Wikinativa/Lorena Moreno de Oliveira (vivencia Guarani 2018 - relato de experiência)

Fonte: Wikiversidade

Introdução

Através dos esforços de professores e alunos do campus Leste da Universidade de São Paulo foi criado um vínculo com as Aldeia Guarani Tekoa Pyau e a Aldeia Rio Silveiras, desse vínculo surgiu a disciplina ACH3787 - Seminários de Políticas Públicas Setoriais VI, que possibilita que os estudantes participem de uma imersão cultural nas Aldeias. Apesar da duração da vivência ser breve, proporciona uma outra perspectiva sobre a cultura indígena, uma perspectiva muito particular, que depende do contexto em que se desenvolve a vivência e da experiência do participante até aquele encontro.

Nesse sentido, vejo a necessidade de posicionar como o interesse por tal questão foi despertada em mim e qual era a visão que eu tinha sobre a cultura indígena antes de conhecê-la. Eu cresci em uma cidade pequena do Sul de Minas chamada Bueno Brandão, uma região que foi povoada majoritariamente por imigrantes europeus. Não existe nenhum resquício de povoamento indígena em Bueno Brandão, nem nas cidades vizinhas, os relatos que existem são de uma etnia que quando em contato com os primeiros colonizadores passaram a ter hábitos nômades e não foram mais vistos. Considerando esse contexto, o que eu conhecia e sabia sobre indígenas era o que era transmitido na televisão ou o que eu via em mídias sociais, meus pais e familiares também não tinham muito conhecimento sobre a cultura. Eu acreditava que os povos que viviam próximos das regiões mais populosas dos país tinham modificado seus hábitos e já não mantinham mais os meios de manutenção cultural de seus antepassados, se aproximando mais dos modos de vida dos colonizadores, e aqueles que viviam mais afastados ainda possuíam uma vivência mais próxima daquela anterior a colonização, mantinha um pensamento preconcebido de que os indígenas eram apenas mais uma parte da população que havia sido marginalizada, e apesar de ter curiosidade sobre sua cultura, não tive a oportunidade de conhecê-la, apenas depois que ingressei na Universidade, com 21 anos de idade. É curioso que em um país que era habitado apenas por esses povos, algumas regiões não tenham mais indícios de sua vivência e tenham pouco ou nenhum conhecimento sobre sua história.

Já na Universidade passei a compreender que a interação com pessoas de outra nacionalidade ou etnia pode ser um choque cultural que nos faz questionar nossa própria cultura, e é essencial para que possamos desconstruir aquilo que nos é passado e acaba por ser reproduzido. Passei a manifestar maior interesse por conhecer qualquer cultura com origens distintas da minha. No ano passado, quando soube da disciplina de Cultura Indígena, fiquei muito interessada, frequentei algumas aulas e pude compreender alguns aspectos do contexto que permeia os povos indígenas, além dessas aulas e palestras, outras disciplinas foram fundamentais para construção do meu conhecimento sobre os modos de vida de origens tribais. Em Abril desse ano tive a oportunidade de conhecer a Aldeia Rio Silveiras através de uma vivência organizada por alunos da EACH, foi uma experiência muito emocionante que abriu meus olhos para as problemáticas que eles estão expostos e sobre as particularidades da cultura Guarani, sua língua, as relações sociais, a forma como se alimentam, suas práticas de lazer e a religiosidade. O que me chamou mais atenção foi a relação que eles mantém com a natureza, como essa relação é orgânica e elementar para sua sobrevivência, foi perceptível sua visão sobre a posição humana em relação aos demais seres vivos, onde é notável que existe um respeito mútuo que rege essas relações e está muito vinculado a suas práticas religiosas. Por ter sido criada em um ambiente rural, desde criança criei uma conexão muito forte com a terra, as plantas e os animais, mas conforme fui crescendo percebi que os modos de vida mantidos pelos meus avós foram sendo modificados e não era transmitida a necessidade de manter aquilo que antes era essencial, essa relação de respeito. Novas tecnologias foram moldando a forma como vivemos e muita coisa se perdeu ao longo das gerações. Através do contato com a cultura Guarani pude perceber que existia uma intenção de passar os costumes que vinham de seus antepassados, e principalmente em preservar essa relação vitalícia entre o homem e os demais seres vivos, sem que houvesse uma quebra nessa relação, como aconteceu na sociedade moldada por costumes ocidentais, dividindo aquilo que representa o homem e o que foi criado por ele dos demais elementos que compõem a natureza. Outro ponto que chamou minha atenção, foi em relação a percepção do tempo, alguns dias na Aldeia fizeram com que eu passasse a seguir um ritmo natural, ao invés de me apegar as horas no relógio, pude perceber que as atividades cotidianas na Aldeia são ditadas por esse tempo natural e cíclico, de forma que os afazeres se desenvolvem conforme a necessidade e tudo acaba por acontecer em seu determinado tempo, sem a necessidade de uma programação regrada.

Essas percepções me fizeram refletir, pude perceber que me sentia muito energizada na Aldeia e que me identificava com essa relação que eles mantinham com a mata e os outros seres vivos, colaborando para que despertasse um interesse em conhecer mais cerca de sua história e de outras etnias. Pude entender melhor como a relação com os não indígenas afetou e afeta até hoje a sobrevivência da cultura Guarani e de outros povos, o que a princípio me causou uma certa angústia, mas depois vim a pensar sobre a importância de me fortalecer e me unir na luta pela sobrevivência desses povos.

Vivência na Aldeia Guarani Tekoa Pyau

Nos encontramos no terminal Lapa para pegar um ônibus municipal para o Jaraguá. O fato de estar pegando um ônibus como outro qualquer para uma comunidade indígena dentro da cidade de São Paulo era muito intrigante. Sinceramente, estava curiosa para saber como era a Aldeia, apesar de imaginar que a realidade era muito diferente daqui eu tinha visto em Bertioga. Infelizmente, quando chegamos no primeiro núcleo, pude constatar que o contexto era inviável para garantir a sobrevivência da comunidade de forma saudável, dificultando suas práticas culturais. A maioria das casas não tinha saneamento básico e o espaço era pequeno, próximo a uma grande rodovia, nas margens de uma estrada. A casa de reza não era muito grande. Foi possível ver que um dos poucos alimentos que produziam era o mel. O outro núcleo que visitamos e onde iríamos passar o dia tinha uma estrutura diferente, poucas casa, com uma forma de construção diferente das que vimos a princípio, ficava em um lugar com mata preservada e era um pouco mais afastado da estrada.

Começamos a ajudar no barreamento da casa de reza, foi uma atividade muito divertida, todos se sujaram, mas ninguém parecia se importar muito, estávamos empenhados em ajudar e finalizar a casa para fazer a primeira reza naquele dia, havia um espírito de colaboração e diversão, foi muito bom poder compartilhar aqueles momentos. Quando finalizada, estávamos todos felizes com o resultado.

A reza naquele dia foi marcante, as pessoas que tinham se esforçado para revitalizar aquele local onde estava sendo construído mais um núcleo estavam emocionadas, mesmo se tratando de um momento tão importante para a comunidade eles tiveram a preocupação de nos transmitir quão significativo era aquele dia. Eu não sei se consigo explicar em forma de texto como as palavras ditas naquela noite e tudo que foi compartilhado me afetaram, fiquei muito sensibilizada e emocionada com o que presenciei ali. Além de todo o rito religioso, foram colocadas questões políticas e históricas que são determinantes no contexto em que a comunidade e demais povos indígenas se encontram hoje.

Depois da reza, algumas pessoas se reuniram perto de uma fogueira, e o Tiago, um dos representantes da Aldeia, começou a contar histórias e lendas que fazem parte da mitologia Guarani, foi muito interessante poder ouvir aquelas histórias.

No dia seguinte, me levantei bem cedo, e pude ver alguns macaquinhos perto da cozinha, eles estavam pegando espigas de milho e bananas, quando o Pajé ficava segurando as bananas eles se aproximavam e pegavam da mão dele. Nesse momento, pude perceber que mesmo ali tão próximos da turbulência da cidade, eles conseguiam manter uma relação de respeito com os animais.

Almoçamos lá, a comida estava muito saborosa. Depois do almoço nos preparamos para ir embora, existia um sentimento de alegria de ter encontrado aquele refúgio em meio ao caos e o reconhecimento da importância de ter conhecido a luta dura que aquelas pessoas enfrentam para viver como Guaranis tão próximos do ambiente urbano.

Vivência na Aldeia Rio Silveiras

Todo o desenrolar da disciplina ao longo do semestre foi essencial para nos prepararmos para a vivência. Nos encaminhamos para Bertioga em um período bem delicado para o país, durante o decorrer das eleições presidenciais, eu particularmente, estava muito desgastada e abalada por conta do contexto.

Chegamos na Aldeia já era noite, estava chovendo um pouco, guardamos nossa bagagem e os materiais necessários para as atividades e fomos para a casa de reza, onde foram nos dadas as boas vindas com algumas falas, cantos e danças, voltar a sentir aquela energia já mudou a forma como eu estava me sentindo, como se fosse uma recarga. Quando saímos, o jantar já estava pronto, comemos e nos arrumamos para dormir na casa de reza por conta da chuva. Eu achei muito reconfortante termos dormido juntos na casa de reza, um lugar sagrado para os indígenas, que eles nos cederam de bom grado.

Acordamos na sexta, fomos tomar café, havia chipa, uma massa feita com farinha e água que depois é frita. O preparo da chipa é um momento de interação em que as mulheres nos ensinam como moldá-la, só o fato de poder ajudá-las com alguma coisa e aprender como preparar um alimento foi especial para mim. Era um dia lindo, nos preparamos para fazer uma trilha para uma cachoeira, no caminho passamos por outro núcleo da Reserva, próximo a cachoeira, compartilhar todo o trajeto e os momentos no rio com os colegas foi revigorante. De volta ao núcleo em que estávamos acampados, o almoça já nos esperava, depois de comer, começaram as brincadeiras com as crianças, elas estavam animadas em participar. Nessa mesma tarde chegou um grupo na Aldeia, a princípio não consegui entender muito bem o intuito da visita, vimos que eles estavam distribuindo presentes para as crianças, alguns brinquedos de baixo custo e doces, os indígenas dançaram e cantaram para os visitantes enquanto eram fotografados, no final do encontro o grupo começou a cantar algumas canções religiosas e foi possível notar que estavam ali na intenção de poder “ajudar” e transmitir um pouco da sua religião, mas a interação foi tão breve que não saberia dizer se eles conseguiram adquirir um pouco do que é passado pelos Guaranis, penso que se tivessem mais interessados em ter uma relação de troca, teriam ficado para a reza.

O tempo estava um pouco fechado, eu e meu grupo aproveitamos para resolver questões da atividade a ser realizada e nos preparar para a reza. Naquele dia, alguns representantes da Aldeia do Jaraguá tinham chegado para se encontrar com seus parentes do litoral, devido ao contexto político viram a necessidade de se reunir para falar com outras Aldeias sobre como seguir com a luta perante esse quadro. A reza nesse dia foi marcada por falas empoderadoras, fiquei emocionada por poder participar daquela reunião. Depois da reza, jantamos, e mais tarde nos reunimos em volta da fogueira para cantar algumas músicas e comer palmito assado que foi extraído na própria reserva.

No sábado acordamos, nos reunimos para o café e seguimos para a trilha pelo Rio Silveiras, como eu já conhecia a cachoeira, estava animada porque sabia que era um lugar que havia me marcado de forma muito positiva. No caminho para a cachoeira pude sentir a energia da mata, e até mesmo o encontro com uma cobra no caminho se tornou significativo. Pude explorar um pouco da cachoeira e ter alguns momentos de interação com os colegas, além de momentos de introspecção, aproveitando o contato com aquele lugar sagrado. O que acabou por intensificar ainda mais a experiência na cachoeira foi a aplicação do Rapé, senti paz e felicidade por poder estar presente naquele ambiente, poder sentir a água, o vento a energia da mata ao redor e perceber que meus amigos também estavam imersos naquela experiência. Na volta da trilha, nos encontramos com o Cacique e representante da Reserva, outro encontro essencial para a vivência, no qual ele pode nos falar sobre as problemáticas que envolvem a Aldeia e o funcionamento da Reserva.

Apesar do meu grupo de atividade ter tido alguns problemas com o que havia sido programado enquanto estávamos na cachoeira, eu estava muito tranquila, em outras circunstâncias, em outro ambiente, talvez tivesse lidado de forma muito diferente, minha reação a essas questões me surpreenderam.

De volta para o núcleo inicial, logo que chegamos começou a chover, depois de comer ficamos esperando a chuva passar, quando acabou começamos a convidar quem estava nas proximidades para a atividade das camisetas. Foi um momento de troca muito especial para mim, fiquei muito feliz a diversão de quem tinha participado.

Em seguida começaram os preparativos para a reza, para mim esse era um momento importante do dia, poder participar da dança, sentir o poder do canto fazia eu me sentir muito bem. Depois da reza, foram transmitidos alguns filmes e vídeos relacionados a questões indígenas, esse foi outro momento de interação divertido.

No domingo acordamos com a expectativa de ir para a praia, mas infelizmente a chuva nos desmotivou. Enquanto me preparava para ir embora, eu me sentia feliz por ter tido a oportunidade de compartilhar momentos de alegria e por ter aprendido um pouco mais, mas por outro lado triste por ter que voltar para a cidade. Nos encontramos pela última vez na casa de reza, onde algumas falas puderam afirmar o que se via nas pessoas, a alegria em ter participado daquele encontro e a importância dessa relação para ambos os lados. Agradecemos, nos despedimos e partimos de volta para “casa”.

Considerações Finais

Sinto que as experiências vividas na Aldeia Rio Silveiras e na Aldeia Tekoa Pyau foram essenciais para me trazer outra perspectiva de vida. Através das vivências pude sentir a importância que esse contato tem na construção do meu posicionamento como indivíduo, por me permitir ver outras formas de me relacionar com outras pessoas e seres vivos.

Colaborou para que eu tivesse outra percepção sobre minha relação com o todo, ajudando a enxergar as infinitas conexões que permeiam nossas vidas, me mostrando mais uma vez que eu não estou sozinha e a importância de zelar pelos meus semelhantes, só confirmando que não é possível me colocar apenas de forma passiva em relação ao que acontece a minha volta. Aquilo que afeta outros, também me afeta. De forma que demonstra a importância de me comprometer com lutas como a dos povos originários.

Pude perceber como a situação desses povos é vulnerável e cada vez mais ameaçada. Me entristece constatar que nem sempre a interação com quem não é indígena pode ser positiva, e que nem todos tem a consciência de quão enriquecedora pode ser essa relação. Também consegui identificar em alguns aspectos como o contato com o nosso modo de vida modificou hábitos dos indígenas, as práticas que eles mantinham para se alimentar e os usos dos conhecimentos de plantas medicinais, por exemplo, que corre o risco de ir se perdendo aos poucos.

Momentos como os vividos na casa de reza foram muito significativos para mim, pude perceber como me sinto energizada e como me identifico com práticas como as realizadas pelos Guaranis, fortalecendo minha conexão com a minha fé.

Vejo que assim como essa experiência me abalou, pode ter impactos muito positivos em outras pessoas, capaz de desconstruir preconceitos e de ajudar a repensar alguns costumes que nos foram passados.

Mesmo passando por um momento delicado emocionalmente, sinto que voltei das duas vivências uma pessoa mais fortalecida e mais motivada a me engajar na luta por causas que eu acredito.

Pude fortalecer minha conexão com o que está a minha volta e de certa forma, comigo mesma. Sou muito grata a todos que colaboram nesse aprendizado.