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Wikinativa/Carlos Pinheiro (vivencia Guarani 2016 - relato de experiência)

Fonte: Wikiversidade

Carlos Pinheiro

A experiência vivida na Aldeia Guarani Rio Silveiras representa um momento único da minha graduação que pouco dialoga com as abordagens tão íntimas. Minha graduação em Relações Internacionais sempre foi muito distante do contato com o indivíduo propriamente dito, sempre centrada sobre os debates dos Estados, mas ao mesmo tempo preservando um diálogo crítico com os desdobramentos do colonialismo e desenvolvimentismo no Brasil. Ao chegar no último ano, decidi ter uma grande imersão ao longo dele, abarcando temáticas antropológicas de produção de conhecimentos e indivíduos. A etnografia logo de cara se demonstrou uma metodologia que possibilita a conciliação do contato com os indivíduos, suas demandas políticas, sua organização social e seus costumes, ou seja, empaticamente ligada a uma ontologia crítica sobre os núcleos de conhecimento que estive restrito e que estaria transgredindo ao me dispor a tentar sistematizar em minha linguagem como se operam os sistemas culturais e sociais além dos códigos culturais que tenho familiaridade. A oportunidade de entrar em uma aldeia e conviver por alguns dias, se demonstrou muito enriquecedora e revolucionária no que tange nossos enrijecimentos conceituais, ou melhor dizendo, nossos preconceitos. A viagem foi acompanhada do contato antecipado pelas sugestões de obras críticas e pós-estruturais acerca do relativismo cultural, multiculturalismo e como são operados os sistemas liberais e burocráticos sobre, e pela ótica, indígenas. Textos que foram fundamentais para o cuidado de possíveis estranhamentos, preconceitos e comodismos sobre o que tomamos como familiar, tendo como função aguçar a curiosidade e chacoalhar as zonas de confortos que somos socializados, principalmente pelas informações e verdade que ainda preservam a noção de pares: urbano/civilizado/moderno e indígena/bárbaro/selvagem/ultrapassado. O cuidado que tive durante a viagem se dava sobre possíveis investidas que poderiam ser mal interpretadas, lida como gafes, e tentei me manter seguindo as recomendações mínimas dadas anteriormente pelo professor e os monitores. Mantive um contato muito concentrado com as mulheres e as crianças da aldeia em virtude ter maior facilidade com a comunicação, mas majoritariamente, as falas eram centralizadas e guiadas por ícones masculinos. Ora eram líderes religiosos ou políticos, e eles estavam sempre nos conduzindo nas grandes conversas, nos trajetos adentro da floresta para irmos para as cachoeiras, e durante todos os cerimoniais que pudemos presenciar/conviver nas casas de reza, local onde a maior parte das informações foram trocadas diretamente em um diálogo acerca dos conhecimentos tradicionais e cosmológicos da comunidade. As lideranças e crianças, meninos majoritariamente, nos acompanharam durante muito tempo, dentro e fora do alojamento, e de forma muito expressiva, sempre foram muito cautelosos e ao mesmo tempo nos tratando com total proximidade, explicando algumas curiosidades sobre a natureza e sobre seus conhecimentos, costumes, assim como nos perguntando sobre o que fazíamos no nosso cotidiano. Além de brincarem de nos assustar cotidianamente dentro da floresta, quando fazíamos trilhas e durante à noite no acampamento, mostrando que estavam confortáveis com nossa presença, pelo menos ao ponto de rirem ao verem a gente tomando sustos. Algumas mulheres não sabiam o português e isso acabou dificultando algumas conversas nossas, infelizmente nós não tínhamos muitos recursos linguísticos para cultivar muitas conversas, mesmo que ainda tenhamos compartilhados momentos de convivência e confraternização na casa de reza e nas refeições, havia uma grande dificuldade .para estabelecer uma comunicação efetiva e direta com elas. Isso é dado pelo fato de muitas ainda não terem acesso ao português e a educação regular/formal. Algumas trabalham em escolas e outras instituições externas da aleida, principalmente, na parte da cozinha e estavam mais presencialmente como participantes com funções específicas nos dias dessa curta imersão de um final de semana. Elas estavam sempre desempenhando algumas atividades que estavam relacionadas ao cuidados para/com as pessoas do nosso grupo, e também com as crianças que estavam conosco a todo momento. Durante os dias lá, pude entrar em contato com alguns relatos e vivências das crianças na floresta, contando sobre suas visões, medos, brincadeiras, mostrando também o quão valiosos eram os recursos que tinham lá, o quanto gostavam de tecnologias como celulares e câmeras digitais e ao mesmo tempo, revelavam a natureza como organismo vivo e digno de muita atenção e respeito.Em especial gostaria de relatar meu estranhamento com a animação deles com músicas como funks paulistas e cariocas de grande circulação, assim como algumas músicas do sertanejo universitário. Ao longo dos dias, eles estavam nos indicando algumas plantas que são usadas frequentemente, algumas brincadeiras costumeiras deles, assim como suas histórias de assustar que perambulam muito aproximadamente alguns folclores muito conhecidos como o do saci, a mula sem cabeça e a caipora. Em algumas noites as crianças ficaram conosco em nosso pequeno grupo de amigos recém-conhecidos, contando suas histórias, e outras sobre outros povos da floresta, relatando sobre suas ancestralidades, e mostrando a significância dos seres que habitam a natureza, e toda a complexa cosmologia que ainda se preserva. Ao mesmo tempo que foi perceptível que seus conhecimento incorporaram outras verdades, compondo todo a densa realidade e relação dos indígenas com as sociedades externas à aldeia, sua luta para/com a preservação natureza e dos outros seres, além de suas lutas políticas cotidianas para terem seus direitos assegurados, reconhecidos e ampliados. Percebemos que poucos indígenas eram adolescentes, todos eram de polos como mais velhos (adultos e alguns idosos) e crianças, tendo uma quantidade bem menor de adolescentes e jovens adultos. Basicamente, eles não apresentavam deficiências físicas também, havia uma grande expressão de força pelos integrantes masculinos que conviviam mais livremente na natureza, e as mulheres, que com tanta força quanto, apresentavam-se como atuantes nos ambientes privados da aldeia, da comunidade, sendo que nós tivemos o conhecimento de que somente algumas desempenhavam atividades fora. Talvez isso possa ser uma falsa sensação visto que muitas mulheres estavam dentro de suas casas, não no espaço comum que fomos destinados. Elas não frequentam as cachoeiras por causa de alguns medos, e percebemos que há uma operação de verdades desigualmente distribuídas entre as pessoas da aldeia, tendo uma organização baseada em algumas divisões sexuais binárias, de homens e mulheres. Mas ao mesmo tempo que esse sistema de organização não é hermético ou limitado, deparei-me com cautela sobre as conversas com com as que tinham ocupações externas da aldeia, mesmo havendo um grau de liberdade, e de até mesmo necessidade, ainda assim as mulheres revelaram alguns enrijecimentos que são fundamentais para o funcionamento da aldeia e da organização social histórica daquele povo, no seu contexto espacial e temporal. O meu cuidado sobre essas análises são ligadas ao foco de pesquisa que me atentei ao longo desse ano e que tiveram grande influência na vivência, os debates acerca das questões de gênero e sexualidade, então, tomando com respeito às diferenças, tentei analisar as desigualdades dentro dos papéis dos gêneros na aldeia, principalmente sobre as questões da diversidade sexual, busquei não essencializar relações ou não tomar com respeito as diferença culturais/étnicas vigentes, ou seja, não busquei analisar para além da constatação das diferenças dos papéis dos gêneros organizados binariamente e dispostos sobre as atividades e organização da comunidade.