Wikinativa/Davi dos Santos Ferreira (vivencia Guarani 2018 - relato de experiência)

Fonte: Wikiversidade

Minha Vivência Guarani

Desde o início não sabia exatamente o que esperar do primeiro encontro com os guaranis. Era um misto de ansiedade e curiosidade, tudo o que já tinha visto sobre qualquer população indígena estava nos livros e nos filmes, em sua grande maioria, documentários. Ou também na romantização promovida no período de escola, ensino médio; mas nada próximo da realidade do contato físico e real. Foi, evidentemente, uma grata surpresa e um abraço na minha alma a experiência, principalmente em tempos que insistem em ser tão difíceis.

Chegamos lá recebidos pela chuva, lama no chão, desconforto, pouca luminosidade, já desde o início tinha cara de desafio, tinha gosto de novidade, o status quo, o conforto não eram uma opção e posso dizer agora: ainda bem. Fomos recebidos na nova casa de reza, um pouco de fumaça, um cheiro próximo ao que eu conheço do terreiro de umbanda, havia uma força maior naquele lugar, ainda bem. Logo em seguida, com os pés sujos de lama mesmo, desconfortável, aprendi o nome de Deus: Nhanderu. Cada vez que o repetia, eu me sentia mais grato, mais próximo, foi assim durante todos os dias, em todas os episódios na casa de reza.

No primeiro dia não montamos barraca, não foi possível, pois dormimos todos acompanhados de Nhanderu e seja lá quais entidades ou forças espirituais que guardavam aquela casa de reza. Dormimos todos juntos, como um grande grupo de curiosos pelo o que ainda haveria de chegar. Foi divertido, confortável não, mas na altura do campeonato eu já estava repensando a ideia de conforto.

No dia seguinte, fomos todos acordados pelo som dos galos, a natureza já era uma realidade, a vivem na pele, no ouvido, no olfato, em todos os sentidos. Houve café da manhã, quatro dias de frutas, um pão diferente e muito gostoso e sim, alguns produtos industrializados que já conhecemos por aqui. Mas a sensação era outra: cozinha compartilhada, conversas, fogueira, todos juntos. Montamos as barracas, próximos aos bichos, a lama, ao céu aberto, a chuva que já havia desaparecido por um tempo. Logo já éramos chamados para o primeiro passeio: entrar na mata e conhecer a primeira cachoeira, cara a cara, olho no olho de Oxum. Foi divertido, particularmente curioso em como as crianças indígenas já tão acostumadas com o contato com a natureza, a facilidade em andar pela lama, mata, rochas, conheciam o caminho de cor e salteado. Aliás, nos acompanharam a flauta e a música, os passarinhos também.

Almoço, lama, desconforto, risadas, conversas, histórias sobre o fumo, brincadeiras de criança. Nesse dia em específico, houve um episódio mais desconfortável que qualquer lamaçal. Um grupo evangélico, na base da troca, doou brinquedos, em troca, cantam seus hinos e distribuíram suas bíblias. Com todo o respeito ao Deus, aos Deuses, desnecessário e estranho. Os cacique uns dias depois nos contou do assédio tamanho que alguns grupos evangélicos fazem com a comunidade, oferecem ajuda desde que aceitem unicamente a sua fé como verdadeira e única. Diversidade e resistência neles. Não há deus único, disso eu saí de lá com certeza.

Brincadeiras, descanso, casa de reza, dessa vez com uma espiritualização maior, pouco ou nada entendi do guarani falado, mas entendi outra língua, em outro sentido, o abraço que era aquela casa esfumaçada, toda em alto som para Nhanderu e para a proteção de todos. Foi um abraço. Logo depois, houve janta, chuva, bastante lama, cansaço.

Eu sai com a sensação de radicalizar a vida, a comunicação, o afeto. Éramos todos companheiros e companheiras, irmãos de terra, natureza, céu. A recepção daquela comunidade é muito sensível, abertos, parecem estar sempre felizes, riam bastante, pareciam contar piadas entre si, em um dos dias um grupo fez questão de ir de barraca em barraca, oferecer um pouco de palmito. Mais um abraço. Voltando a radicalização, o espaço em si nos tornava todos muito próximos, não havia tempo para o mundo digital, para estar online, só para estarmos vivos e próximos. O tempo pareceu funcionar diferente, era mais devagar, durava mais, ficava até mais gostoso em muitos momentos.

A casa de reza da noite seguinte foi mais pesada, era tempo de politica, de olhar para nosso futuro e nos lembrarmos que passados inteiros queriam muito se aproximar de nós, no fim, já sabemos que eles estão presentes e nos ameaçam todos. Mas as palavras daquela noite nos encheu de esperança, bendito o povo guerreiro, protegido e resistente há tantos e tantos anos que ainda consegue promover tanta força e afeto. Mais um abraço, dessa vez apertado e nos dizendo que para viver, precisa de coragem e claro, afeto. Abracemos todos. Saí daquela casa de reza mais confiante de que algo maior sempre há de surgir e que não há mal que dure para sempre.

Na manhã seguinte houve trilha, pesada, longa, cobras, insetos, bastante terra e lama, árvores, riachos, águas nos pés, ar puro, a natureza em carne viva nos abraçando. Passei a imaginar que a natureza também nos abraça. Houve mais cachoeira, descanso, energia boa, logo veio a experiência de transcender. Respirei flores e ervas, vi muito vermelho, olhos cheios de lágrimas, um peso imenso em toda a cabeça, de repente só cachoeira, água, Oxum, calmaria. Há que bom calma em tempos caóticos. Foi paz no caos, ainda bem.

Mais adiante, cacique, resistência e natureza. Ele nos contou sobre o cuidado com a natureza, a casa de todos, o interesse da comunidade em protegê-la. A sustentabilidade é possível, a vida na natureza é sim possível e é sim necessária para o mundo de agora e para o mundo de depois. Há futuro.

Falei do tempo, da política, da espiritualidade, e claro, não podia me esquecer da cultura que resiste e reexiste. O guarani é mantido vivo, tradição, desde criança. É óbvio dizer isso, mas sim, é preciso que todos enxerguem essas pessoas como sujeitos de direitos, de viverem com seus costumes, sua língua, sua religião, sua cosmovisão como um todos. O Brasil não é um só, são vários os Brasis que vivem nesse nosso território, seria essa minha conclusão dessa viagem. Fico grato, me senti abraço e convicto de quero estar do lado dessa gente muy grata a vida, independente das amarguras, do cansaço, das desvirtudes que tendem a pressionar a todos. Minha graduação tornou-se outra, mais convicto do caminho que quero seguir, da política em que acredito, dos Brasis que defendo e que aprendo a amar cada dia mais. Um muito obrigado.