Wikinativa/Júlia Mota (vivencia Guarani 2022 - SMD - relato de experiência)

Fonte: Wikiversidade

“Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida.”

Ailton Krenak


Introdução

Este relatório foi elaborado como uma das ferramentas para a conclusão da disciplina Seminários de Políticas Públicas Setoriais II, oferecida pela Escola de Artes Ciências e Humanidade, da Universidade de São Paulo, e ministrada pelo Prof. Dr. Jorge Machado no segundo semestre de 2022.

A disciplina foi organizada com alguns encontros quinzenais e com a realização de uma viagem de campo ao final do semestre letivo. Os encontros foram realizados com o objetivo de aproximar os discentes das culturas indígenas presentes no Brasil,  de forma a valorizar e colocar essas culturas em evidência no ambiente acadêmico - que acaba sendo profundamente homogêneo, ainda que esteja avançando em pautas que discutam e questionem essa homogeneidade - e disseminar conhecimentos atrelados à construção e conquistas de direitos por povos indígenas.

A viagem de campo foi realizada na Aldeia Rio Silveiras, localizada na divisa dos municípios de Bertioga e São Sebastião. As terras indígenas da aldeia demarcadas ocupam cerca de 948 hectares em área adjacente ao Parque Estadual da Serra do Mar. O território abriga cerca de 130 famílias, ou aproximadamente 1000 indígenas da etnia tupi-guarani.

A viagem de campo foi realizada entre os dias 04 e 06 de novembro e contou com a participação dos discentes da disciplina; discentes de Odontologia do campus de São Carlos da USP; além dos professores, tutores e mentores responsáveis pela matéria.

Por fim, o método utilizado para a construção deste relatório foi a “observação participante”, no qual o pesquisador se insere em um contexto social com o objetivo de vivenciar - sobretudo escutando e observando - aquele determinado contexto, para, de fato, sentir a experiência vivida, compartilhando suas impressões e conclusões em um relato descritivo. A forma de coleta de informações, portanto, não se restringe à coleta de materiais documentários, é, na realidade, composta pelo próprio olhar subjetivo do observador e de seu relato.


Descrição das observações

Sobre o tempo, em especial

Ainda lembro como, na época da escola, os tempos para as atividades eram anunciados por uma espécie de sirene. Essa sirene apitava quando o período de uma aula se encerrava ou quando éramos liberados para o intervalo, almoço ou saída do colégio. Lembro como as sirenes, juntamente com a quantidade luz que entrava na sala, tinham a capacidade de anunciar quais tempos eram mais esperados - justamente aqueles que antecediam o horário do intervalo e da saída - e quais causavam mais ansiedade - aqueles que apenas anunciavam o fim de uma aula para o início de outra.

A divisão do tempo, tal como utilizamos hoje e como Roger Sue  (1995, p.29) define como “tempo social dominante”, é voltada, exclusivamente, para a produção. Estamos sempre produzindo, mesmo nas horas que supostamente destinamos para o “descanso” - entre aspas, pois descansar é algo que questiono se, de fato, sabemos fazer. Avançamos com aparelhos tecnológicos que hoje conseguem fazer boa parte do que realizamos e, ainda assim, seguimos sempre no fluxo de aumentar a produtividade e otimizar o nosso tempo para, também, produzir mais.

Na faculdade não há mais uma sirene que nos avisa sobre os intervalos e limites das aulas, mas tampouco nos estimula a questionar como utilizamos o nosso tempo. Pelo contrário. Toda a comunidade acadêmica é constantemente movida pelo objetivo único da produção, temos incansáveis disciplinas, textos e materiais para produzir, além de nos inserirmos cedo no mercado de trabalho para conseguir arcar com os custos de vida e de estudos.

Para a viagem de campo combinamos de nos encontrar religiosamente às 15:30 no campus leste da USP. A semana toda que antecedeu nossa partida foi uma correria: correria para dar conta de prazos de disciplinas, uma vez que ficaríamos sem conexão ao final de semana; correria para dar conta das atividades do trabalho, pois ainda teria que sair antes do período ideal para poder chegar no campus a tempo; e correria para organizar os preparativos finais da viagem.

No ônibus o tempo também era uma discussão. “Quanto tempo vamos demorar para chegar?”, “como iremos dividir os horários das atividades?”; “que horas voltamos no domingo?”; “quando precisaremos estar presentes em alguma atividade?”.

Foi quando chegamos na aldeia que a ideia de tempo começou a se dissipar e quando os objetivos da disciplina começaram a ser vistos na prática. Nossas questões sobre o tempo eram então respondidas pelos moradores da aldeia apenas com uma breve frase: “aqui não temos tempo”. E “não ter tempo” não no sentido em que estamos habitualmente acostumados, ou seja, aquela ideia de que não temos tempo disponível para os nossos compromissos. Mas realmente a ideia de inexistência de um cálculo do tempo para corresponder a tais compromissos.

A quebra da minha noção de tempo e das minhas atitudes frente a ele foi a impressão mais relevante que eu tive na vivência. Como anuncia Ailton Krenak: “Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida.”. E ainda que, nessa passagem do livro “Como Adiar o Fim do Mundo”, o autor esteja se referindo ao conceito de tempo como o contexto social em que estamos vivendo, é ainda válido entender que o tempo, como Einstein define como a quarta dimensão da realidade (MACHADO, 2012), tal como vivemos, também cria ausências em nosso sentido de viver.


Das demais percepções


Além das percepções relacionadas ao tempo, também foi possível observar como se constituem os rituais de transição da infância para a vida adulta, toda a ancestralidade que envolve esses rituais e como eles foram, aos poucos, incorporando concepções e ideias de tempo atuais.

Na primeira reza que participamos, a filha do Pajé, que estava guiando o ritual em seu lugar, mencionou, por exemplo, como a visão do que significa se tornar mulher mudou ao longo dos anos e de acordo com os rituais de passagem na aldeia. Aos poucos a concepção de que uma criança teria se tornado uma mulher unicamente por ter tido um filho - ideia que atravessa inúmeras culturas e povos pelo mundo - foi sendo deixada de lado na aldeia, e outros pontos passaram a ser mais relevantes para a compreensão do que, de fato, é ser uma mulher.

Ainda sobre questões de gênero, foi interessante observar como não fica restrito aos homens serem os “porta-vozes” da palavra divina. As duas rezas que participamos foram guiadas por mulheres, ainda que dentro dos rituais algumas diferenciações fossem feitas, como a separação entre homens e mulheres na Opy e no uso dos instrumentos dos cantos.

Além do que foi abordado acima, também é importante pontuar como se dá a relação com a natureza, como ela não é vista unicamente como uma fonte de recursos e, sim, como parte do que somos. Na realidade, nós como sua parte. É neste contexto que entendemos como a água pode não ser um produto, mas um ser vivo, parte de uma cultura viva; como a terra pode ser mais do que um espaço para produzir, mas um lar livre, um aglomerado de caminhos; e como o ar pode ser mais do rejeitos da produção, mas sim compostos de uma força vital.


Considerações finais

Uma vivência como a possibilitada pela disciplina nos permite questionar e refletir sobre infinitas coisas. Uma delas é a possibilidade de rever o nosso modo de vida. Imergir em uma cultura contra hegemônica abre os nossos olhos para todas as doenças que uma vida urbana inserida no modelo capitalista e pautado na produção causam.

Observar toda a resistência dos povos indígenas, também, me lembrou o poder da luta. São as comunidades tradicionais no Brasil que ainda mantêm as nossas florestas e matas em pé. A aldeia Rio Silveiras, por exemplo, desempenha um papel fundamental na proteção da flora e fauna da região do Parque Estadual Serra do Mar.

É dever do nosso Estado proteger essas comunidades, formulando e implementando políticas públicas que garantam seus direitos. Precisamos ter sempre isso em mente, principalmente na hora de eleger os nossos representantes. Tendo como exemplo 2022, apenas 5 dos 513 deputados eleitos no Brasil se autodeclararam indígenas (FARIAS. 2022).

Portanto, é urgente que olhemos para as populações tradicionais no Brasil. Temos muito a aprender com elas para melhorar a nossa sociedade e o nosso modo de vida. Estamos caminhando sem rumo e o nosso planeta tem pedido socorro. Enquanto não considerarmos a relevância dos saberes ancestrais na construção de políticas públicas e do próprio Estado, seguiremos nutrindo o racismo ambiental que estrutura nossa sociedade.


Referências

FARIAS, Victor. Câmara terá 5 deputados indígenas, recorde histórico. G1, [S. l.], 4 out. 2002. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2022/eleicao-em-numeros/noticia/2022/10/04/camara-tera-5-deputados-indigenas-recorde-historico.ghtml. Acesso em: 29 nov. 2022.

Krenak, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Ed. 1. São Paulo. Companhia das Letras, 2019.

Machado, J. (2012, dezembro). Reflexões sobre o Tempo Social. Revista Temática Kairós Gerontologia,15(6), “Vulnerabilidade/Envelhecimento e Velhice: Aspectos Biopsicossociais”, pp. 11-22. Online ISSN 2176-901X. Print ISSN 1516-2567.

Sue, R. (1995). Temps et ordre social. Paris (France): Press Universitaires de France.