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Wikinativa/Júlia Stefano Finotti (vivência Guarani 2019 - relato de experiência)

Fonte: Wikiversidade

RELATO-EXPERIÊNCIA ALDEIA RIO SILVEIRAS-2019

Esse documento se refere ao relato da experiência vivida na Aldeia Guarani do Rio Silveiras, de 15 a 17 de novembro de 2019. Essa viagem fez parte da disciplina optativa Direitos Humanos e Multiculturalismo- Políticas Setoriais III, ministrada pelo professor Dr. Jorge Machado, na Escola de Artes ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo.

Embora a disciplina tenha oferecido a oportunidade de vivenciar uma série de eventos, como a presença de indígenas na universidade, a participação do fórum emergencial pela Amazônia, a vivência na aldeia Guarani no Pico do Jaraguá, dentre outras coisas, me restrinjo aqui a relatar a experiência da vivência na aldeia Rio Silveiras.

“Rirmos juntos é melhor do que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja uma língua anterior que fomos perdendo à medida que o mundo foi deixando de ser nosso.” Mia Couto.

Acredito que não há melhor forma de iniciar esse relatório do que tomar as palavras de Couto, como descrição do que, para mim, se resume a viagem de campo à aldeia Rio Silveiras. Um feriado com tantas horas de risada que me esqueci quase do que seria a desanimação. Tudo começou com nada menos do que 6 horas de viagem da USP Leste até Bertioga, onde aconteceu minha primeira experiência do brincar. Cada parada do ônibus era motivo para alguma brincadeira, distração, piada sobre o trajeto. Era como se o caminho estivesse nos preparando, nos dizendo para nos certificar que deixamos tudo para trás para então começar a vivência.

Não por acaso fui eu uma das responsáveis pelo grupo de trabalho “Brincadeiras e esportes”. Assim, é por meio das linguagens de um ser humano brincante que me proponho a escrever esse relatório, pois acredito que a brincadeira foi, em um primeiro momento, um elemento essencial da nossa interação e fortalecimento como grupo. Depois, fez parte da nossa interação com a aldeia.

Irei me atentar às experiências que me marcaram e, por isso, a integridade das atividades do nosso trabalho pode não ser abordada. Foram basicamente quatro os momentos que me geraram uma série de reflexões que irei levar, sem dúvida, para minha vida fora da academia. São elas (i) a chegada, (ii) a primeira noite na casa de reza, (iii) a cachoeira e (iv) o tempo de brincadeiras no sábado.

Foram poucos os momentos da minha vida em que pude pensar no tempo como algo moldável. Por ser moradora da metrópole São Paulo desde o berço, o tempo é pra mim algo tão rígido quanto os prédios e asfaltos. Depois de levar o dobro do tempo para chegar ao nosso destino, vi os planejamentos detalhados de um cronograma escorrerem pelos dedos. Sabia que as atividades do meu grupo já não iriam se realizar naquele momento, e então refleti: “Devo agora me ‘desenrijecer’, me desvincular do tempo que me molda e começar a moldá-lo”. Essa, pra mim, é a primeira liberdade. Liberdade essa que se deve ter ser levada ao ato do brincar.

A partir disso, após as arrumações de barracas e mantimentos, me propus a auxiliar o grupo da cozinha. Naquele lugar o sorriso reinava. O picar, cortar, descascar, medir, planejar, esquentar...tudo isso pra alimentar mais de 60 pessoas não é brincadeira. Mas dá pra fazer brincando também. Dá pra fazer rindo, olhando no olho, criando afetividade e sem deixar de ser uma coisa séria. Isto é, levar as coisas até suas últimas consequências, estar concentrado e tomar as responsabilidades. Essa seriedade do brincar esteve presente em outros três momentos muito específicos dessa viagem. As duas primeiras foram na oficina de Mandala - feita pelo grupo de Arte e Música - e na oficina de bilboquê. Nelas o manuseio das tesouras e a delicadeza dos movimentos foram realizadas de forma muito cuidadosa e, ao mesmo tempo, naturais pelas crianças, colocando em xeque nossa imensa obsessão de tratá-las com pequenos vasos de vidros.

O terceiro momento de seriedade no brincar foi na cachoeira, coincidindo com o segundo momento dessa viagem que mais me marcou. No sábado, após o café da manhã, nos direcionamos para o segundo núcleo da aldeia Rio Silveiras, onde conversamos com o Pajé e também pudemos conhecer o sistema de plantio realizado por eles, o qual consistia em uma linda agrofloresta. Um pouco mais a frente alcançamos um território vazio, mas que já havia abrigado a primeira aldeia Guarani daquela região. Isso significa que ali era um território sagrado e extremamente simbólico para os indígenas do rio Silveiras. Seguimos mais um pouco e alcançamos o rio onde pudemos descansar. Alguns participantes ficaram satisfeitos em se acomodar nas primeiras rochas da nossa parada, enquanto outros queriam se aventurar à montante.

Caminhar no contra fluxo de um rio daquela dimensão e vazão não é tão simples quanto pensa. Em toda a trilha e ali também na cachoeira fomos acompanhados de alguns meninos da aldeia que, quase sem perceber, nos indicavam os caminhos mais seguros. Se aventurar pelas rochas escorregadias e os fluxos heterogêneos das águas exigia equilíbrio e atenção, mas foi ali que a segunda liberdade para exercer o brincar foi entendida. Depois da liberdade de tempo tínhamos ali a liberdade de espaço. Com a quantidade certa de coragem e cuidado seria possível alcançar a maior queda da cachoeira. Mas essa ficou apenas no imaginário.

Ao voltar para nosso núcleo, por volta das 16h50 da tarde do sábado, estávamos exaustos, mas animados. Era hora de finalmente implementar as atividades planejadas pelo grupo de brincadeiras. A primeira delas, a “roda de apresentação” foi executada com muito sucesso. Uma grande roda foi feita com muitas crianças e adultos e cada um se apresentou a sua maneira.. Essa atividade gerou muita animação nas crianças que depois se dividiram entre a oficina de mandala e as brincadeiras de maior movimento corporal.

Como nada é perfeito, nossas intenções estruturadas das demais brincadeiras tiveram diversas falhas. Por muitas vezes tentamos adaptar as regras dos jogos como “rouba bandeira” ou “vivo ou morto”, etc. Nada funcionava, as crianças da aldeia não entendiam as nossas regras. Elas não entendiam as regras. E, de tanto repetir isso na minha cabeça veio a cair a ficha de que era isso mesmo. O que são as regras no processo criativo da brincadeira? Onde a regra cabe, onde não cabe? Tínhamos ali o perfeito território do brincar. Além da liberdade de tempo e de espaço, nos deparávamos naquele momento com a liberdade de criação. A combinação das três culminou em algumas horas de muita euforia e risadas. Não entendemos muito do que realmente estava dando certo ou errado, mas estávamos nos divertindo e rindo juntos. Aquela foi a nossa forma de resgatar novamente o mundo para nós.

Grupo brincadeiras e crianças na aldeia

De uma forma bem anacrônica chego ao final deste relatório descrevendo o quarto momento mais significativo para mim: a primeira noite na casa de reza. Essa aconteceu na sexta feira e foi muito especial, pois tivemos a oportunidade de sanar nossas dúvidas com o cacique Mariano. Acredito que foi ali que realmente me conectei com toda a proposta desta disciplina. Ainda com a cabeça na universidade e em minha linha de pesquisa do TCC, que tenta entender como se dá as percepções de risco ambiental em sociedades de pequena escala, direcionei minha pergunta ao cacique: “Eu consigo entender cada vez mais como a relação de vocês com a natureza quase não existe separação. Vocês conseguem perceber que o ambiente em que vocês vivem está mudando? Isso é visto como um risco?”.

Em um primeiro momento, ele me respondeu exatamente o que eu queria ouvir. “Sim, podemos ver que tem coisas perigosas entrando na aldeia, como substâncias tóxicas. Também estamos preocupados com as mudanças climáticas e, inclusive, irei me reunir com os companheiros no alto do ribeira para discutir isso amanhã. Estamos sempre nos encontrando para discutir essas situações.”.

Depois, ele se abriu e contou o que para eles era o mais perigoso. Nos disse que temem a perda da cultura. As crianças e os jovens quase não sabem sobre a cultura Guarani e, ao mesmo tempo, estão expostas às coisas na cidade. A cidade é um lugar que atrai, mas que apresentam muitos riscos. Representa a perda do tempo, do espaço e da segurança. A aldeia é onde os Guarani iniciam sua vivência no mundo. É a casa. E ali é o lugar seguro que eles gostariam que as crianças e os jovens soubessem que eles poderiam voltar e resgatar a cultura.

Quem faz Gestão Ambiental entende que as culturas tradicionais e originárias são tão importantes quanto os parâmetros físicos e biológicos ao se pensar em conservação do meio ambiente. Com essa resposta dada pelo cacique, eu comecei a prestar maior atenção nas relações que existiam entre adultos e crianças e, principalmente, prestei atenção em como as crianças se relacionavam com aquele território. Todos esses momentos que consegui ter uma relação harmoniosa com as crianças da aldeia, percebi que elas eram corajosas, atenciosas, animadas e extremamente inteligentes. Além disso, tinham o cuidado de uma comunidade inteira para garantir seu contato com a cultura Guarani e tinham a união de diferentes tipos de liberdade para exercer suas experiências como brincantes. Tempo, espaço e criatividade.

Mas gostaria de terminar este relato com uma questão pessoal. No domingo, antes de entrar no ônibus para iniciarmos nossa volta para São Paulo, estava eu com uma imensa alegria de ter experimentado um tipo de infância muito diferente da minha. Nesse momento, uma das meninas da aldeia veio até mim com um pedido muito especial. Era para que, quando eu voltasse, eu levasse para ela um kit de maquiagem, um vestido de princesa e uma Barbie. De todas as coisas que eu poderia dizer a ela eu perguntei: “Qual princesa, querida?” “Cinderela!”.

Foi um golpe certeiro para retornar à realidade e voltar para São Paulo. O entendimento de um dos riscos à cultura que o cacique havia alertado estaria ali, influenciando diretamente nas maneiras de se exercer a infância. Isso é bom ou ruim? É possível misturar as duas coisas? Ainda tenho muitas perguntas sem respostas por causa dessa viagem. E isso é uma coisa positiva.