Wikinativa/Letícia Catarina de Jesus Santos (vivencia Guarani 2018 - relato de experiência)

Fonte: Wikiversidade

A vivência na Aldeia Rio Silveira ocorreu graças a disciplina optativa ACH3787 - Seminários de Políticas Públicas Setoriais VI, com foco na Cultura Indígena e ministrada pelo docente Jorge Machado e seus monitores. A disciplina contou com convidados nativos que trouxeram elementos de sua cultura como remédios e instrumentos, profissionais que têm contato constante e direto com os povos, diversos documentários sobre direito à terra e modo de viver, além de textos envolvendo aspectos acadêmicos, demarcação de terras, questões burocráticas e a luta que o povo indígena enfrenta diariamente.

A viagem iniciou na quinta-feira, dia 11/10 com uma chuva intensa, nos obrigando a se acomodar na casa de reza durante toda a noite. Já na reza, pude sentir um aconchego e uma hospitalidade diferente por parte do pajé e do cacique por meio de suas palavras e das canções nos dando as boas-vindas. Depois jantamos e dormimos na casa de reza, o que para mim, foi a primeira conexão real com a cultura que estávamos nos inserindo. Não era o mais confortável, mas já foi bonito sentir como se fossemos todos uma família de verdade, assim como as lideranças nos falaram. Pela manhã de sexta a Aldeia recebeu a visita de um grupo de evangélicos e fotógrafos, que doaram diversos brinquedos por ser dia das crianças, distribuíram bíblias, ajudaram na renda da aldeia comprando marmitas e artesanatos, contribuíram positivamente nesses aspectos. Entretanto, me pareceu uma forma de impor a religião deles na cultura indígena, pois além das bíblias distribuídas, ainda juntaram as pessoas para cantar hinos evangélicos e rezaram, como uma forma de buscar catequizar os índios, um total desrespeito a cultura tradicional que já tem suas próprias crenças estabelecidas. Foi perguntada a opinião do cacique sobre visitas que tentam convertê-los para outras religiões, o mesmo não concordava com tal atitude e disse que iria conversar com outras lideranças sobre o impacto desses grupos nas aldeias.

Após comer o tipá, comida tradicional, nós seguimos para a primeira cachoeira, onde machucamos os pés na pedra, entramos na água gelada, e nos conectamos não só como amigos, conversando e dando risadas, mas com a natureza principalmente, algo que infelizmente, raramente eu tenho a oportunidade de experienciar. Ao retornar da aldeia, almoçamos e houveram as atividades do grupo de lazer e brincadeiras com as crianças e os próprios alunos da disciplina, onde todos nós nos divertimos muito e eu pude ter um contato mais próximo com os habitantes da aldeia, principalmente as crianças, cheias de inocência e sorrisos sinceros. Após o café da tarde, iniciou-se a minha reza favorita. Nada entendo do guarani falado, porém a conversa sobre a situação política delicada que estávamos vivendo no momento encheu meu coração de ternura e esperança, pensando que poderemos sim resistir e não será um tirano que irá derrubar todo um povo tradicional e uma população que ainda tem amor no peito. Todas as canções e os discursos me deram um momento de paz, considerando que minha cabeça estava turbulenta e preocupada com o que estava por vir nos resultados das urnas. Após isso, ainda tive o privilégio de observar pela primeira vez na vida um céu totalmente estrelado, e fiquei tão perplexa e admirada com a beleza daquela cena, aquele foi o momento que eu percebi a calma em meio ao caos e como somos grandes, foi um momento de refletir tudo que a viagem significava.

Sábado a manhã acordou ensolarada depois de tanta chuva, tomamos café da manhã e seguimos direto para a próxima cachoeira, o Rio Silveira. No caminho, vimos diversas outras casas das mais variadas formas, alguns animais e a maior escola indígena do país, a Escola Estadual Indígena Txeru Ba' e' Kua I. Foi uma longa caminhada com muita lama, terra e no próprio rio, ali já foi possível sentir e aprender a se unir a natureza que estava enraizada em nós, entender que somos parte dela. Essa reflexão se deu em mim mais quando o professor nos apresentou o rapé, uma medicina tradicional do povo indígena. É uma sensação de profunda intensidade e nirvana ao mesmo tempo. Meus olhos lacrimejaram, eu agarrei forte na areia e comecei a ouvir o som da flauta e dos pássaros como se eles estivessem dentro de mim, observar as árvores e sentir a água do rio e o céu acima de mim. Depois houve um certo desconforto, pois o efeito não passava e nós tínhamos que ir embora e eu ainda queria ficar ali sentindo aquilo tudo. Definitivamente, uma das experiências mais memoráveis da vivência.

Ao fim da trilha, nos encontramos com o pajé que é responsável pela administração de todos os núcleos indígenas do Rio Silveira, o mesmo relatou os problemas que sofrem devido às ações do Estado, a falta de recursos da FUNAI e destacou a importância do respeito à cultura e costumes indígenas. A caminho de volta para a aldeia a chuva voltou, foi difícil sair da barraca e algumas atividades foram prejudicadas, como a de plantio de mudas e sementes devido ao local estar totalmente alagado. A atividade do meu grupo, de personalização de camisetas foi realizada dentro da casa de reza com cada participante trazendo o que queria customizar e nós fornecemos as tintas, carimbos e stencils. Apesar de a maioria do material que trouxemos ter sido doado sem querer e o tempo ter sido muito curto, a atividade foi realizada com sucesso e deu pra ver que os participantes adoraram e conseguiram fazer artes incríveis. Deixamos alguns materiais lá na própria aldeia, para que os índios possam continuar personalizando suas roupas, deixando um pedaço da disciplina ali.

Após as atividades, a ultima reza da viagem se iniciou, foi mais um momento emocionante e de muita conexão. Em nosso último dia, Nhanderu mandou apenas chuva para nós, o que nos impediu de realizar as atividades programas e tivemos que optar por ficar na casa de reza compartilhando experiências ou descansando dentro da barraca. Voltando pra São Paulo assistindo os pingos de chuva da janela, foi o momento de refletir a gratidão que eu sentia devido a todo aprendizado nos dias de viagem. Não foi apenas sair da sala de aula, foi adentrar em outra realidade que era possível imaginar como seria, mas só vivendo de verdade pra realmente entender o modo de vida, os costumes, a luta, os problemas enfrentados, as alegrias, a inocência, a sinceridade, a serenidade. Foi possível conhecer uma outra parte de nossa família, fazer novos amigos, mudar hábitos alimentares, esquecer do conforto e limpeza constante, se conectar com a natureza de forma jamais feita por mim antes. Resumidamente, o que sinto é gratidão por tudo.