Wikinativa/Gabriela Fernandes Camacho (vivencia Guarani 2018 - relato de experiência)

Fonte: Wikiversidade

Introdução[editar | editar código-fonte]

Sempre tive interesse pela causa indígena, até mesmo por ter ascendência indígena por parte de mãe, mas nunca tinha tido a oportunidade de um contato maior. Descobri a disciplina alguns anos atrás ao notar algumas pessoas com pinturas corporais indígenas na faculdade, o que me chamou a atenção e me fez correr atrás para saber do que se tratava. Foi então que decidi que iria fazer essa disciplina, esperando um melhor momento pra mim para cursá-la, que acabou sendo no segundo semestre de 2018. O programa da disciplina previa duas atividades de imersão, a vivência na aldeia do Jaraguá (São Paulo capital), em agosto, e a vivência na aldeia do Rio Silveiras (São Sebastião), em novembro. As das experiências serão relatadas a seguir.

Caminho para a Casa de Reza pronto, que ajudei a fazer

Vivência: Aldeia no Jaraguá[editar | editar código-fonte]

A vivência na Aldeia do Jaraguá foi muito interessante para quebrar estereótipos do que é e com vive o indígena. Quando chegamos, senti um choque ao me deparar com os tamanhos muito pequenos de duas aldeias vizinhas, mas principalmente com as condições precárias em que vivem. As aldeias se tratavam na verdade de favelas, com falta de saneamento básico e convivência com uma grande quantidade de animais abandonados. Como as pessoas sabem que os índios acabam cuidando dos animais, o local virou ponto de abandono, estando os animais sem o tratamento adequado, correndo o risco inclusive de contrair doenças e transmitir aos indígenas.

Barreamento da Casa de Reza do Jaraguá quase concluído

Após as visitas às primeiras aldeias, fomos à terceira, localizada mata adentro, onde antes era um lixão, sendo recuperado pelos próprios indígenas e ajudantes. Lá era uma outra realidade, mais próxima do que o que eu havia imaginado como sendo um local próprio para indígenas, uma região repleta de natureza. Entretanto, ainda há diversas dificuldades que eles ali enfrentam, como o saneamento básico escasso (contando com a presença de um banheiro), falta de lago para os peixes (fazendo com que improvisassem a construção de uma piscina com a doação que receberam da lona) e impedimento para a construção de novas casas (devido à disputa territorial com o Parque Jaraguá), além de preconceito e ameaças.

Piscina construída para uma posterior criação de peixes no Jaraguá

Embora haja o impedimento para que novas construções se ergam na aldeia, com a ajuda dos estudantes da USP e de simpatizantes da causa, a nova casa de reza foi concretizada, por ser de extrema importância para a expressão cultural indígena, em que a religiosidade possui um papel de destaque. Nessa visita nós contribuímos na etapa de barreamento da opã e sua inauguração. Foi um momento divertido ao brincar no barro, algo que no dia a dia de São Paulo não estamos acostumados e, de fato, era um motivo de festa para os índios. Após o barreamento, fizemos uma pausa para a refeição (a qual estava muito gostosa) e retornamos para o momento da reza.

Estava ansiosa para esse momento, o qual foi tão falado. Alguns indígenas foram à frente agradecer a todos que ajudaram e pude perceber o quão era significante para eles ter aquele espaço tão sagrado. Foi muito gratificante ter participado de alguma forma da construção da opã, que além de ser o local em que poderão praticar suas atividades e expressar sua espiritualidade, é também um símbolo da resistência Guarani no Jaraguá. O contexto para os guaranis no Jaraguá está bem complicado, mas espero que ainda seja possível reverter as restrições impostas pela chegada do Parque Jaraguá, de modo que as terras voltem a ser dos indígenas. Muitas construções ainda precisam ser feitas na aldeia, pois as famílias precisam de casas, para que possam sair da condição mais carente que se encontram as duas primeiras aldeias e se estabelecer na floresta. Para isso, será preciso muita resistência até que seja reconhecido que mesmo na capital de São Paulo há guaranis e estes merecem ter seu espaço e cultura respeitados.

Vivência: Aldeia Rio Silveiras[editar | editar código-fonte]

A vivência na Aldeia Rio Silveiras foi regada a muita chuva, o que nos proporcionou uma maravilhosa experiência de afundar o pé na lama. Devido às condições do tempo, o Pajé nos concedeu a Casa de Reza para passarmos a primeira noite, o que podemos considerar como um gesto de muito acolhimento, visto que é o local mais sagrado para os indígenas. Logo pela manhã já foi possível montarmos as barracas e darmos início às atividades programadas. Apesar da forte chuva, também tivemos um dia de sol intenso, fazendo o passeio no Rio Silveiras ser lindo. Além deste, tivemos ainda o passeio à cachoeira, a trilha que leva ao rio, a visita ao Cacique, as rezas diárias ao pôr do sol e os projetos dos grupos da disciplina.

Aldeia Rio Silveiras

No dia das crianças, fui despertada ao som de músicas indígenas e senti muita paz, estava adorando as músicas, até que elas foram interrompidas para tocar a música gospel “entra na minha casa”, com várias vozes cantando junto. Eu, ainda dentro da barraca, tentei entender o porquê os monitores estavam fazendo aquilo (ainda não estava 100% acordada). Quando saí vi uma cena em que várias pessoas de um Motoclube com camiseta de Jesus em um círculo cantando para os índios, que se enfeitaram para recepcioná-los, além de observar bíblias deixadas ao lado das barracas. A impressão que tive foi que estavam tentando catequizar os índios e fiquei incrédula que isso ainda ocorra. Achei uma falta de respeito com os costumes indígenas, pois em uma visita a uma cultura diferente, o ideal seria os visitantes conhecerem a cultura dos locais, já que se dizem apoiadores dos indígenas.

Imagem dos instrumentos e objetos da Casa de Reza tirada no dia em que acampamos nela

Após o passeio no Rio Silveiras, fomos ao encontro do Cacique Adolfo, para um bate-papo. Ele nos contou sobre a dificuldade em derrubar algumas árvores para abrir estradas e espaços destinados à ocas ou para fazerem hortas que garantam a subsistência dos índios. Com isso, eles acabam ficando reféns de mantimentos de origem externa à aldeia, o que os faz necessitar de dinheiro para fazer as compras, alterando o modo de viver do índio. Essa limitação ainda faz com que os índios dependam também das doações, o que os torna muitas vezes suscetíveis a aceitar ajuda em troca de “aceitar Jesus”, por exemplo. Ao ser questionado sobre como ele enxergava as visitas de grupos que oferecem ajuda aos índios, mas que também tentam convertê-los às religiões deles, o Cacique disse que não concordava com isso. Assim, ele iria reunir as lideranças locais para conversarem sobre o assunto, de modo a alertar a população das aldeias sobre as intenções desses grupos.

Uma situação curiosa ocorreu quando eu e mais um grupo de pessoas estávamos na fila do banheiro e um funcionário de um órgão ligado à saúde que transporta os indígenas de carro interagiu conosco. Ele comentou que os índios da aldeia não eram índios de verdade, mas sim descendentes. Para ele, não há mais índios atualmente, sendo todos descendentes. É curioso observar como os índios são entendidos pelo seu olhar ao não relacionar os índios do passado com os de hoje como sendo estes sobreviventes das tribos existentes desde o descobrimento do Brasil (muitas já aniquiladas). Os indígenas de hoje não são apenas descendentes de seus antepassados, como ainda constituem o mesmo povo, o que talvez influencie nessa visão de que são povos desconectados é que o mundo ocidental tem os obrigado a abandonar seus costumes e adotar os hábitos do homem branco (como por exemplo a língua). Com isso, eles se distanciam do passado aos olhos desse senhor.

Entretanto, percebi que o desejo dos índios é justamente resgatar o passado, mesmo incorporando alguns costumes do mundo contemporâneo, para que a essência de suas tradições e modo de viver (o inhanderecó) sejam preservados. Assim, é importante também que os visitantes tenham essa consciência de um cuidado para não provocar um desequilíbrio das relações nas aldeias ao introduzir algo que irá provocar um grande choque de cultura. E isso é interessante para se pensar em como a relação dos índios com as coisas materiais são diferentes. Para eles, não há necessidade de acumulação de capital e não há apego com as coisas materiais, havendo uma grande relação de coletividade e de parentesco, com divisão de tudo entre eles, sendo observado até mesmo pelas casas, que ficam abertas.

Fiquei encantada com os índios da aldeia, pois foram muito receptivos, nos recebendo de braços abertos e sorrisos nos rostos. Gostaria muito de visitá-los mais vezes e aprender cada vez mais sobre os seus costumes. Apesar de não termos tido tanto contato e escutas de histórias como eu tinha pensado, na casa de reza contamos com seus discursos. Eu imaginava que teriam uma postura um tanto carrancuda (ao menos o Pajé) e fui desconstruída pela simpatia em seus gestos e palavras. O Mariano se expressa muito bem em português, sendo um ótimo interlocutor e a menina Naiá é um amor, distribuindo abraços e sorrisos a todos. Pode-se perceber que estão bem acostumados a interagir com visitantes, o que me deixou intrigada para saber como são os costumes dos índios que vivem mais para dentro da mata e são mais isolados.

Um momento que foi muito forte para mim foi durante os discursos de duas pessoas, quando um explicou bem didaticamente sobre o contexto político para as questões indígenas e o outro nos relatou sua experiência na luta contra os ataques aos Índios. E isso os levou a falar sobre a iminência de um contexto político ameaçador para os índios com as eleições, o que iria intensificar os riscos que eles já correm. Acho que foi muito pertinente aquela conversa, pois provavelmente todos que estavam ali traziam angústias perante o que estava por vir na política, sabendo dos impactos para a causa indígena, mas também para as mais diversas áreas, inclusive no tocante a questões internas que afetam a saúde mental. Assim, a experiência foi renovadora. Ver tantas pessoas ali unidas, que muitos dos valores que carregam são compartilhados entre os presentes, trouxe uma energia muito positiva para lidarmos com essas questões ao ser reforçado que não estamos sós nessa luta, fazendo com que voltemos para nossos lares fortalecidos para enfrentar o que vier.

Conclusão[editar | editar código-fonte]

Percebi uma grande diferença entre as duas aldeias que visitamos. Enquanto a do Jaraguá passa por diversas dificuldades, como falta de saneamento básico adequado e falta de espaço para construir moradias, devido à restrição para a demarcação de terras, a aldeia do Rio Silveiras possui amplo espaço demarcado, intenso contato com a natureza, além de construções sendo erguidas. Porém, essa diferença não faz com que os indígenas do Rio Silveiras se tornem indiferentes à situação em que vivem os indígenas do Jaraguá. Eles explicam que são todos parentes e que mesmo que a situação no Rio Silveiras seja melhor que no Jaraguá, eles não se dão por satisfeitos, pois seus parentes não estão nessa mesma situação. É muito bonito ver esse apoio tão forte entre eles e chego à conclusão de que temos muito que aprender com os indígenas.