Wikinativa/Isabella Oricolli da Silva (vivencia Guarani 2022 - SMD - relato de experiência)

Fonte: Wikiversidade

Vivência na Aldeia Indígena Rio Silveiras: um final de semana mais próximo ao bem-viver

Introdução

A vivência na Aldeia Indígena Rio Silveiras é oferecida aos alunos matriculados na disciplina de Seminários de Políticas Públicas Setoriais, ofertada pelo professor Jorge Machado com aulas às sextas-feiras, às 19h. Ao longo de todo o semestre, pesquisamos e estudamos a perspectiva indígena da sociedade, como a cultura Guarani e o Estatuto do Índio, por exemplo. Também tivemos contato com estudantes indígenas da USP que resistem e lutam por sua permanência, em conversa na “Casa de Culturas Indígenas” do Instituto de Psicologia da USP, no campus Butantã, que recria uma casa de reza tradicional. Também pudemos conversar com indígenas guaranis e pankararé, que nos visitaram na sala de aula. Todas essas atividades, e inclusive a vivência na Aldeia Rio Silveiras, tinham como objetivo nos fazer entender melhor o olhar do outro sobre a identidade cultural, nos conectar com sua cultura e seu modo de vida, e nos permitir uma reflexão sobre as alteridades culturais. Durante o período da vivência, eu me coloquei no modo de aprendiz e de ouvinte; me mantive até de certo modo “introspectiva”, pois estava determinada a simplesmente escutar com atenção, observar as dinâmicas que o grupo estabeleceria ali, e poder absorver tudo de positivo que aquele lugar e aquelas pessoas poderiam compartilhar comigo. O “objeto de análise”, por assim dizer, eram os indivíduos moradores do núcleo da Porteira da Aldeia Rio Silveira, em Bertioga, e o intuito, nesse contexto, era conhecer e se aproximar da cultura guarani.

A vivência

A vivência estava marcada para acontecer dos dias 4 a 6 de novembro. Na data, estava ansiosa e arrumei as malas dois dias antes, uma mala vermelha com alças que posteriormente viriam a arrebentar. Fui uma das primeiras a estar no ponto de encontro, e pude observar as diferentes expressões dos alunos que iam chegando: ansiosos, animados, preocupados, etc. Chegamos com o ônibus fretado pela universidade na sexta feira a noite. Eu não sabia muito bem o que esperar da vivência, porque não fazia ideia de como um território indígena poderia parecer. A parte de montar as barracas do acampamento no escuro foi mais difícil do que eu imaginava, porque eu estava com uma barraca diferente, de um amigo. Houve um momento em que pensei em desistir de montá-la e dormir improvisadamente na de outra pessoa. Porém, uma colega com muito carinho chegou para me ajudar e terminamos de armar a estrutura em poucos instantes. Foi nesse exato momento em que comecei a perceber que trabalhando em coletivo as coisas fluem melhor, e que os dias ali naquele lugar seriam regados de uma cooperatividade sem tamanho. A ajuda mútua foi algo presente em diversos momentos, desde o momento da chegada, durante a travessia na trilha e no preparo das refeições. Acredito que o grupo de estudantes que realizou a vivência entrou no ritmo de vida e foi muito inspirado pelo modo de viver dos nativos, pois as famílias sempre andavam juntas, brincavam e riam o tempo todo. E por falar em tempo, foi muito perceptível que o tempo passava diferente na Aldeia. Diferentemente de nós, juruás, que vivemos o tempo social, o “tempo-relógio”, os indígenas tupi-guarani vivem o tempo do bem-viver, o “tempo do coração". Fiquei impressionada com a calma e a gentileza de cada pessoa que mora ali. Existe uma delicadeza no trato com o outro e um respeito ao entorno que é proporcionado pela cultura. Na Aldeia Rio Silveiras, toda forma de vida é tratada como sagrada: os animais, as crianças, os idosos e especialmente a natureza, farta e abençoada por Nhanderu. Uma coisa um pouco engraçada que aconteceu foi que, acostumada a viver no “tempo-relógio”, eu fiquei esperando que houvesse uma "programação" de tudo o que iríamos fazer. E claro, teve um roteiro pré-estabelecido, porém no início eu não havia compreendido que o mais importante ali não era necessariamente o fazer, mas sim o estar. O que importava ali era presenciar de corpo e alma o dia, a natureza, as bênçãos de Nhanderu e o companheirismo daqueles que nos são queridos. Enfim. Após nossa chegada, visitamos a Casa de Reza, local extremamente sagrado para eles. Infelizmente o pajé havia se acidentado e estava impossibilitado de se locomover. Por isso, quem dialogou conosco foi a Lucimara, sua filha. Ela falava de maneira doce e compreensiva, e durante todo o tempo se colocou muito aberta para ouvir nossas perguntas e também o que tínhamos para falar. Eu particularmente não falei nenhuma vez, acho que quis me colocar mais na posição de ouvinte, refletindo sobre o que estava sendo dito. Há sempre muita fumaça na Casa de Reza, pois eles acreditam que é por meio da fumaça do cachimbo que os humanos podem se conectar a Nhanderu, e também espantar os espíritos maus. Há muita reverência ao deus Nhanderu e também aos ancestrais. Lucimara nos contou que todos os dias, no final da tarde, as famílias vão até a casa de reza agradecer pelo dia vivido, pelo alimento, pela natureza e por todo o cuidado e provisão para com a aldeia. Honestamente, eu achei esse costume muito lindo, porque uma vida simples e a gratidão são coisas fundamentais para a alegria. No dia seguinte, acordei com um sol fortíssimo, que estava deixando minha barraca extremamente abafada. As roupas grossas que utilizei para me proteger do frio e do vento cortante durante a noite foram arrancadas com rapidez. Um farto e saudável café da manhã foi servido pela equipe da alimentação; havia uma pasta deliciosa de amendoim com côco e cacau, pães, frutas frescas em abundância e o saboroso “tipat”, que é um tipo de pão frito feito pelas mulheres indígenas. Iríamos para a cachoeira apenas mais tarde, e por isso, começamos a interagir e a brincar com as crianças. Foi um dos momentos que eu particularmente mais gostei da vivência, porque fazia muito tempo que eu simplesmente não ficava descalça e brincava despreocupadamente. Um garotinho em particular se aproximou muito de mim, ficamos brincando com bambolês coloridos e fazendo cosquinhas. Ele me abraçava e pulava em minhas costas. Tinha uma mira fenomenal, era extremamente forte e dono de um sorriso muito leve e honesto. Contudo, não pude deixar de reparar nas diversas cáries em seus dentinhos de leite, o que é uma pena. Inclusive, havia conosco algumas estudantes de odontologia que foram para a vivência realizar uma ação coletiva de atendimento, o que acredito ter sido bem relevante para aquela população. Apesar de alguns hábitos de higiene ficarem um pouco desfalcados, as crianças comiam muitas frutas, eram muito saudáveis e inteligentes. Pela noite de sábado, vivi um momento especialmente espontâneo e gratificante com duas meninas, de 4 e 7 anos. A mais velha se chamava Ana Clara, mas não me recordo o nome da menor. Elas conversaram sobre muitas coisas comigo, e nesse momento não pude deixar de fazer algumas perguntas. Elas me disseram que gostavam de dançar e de cantar para agradecer a Nhanderu, e me ensinaram diversas palavras em guarani, como “água”, que é “y’u”, e “areia”, que é uma repetição do som, “y’uy’u”, “água duas vezes”, elas me disseram. Durante as brincadeiras, me sentei para observar o grupo e as pessoas. Pude notar que as famílias indígenas têm hábitos, vestimentas e falas revestidas de uma enorme simplicidade, no entanto, permeadas por uma enorme sabedoria. Estão sempre em comunhão, e possuem muitos animais domésticos. Durante a interação, percebi que os alunos falavam mais com as crianças do que com os adultos, talvez por serem mais abertas. Porém, de maneira geral, os guaranis têm falas gentis e são muito acolhedores, possuem gestos lentos e doces. Valorizam muito o tempo da conversa, do ócio, da religiosidade , estão sempre preocupados com as necessidades uns dos outros, sorriem sempre e a maior ocupação é fazer com que a floresta esteja protegida. A trilha que fizemos no sábado a tarde era um tanto dificultosa e dava para uma cachoeira de água geladíssima, forte correnteza e pedras lisas. Nós nos divertimos muito ali, depois de uma travessia cheia de pedregulhos e barro. Um guerreiro nos acompanhou durante toda a trilha, e ao final, tive a oportunidade de aplicar o rapé. Foi um momento de extrema espiritualidade e reverência com a natureza ali, foi o momento em que pude me aquietar, meditar um pouco e me conectar. Senti um forte impacto do rapé de canela de velho, tive muita tontura e vontade de vomitar. Chorei um pouco e precisei de ajuda para voltar. Porém, sei que algumas tristezas e mágoas que estavam dentro de mim foram embora junto com a corrente das águas daquela cachoeira. Quando retornamos, ainda era o começo da tarde e eu fiquei espantada por já ter vivido tantas coisas em apenas uma manhã. Lembro de ter pensado em algum momento: “eu queria que todos os meus dias fossem assim”, porque eu não estava apenas tendo bons momentos, mas estava alegre, sentindo uma alegria genuína em viver o que estava vivendo. Me lembrei da leitura de “O Bem Viver”, de Alberto Acosta, que diz que “o bem-viver questiona o conceito eurocêntrico de bem-estar. É uma proposta de luta que enfrenta a colonialidade do poder”, justamente porque propõe uma vida mais tranquila, com pouca necessidade de produzir, priorizando o bem-estar social em detrimento do acúmulo material.

Conclusões (reflexões)

Por fim, acho que dentre as muitas reflexões e insights que tive neste fim de semana, o que mais me marcou foi que percebi o quanto precisamos de pouquíssimas coisas para sermos felizes. Em nossa sociedade, somos estimulados a comprar muitas coisas o tempo todo. Coisas que são vendidas por sua incrível “utilidade” e suas multifunções, mas que, no fim das contas, são feitas unicamente para a gerar lucro e necessidades que não tínhamos antes. Pude perceber que as pessoas ali da aldeia possuem uma tranquilidade em seus corações que é muito difícil de ser encontrada na cidade. Penso que muitas vezes, nós juruás, somos inseridos profundamente na lógica do consumo desenfreado e da produção, o que nos deixa longe de exercer nossa própria subjetividade e de ser quem realmente somos, causando uma melancolia de uma certa forma, pois começamos a sentir saudades da nossa verdadeira essência. Acredito que as pessoas da aldeia do Rio Silveiras são os netos dos ancestrais que são os verdadeiros donos do Brasil. Seu modo de viver me fez recordar de importantes lições sobre a vida que estavam esquecidas dentro de mim. Foi um sentimento como se em algum momento eu já soubesse de tudo isso, mas foi se perdendo de mim com o passar do tempo. O que senti foi, na verdade, uma saudade de voltar a ser criança que me lembrou uma citação de Rubem Alves: “a alma anda para trás, navega ao sabor do suave sopro da saudade. Quer voltar ao seu passado”. Dito isso, acredito que o objetivo da pesquisa tenha sido plenamente alcançado, ao meu ver. Acredito que a interação com o grupo e a troca de saberes com a comunidade local foi plenamente satisfatória, mas para além disso, acredito que a visita a Aldeia alterou uma parte significativa do meu ser, e gerou em mim memórias que se tornaram eternas em meu coração.


Referências Bibliográficas

ACOSTA, Alberto O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos / Alberto Acosta; São Paulo: Autonomia Literária, Elefante, 2016. 264 p.

ALVES, Rubem. “Se eu pudesse viver minha vida novamente”. Campinas, SP: Verus Editora, 2012.