poliginia e módico respeito são obtidos pelo chefe que é generoso com seus pares e prudente em suas ambições políticas e materiais. A sociedade é basicamente igualitária, não havendo autoridade central (o que pode estar mudando com as crescentes pressões de posseiros invasores). Cada aldeia tende a agir como uma entidade politicamente autônoma.

Mais de um agrupamento uterino pode constituir uma aldeia, especialmente as que abrigam mais do que 30 pessoas. No passado, o tamanho médio de uma aldeia comportava de 25 a 50 pessoas; hoje, algumas aldeias, como Gurupiuna (ao norte) e Zé Gurupi (ao sul), abrigam mais de cem, e não está claro se os padrões de liderança e de residência pós-matrimonial do passado poderão sobreviver. Algumas aldeias Ka'apor estão se tornando como povoados. Esta concentração reflete um aumento na taxa natural de crescimento populacional, bem como na pressão sobre o espaço disponível na terra indígena, tanto por conta da recuperação populacional quanto pela invasão da área por posseiros sem terra. Talvez a concentração em núcleos maiores lhes proporcione mais segurança.[4]

Ka'apor é uma língua Tupi-Guarani. Não é falada por nenhum outro grupo conhecido, exceto como segunda língua por alguns Tembé e outros moradores da região do Gurupi etnicamente não considerados Ka'apor; dialetos da língua são minimamente desenvolvidos. Pequenas diferenças léxicas e livres variações podem ser notadas entre o povo Ka'apor originário das aldeias da bacia do Turiaçu e o da bacia do Gurupi.

A língua não se aproxima das línguas Tupi-Guarani faladas pelos grupos mais próximos geograficamente, Tembé (Tenetehar) e Guajá: das duas, parece ser ligeiramente mais parecida, léxica e foneticamente, com o Guajá. Historicamente, é provavel que a língua Ka'apor esteja mais intimamente relacionada à língua Waiãpi, que é falada a uma distância de 900 km, no outro lado do rio Amazonas. Ambas foram altamente influenciadas nos últimos trezentos anos por outras línguas e hoje, são mutuamente incompreensíveis. A língua Ka'apor parece ter sido mais influenciada gramaticalmente pela língua geral amazônica; a Waiãpi, pelas línguas Carib setentrionais. Uma grande diferença entre elas é a tonicidade: na língua Ka'apor, as palavras são normalmente oxítonas; na Waiãpi, paroxítonas.

Embora não existam regras de distinção entre falas masculinas e femininas, os Ka'apor são lingüisticamente peculiares na Amazônia por terem uma linguagem padrão de sinais, usada para a comunicação com os surdos, que até a metade dos anos 80 compunham cerca de 2% da totalidade de sua população. A incidência de surdez deveu-se evidentemente à bouba neonatal e endêmica, que foi erradicada. Cerca de 60% do povo Ka'apor é monolíngüe; os outros 40% falam um português tosco ou regional. Uma porcentagem bem pequena (2%?) fala Tembé ou outra língua indígena, como a Guajá. Educação primária em português e na língua Ka'apor tem sido oferecida, de forma intermitente, nas escolas da FUNAI no Posto Canindé e na aldeia Zé Gurupi desde os anos 70. Até agora, contudo, nenhum índio Ka'apor terminou o segundo grau e muito menos a faculdade. Uma minoria de jovens Ka'apor matricula-se nessas escolas, havendo um índice elevado de analfabetismo.[5]

Cosmologia e Religiosidade

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Alguns Ka'apor dizem que seus autênticos xamãs (pajés) morreram numa inundação cósmica, mas o xamanismo é uma realidade em algumas aldeias, embora pareça ter sido uma prática adquirida dos Tembé. Os xamãs Ka'apor dos dias de hoje invocam os "antepassados" (yande ramu~i~) e uma série de divindades como Ïrïwar (termo glosado como Mãe d'Água) que se acredita ajudem os xamãs a predizer o futuro, a restaurar suprimentos de caça esgotados e a diagnosticar e curar doenças. Parece evidente que há alguma influência afro-brasileira no xamanismo Ka'apor. Uma das divindades cujo apaziguamento se busca é o Kurupïr (curupira), um anão malévolo de pés deformados e pele negra, algumas vezes denominado "o pretinho". Rituais de cânticos, danças, fumo de tabaco e transe dos xamãs acompanham essas invocações. Os aprendizes ajudam com os cânticos e algumas vezes entram em transe também. O xamanismo envolve uma performance pública, assistida por habitantes da aldeia de todas as idades. Os xamãs Ka'apor afirmam ter sido chamados espiritualmente para esta ocupação ao terem sido arremessados (ombor) em um córrego pela Mãe d´Água, fato de difícil verificação empírica mas que talvez envolva alterações do estado de consciência induzidas por jejum e consumo maciço de tabaco.

O espectro da morte manifesta-se por aparições de fantasmas dos antepassados, chamados angã, que provocam um medo mórbido e incurável. Infrações aos "tabus" (também indicado pelo termo polissêmico pajé) podem submeter alguém a penalidades sobrenaturais. Sobejam os rituais de purificação envolvendo sangue humano (awa ruwï) e sangria. Os homens que tenham matado outros, incluindo karaí, tradicionalmente mortificam seus corpos com um dente de cutia e são obrigados a dietas especiais, como durante o resguardo. Quando da menarca, a menina é confinada num recinto fechado por cerca de 12 dias. Após sair da clausura, seus responsáveis raspam a sua cabeça; aplicam-lhe um cordão de formigas tapiís vivas (Pachycondyla commutata) na altura da cintura e do peito; e escarificam suas pernas com dente de cutia, fazendo-as sangrar. Entre os Waiãpi, a recém-menstruada (yaï-ramõ) passa por provação similar, o que sugere ser esta uma prática consideravelmente antiga, datando talvez das origens da própria família lingüística Tupi-Guarani. A idéia de que o "sangue menstrual" (yaï) polui a sociedade é reforçada por tabus alimentares (mulheres menstruadas só podem comer, dentre os animais terrestres, a carne de jabuti); restrições de atividades (a mulher menstruada não pode trabalhar na roça, cozinhar ou dar comida a outros, nem banhar-se no rio da comunidade); e pela existência de um número desproporcional de remédios caseiros para um "fluxo menstrual excessivo" (yaï-hu). Durante o resguardo Ka'apor (nino-rahã), tanto a mãe quanto o seu marido são limitados a alimentos como os da dieta da menstruação por alguns meses ou mais, na crença de que a ingestão de outros alimentos prejudica o recém-nascido.

A cerimônia mais positiva na sua cultura é a cerimônia de nomeação das crianças. Trata-se essencialmente de uma afirmação da fertilidade Ka'apor e da reafirmação dos laços exogâmicos entre os agrupamentos residenciais que propiciam a sobrevivência e o crescimento da população. Tendo sobrevivido ao nascimento e ao período de restrição alimentar e isolamento de seus pais, conhecido como resguardo, a criança é candidata a receber um nome. Normalmente isto é feito quando a criança já é capaz de se virar e engatinhar por conta própria, mas pode chegar a ocorrer até um ano ou mais depois do seu nascimento. Esta cerimônia não é individual, como o é o ritual da puberdade feminina, mas, ao contrário, veementemente coletiva. Várias crianças dentro da faixa etária de 1 ano ou mais recebem nomes de uma só vez. Como cada criança tem que ter padrinhos (ipai-anga) assim como seus próprios pais presentes, a cerimônia envolve a maior festa grupal na sociedade. Um dos pais da criança será o "dono" (-yar) do evento, e ele ou ela deve preparar o caxiri tradicional de mandioca fermentada, caju ou banana. Todos os adultos e crianças mais velhas devem bebê-lo de noite. Ao amanhecer do dia seguinte, todos penduram suas redes na maior casa da aldeia, onde os homens reclinam-se e fumam longos charutos. No quintal na frente da casa, as mães das crianças a serem nomeadas sentam-se em esteiras de bacaba e seguram seus filhos em tipóias de algodão. Todos os adultos e muitos dos jovens enfeitam-se com seus ornamentos de plumas e este esplendoroso aparato de penas vermelhas, amarelas, verdes e pretas ajuda a iluminar até mesmo as nuvens escuras que possam surgir no horizonte do amanhecer.

Logo, o padrinho de uma das crianças começa a gritar o nome que ele escolheu; este será repetido numerosas vezes pela assistência de homens e mulheres. Em seguida, o pai ou a mãe da criança anuncia um segundo nome, aquele que eles escolheram, e este também será repetido inúmeras vezes pela audiência uníssona. Então, a criança é erguida pelo padrinho, que sopra um apito de osso de gavião, o qual é preso a um pingente de penas vermelhas, azuis e pretas. Ele dança para frente e para trás com a criança aos prantos em seus braços, anunciando ao mundo o nome de uma nova pessoa Ka'apor. E assim é feito com todas as crianças e seus padrinhos, até que os novos nomes estejam bem gravados na memória coletiva. O padrinho é freqüentemente um afim ou um irmão do sexo oposto de um dos pais, de forma que é concebível a idéia de que o afilhado (ou afilhada) possa no futuro vir a desposar a própria filha (ou filho) do padrinho. Em suma, a sociedade Ka'apor projeta-se para o futuro pela solene outorga de nomes. Contudo, a permanência deste ritual de renovação por muito mais tempo como parte integral de sua cultura dependerá do resultado da luta do povo Ka'apor por terra e justiça.[6]

Aspectos Culturais

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A arte plumária dos Ka'apor é o seu trabalho de maior renome e dois livros inteiros foram dedicados a ela. As penas usadas neste trabalho vêm de numerosos pássaros, inclusive tangarás, que são especialmente difíceis de caçar devido ao seu pequeno tamanho e à sua preferência pela copa das árvores. Os velhos artesãos fazem cocares, brincos, colares, pulseiras, braceletes e adornos labiais de penas. Eles são ostentados com toda a pompa apenas nas cerimônias de nomeação das crianças, como testemunho da consciência que eles têm de si mesmos como povo. A arte Ka'apor é também vista nos desenhos geométricos característicos que as mulheres pintam nos rostos das pessoas com sumo de urucum e nas cabaças com tintura à base da casca da árvore makuku (Licania spp.). O trabalho artístico dos Ka'apor, quando não é feito como um fim em si mesmo, esmaece na cultura material.

A cultura material inclui arquitetura da casa e da paisagem, ferramentas, armas, utensílios, redes e vestuário. A cerâmica está sendo substituída em grande escala por utensílios de cobre e alumínio importados, mas não é uma arte de todo perdida. A casa é construída a partir de um plano térreo retangular e tem um telhado inclinado. Ela normalmente acomoda uma família nuclear ou no máximo uma família extensa. As colunas são feitas basicamente de acariquara resistente ao apodrecimento; os barrotes e as vigas, de cerca de vinte espécies de madeira de lei. Os moradores dormem em redes de algodão amarradas às colunas e vigas, cortadas e erguidas pelos homens adultos. Normalmente uma fogueira é mantida acesa na casa para cozinhar e aquecer as noites frias do período da seca. As mulheres coletam quase toda a lenha, cuidam de manter o fogo e a maior parte do trabalho de cozinha.

O espaço imediatamente ao redor da casa é o quintal, geralmente mantido livre de ervas daninhas. Cada agrupamento residencial normalmente tem a sua própria casa de processamento de mandioca, onde o forno de farinha (outrora de argila, hoje em dia de cobre) situa-se no alto de um suporte de adobe. Ali a maioria das mulheres remexe a massa de mandioca sobre o calor até que se transforme em farinha (u'i), principal sustento calórico da dieta, normalmente amolecida e bebida com água em pequenas cabaças como chibé (u'i-tikwar). Também no quintal, os homens fazem a maior parte da carpintaria, cestaria e modelagem dos acessórios de aço, enquanto que as mulheres se encarregam de principalmente trançar, costurar e tecer.[7]

O censo mais recente data de 1982, quando a população total Ka'apor era de 494 pessoas. A população hoje (1998) está provavelmente entre os 600 e 1000 habitantes, sendo que, de longe, a maior parte deste aumento deve-se ao crescimento natural e não à imigração. Estimativas de censos anteriores, indicam que a população Ka'apor declinou marcadamente após o início do contato contínuo com a sociedade brasileira em 1928: 2.000 (1928), 1.095 (1943), 912 (1954), 822 (1962), 488 (1975). Os cinqüenta anos de declínio, dos anos 20 aos anos 70, deveram-se primordiamente a epidemias de infecções respiratórias (especialmente sarampo e outras síndromes virais) e a cuidados de saúde inadequados. Hoje, dados preliminares fortemente sugerem que a população total Ka'apor está se recuperando, talvez a uma taxa de crescimento natural de 3% ou mais, tendo adquirido imunidade contra condições antes letais, seja pelo isolamento de crianças debilitadas, seja pela melhoria no tratamento da saúde.

Casamentos fora do grupo com Tembé, Guajá e brasileiros têm ocorrido desde os anos 50, senão antes; respondem por cerca de 5% dos casamentos Ka'apor. A expectativa de vida é de cerca de 45 anos no nascimento e de 55 a 60 anos para os que sobrevivem à infância. As maiores causas de mortalidade (e invalidez) do povo Ka'apor nos dias de hoje parecem ser a tuberculose (ora endêmica, embora provavelmente ausente antes de 1928), complicações de parto, síndromes e complicações neonatais, malária, febre amarela e outras infecções do fígado/sangue de etiologia indeterminada, acidentes de caça, quedas de árvores, outros acidentes e homicídio.[8]

Povo horticultor, os Ka'apor, assim como vários outros grupos estabelecidos na Amazônia, dependem da mandioca brava como fonte principal de calorias. Eles a consomem principalmente na forma de farinha. Cultivam no total cerca de cinqüenta espécies de plantas. Estas são usadas como alimento, tempero, remédios, fibras, ferramentas e armas. Além disso, eles caçam e coletam frutos nas matas densas e pescam em pequenos igarapés do seu hábitat para obter a maior parte do restante de sua alimentação. Os animais de caça mais importantes na sua dieta são o veado galheiro, caititu, queixada, paca, cutia, macaco guariba, duas espécies de jabuti, jacaré e várias espécies de cracídeos, mutuns e tinamídeos. Nem tudo o que é comestível no hábitat é aproveitado como alimento.

E alguns itens comestíveis só são comidos algumas vezes por algumas pessoas. O complexo de tabus alimentares centraliza-se em ritos associados à fertilidade feminina, especialmente o resguardo e o ritual de puberdade. Para quem se encontra nestes estados, a única carne de animal terrestre permitida é a do jabuti de pé amarelo. Importantes espécies de peixes incluem o surubim, pacu, piranha, traíra e jeju. Os mais importantes frutos silvestres coletados para alimentação incluem o bacuri (Platonia insignis), cupuaçu (Theobroma grandiflorum), piquiá (Caryocar villosum) açaí (Euterpe oleracea), bacaba (Oenocarpus distichus) e abiu cutite (Pouteria macrophylla).

A divisão sexual do trabalho não é rígida, mas as mulheres dedicam muito mais tempo do que os homens à preparação do alimento, especialmente no que diz respeito ao processamento da mandioca brava. Os homens passam bem mais tempo caçando do que as mulheres. No geral, os homens tecem as cestas, inclusive os tipitis (prensa de mandioca) enquanto as mulheres fazem as panelas, incluindo as grandes vasilhas (kamuši~) usadas para servir o caxiri de mandioca nas cerimônias de nomeação das crianças.[9]

Ligações externas

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Povos Indígenas no Brasil

ISA - Instituto Socioambiental


Referências