Wikinativa/Karina de Moura Sousa (vivencia Guarani 2018 - relato de experiência)

Fonte: Wikiversidade

Introdução

A preparação para a nossa vivência na aldeia começou a ser construída em agosto e a cada aula a ansiedade e vontade de viver essa experiência aumentavam. As aulas teóricas serviram para nos conectarmos com a história real dos povos originários do Brasil e entender melhor toda a trajetória de luta desses. Senti que foi praticamente um exercício de empatia, para nos transportarmos ao lugar do outro que não conhecemos. A disciplina me chamou atenção desde meu primeiro ano de graduação e agora tive a oportunidade de realizá-la.

Vivência na comunidade guarani

Quando finalmente chegou o dia 11 de outubro, saímos da EACH por volta das 14h e depois de uma longa viagem chegamos quase às 19h, debaixo de chuva, na reserva indígena do Rio Silveiras. Fomos recebidos com muita hospitalidade pelo Pajé e toda comunidade e naquela noite fomos introduzidos a sua reza tradicional, além de alguns discursos de boas vindas. Depois partimos para a janta, o pessoal da cozinha/padaria caprichou na macarronada e na salada. Por conta da chuva, ficamos alojados na casa de reza e montamos apenas alguns colchões e sacos de dormir para passar a noite.

No dia seguinte, sexta-feira (12) de manhã, acordamos cedo para montarmos as barracas. Ainda tinha muita lama por conta da chuva e comecei a perceber que seria mais vantajoso andar descalça mesmo. Confesso que nunca tinha tido essa experiência e de início foi estranho e um pouco desconfortável, mas ao passar dos dias me acostumei. Depois todo grupo fez uma trilha até uma cachoeira linda, a qual passamos praticamente a manhã inteira. Apesar do tempo não ter colaborado, não tivemos medo da água gelada e aproveitamos o local.

Ao retornar, o cansaço e a fome nos atingiram. Eu e meus amigos descansamos um pouco na barraca, comemos algumas frutas para enganar a fome e dormimos. Acordamos com o aviso do almoço pronto e vimos já havia uma grande mobilização de pessoas na aldeia. Era um grupo de motoqueiros católicos, jornalistas e fotógrafos que haviam trago alguns brinquedos para as crianças (já que era dia 12 de outubro) e algumas doações de alimentos. Achei interessante observar esse contato e como eles agiam para com os índios, uma vez que essa questão religiosa e indígena tem uma data longa. Acompanhei também uma entrevista que o Pajé concedeu a um dos jornalistas, que o questionou sobre a presença da universidade e dos estudantes na aldeia. O Pajé respondeu que a aldeia é aberta a todos, e que por isso eles também estavam ali, frisando que a única coisa que eles não aceitam é alguém que venha ao seu território e queira mudá-lo (em relação a regras e costumes).

As atividades que foram programadas por alguns grupos começaram a ser executadas na parte a tarde, por exemplo, o lazer com as crianças, a contação de histórias e a padaria. Estava no grupo da criação da estufa e plantação de mudas, porém, devido a grande chuva do dia anterior, o local previsto estava alagado e não teríamos condições de começar nosso projeto naquele dia. Todavia, tive o prazer de participar ativamente brincadeira com as crianças, tivemos corrida de saco, cabo de guerra, futebol e ensinamos alguns jogos para elas também. Foi uma tarde maravilhosa e de grande interação, tanto com eles quanto com o grupo da EACH. A noite tivemos a parte da reza que desta vez contou com a presença ilustre, sendo duas lideranças indígenas de outras aldeias que conversaram conosco sobre a conjuntura política atual. Um tópico de extrema relevância, uma vez que estávamos em período de segundo turno e o candidato Jair Bolsonaro ameaçava a distribuição de terras indígenas.

No sábado (13) de manhã o sol surgiu e estávamos animados para o dia. Fizemos uma segunda trilha para outra cachoeira linda, que conseguimos aproveitar ainda mais por conta do tempo. Também tive a oportunidade de experimentar o rapé. Foi definitivamente uma experiência única e que só me trouxe bem-estar, paz, leveza e gratidão. A sensação que tive ali jamais vou esquecer. Na volta da cachoeira, eu e meu grupo de plantio acreditávamos que seria possível dar início ao projeto. Infelizmente, durante a tarde, a chuva voltou e não cessou até a noite, assim, novamente não conseguimos dar início ao que tínhamos planejado. Sabendo disso, aproveitei para participar da oficina de camisetas que aconteceu na casa de reza aquela tarde. Foi lindo, mulheres e crianças levaram algumas blusa para estampar e escrever algumas frases. As crianças em particular fizeram a festa com as tintas. Depois ajudamos a limpar a sujeira, pois logo começaria a reza. A noite tivemos mais algumas falas tanto dos indígenas, quanto dos estudantes e depois a exibição de um filme com direito a pipoca.

No domingo (14) de manhã ainda era possível observar resquícios da chuva que nos acompanhou durante toda a vivência e foi o dia que passou mais rápido. Acordamos para o café, arrumamos as barracas e as malas e o encerramento foi emocionante. Muitos agradecimentos por todas as partes e uma reza para nos proteger na estrada. Infelizmente meu grupo não conseguiu realizar o projeto da estufa e do plantio que havíamos planejado meses antes, contudo nosso planejamento não foi em vão e haverá uma nova data para o plantio. No fim, consegui de alguma forma participar das outras atividades previstas e foi uma experiência única.

Conclusão

Esses dias na aldeia me trouxeram uma força que não conhecia em mim. A força que vem da terra que somente ali você sente. Como estudante de Lazer e Turismo sei que viagens são renovadoras e que cada vez que viajamos nos conhecemos melhor, e ter essa convivência com certeza agregou e mudou minha visão sobre alguns tópicos dentro de mim. O melhor foi perceber que foram coisas tão simples que me trouxeram grandes reflexões, como por exemplo o andar descalço na lama. Aqui em São Paulo, na minha própria casa, só ando de chinelo. Além disso, quando começa uma garoa já abro o guarda-chuva com aquele medo de ficar doente. Na aldeia, não pensei em nada disso. Apenas me entreguei a experiência e com isso percebi que sou mais forte - principalmente de saúde - do que penso.

Outro ponto é a simplicidade em que vivem os indígenas e o sentimento de compartilhamento, de ser feito tudo para todos. A energia que nossos povos originários entregam para nós é algo que só sentimos lá, estar entre parentes e saber de suas forças é indescritível. Resistência é algo que eles fazem desde 1500 e quando disseram que “não é um candidato a presidente que vai acabar com a gente” foi algo que me tocou muito. O sentimento de medo na capital era visto e sentido por todos nós que somos contrários às ideias do então candidato. Entretanto, hoje, mesmo com a eleição dele, sei que estamos mais fortes e prontos para lutar juntos com nossos parentes e amigos na cidade ou na aldeia.

Como profissional da área do turismo e do lazer acredito no potencial do turismo comunitário para ajuda na manutenção da aldeia. Vivências como essa que tivemos com certeza têm o seu valor, tanto para transformações pessoais como para simples curiosos. Acredito também que até passeios de trilha de um dia só, para moradores locais e turistas, sejam viáveis. Ter a oportunidade de conhecer pessoas novas, da própria EACH, que não conhecia e nos conectarmos em prol de algo tão maior também é motivo de gratidão. “Aqui somos todos parentes” foi uma das primeiros frases que o Pajé nos disse quando chegamos e que com certeza foi concretizada durante toda essa vivência. Orgulho de conhecer meu lado xondara (guerreira) com tantas pessoas incríveis.