Wikinativa/Magda Nascimento (vivencia Guarani 2016 - relato de experiência)

Fonte: Wikiversidade

Introdução[editar | editar código-fonte]

A disciplina de graduação Seminários de Políticas Públicas II – Multiculturalismo e Direitos, oferecida pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), tem como objetivo realizar um intercâmbio cultural entre os estudantes  e o povo indígena Guarani localizado na Aldeia Rio Silveiras, município litorâneo de Bertioga (SP). Além disso, e principalmente, busca promover a reflexão crítica acerca da realidade dos povos indígenas brasileiros e sua luta pelo reconhecimento social e por políticas públicas que respeitem o seu modo de viver. Por meio de leituras e discussões prévias acerca dos povos indígenas e do multiculturalismo e, especialmente, da imersão de quatro dias na Aldeia Rio Silveiras, a disciplina cumpriu com os seus objetivos. 

Reflexões e preparação em sala de aula[editar | editar código-fonte]

As leituras indicadas pelo professor doutor Jorge Machado foram um importante ponto de partida para as reflexões acerca do conceito de multiculturalismo e direitos dos povos indígenas. Além disso, os documentários assistidos em sala de aula complementaram as discussões e ampliaram a imagem formada acerca da questão e deram embasamento às problematizações feitas – uma vez que traziam à turma diferentes temas.

Outra importante atividade realizada antes da imersão foi a visita à Aldeia Guarani Tenondé Porã, localizada no Pico do Jaraguá, em São Paulo. Por meio deste primeiro contato com o povo Guarani e suas lutas sociais e políticas, a turma pode levantar discussões a respeito da vida dos indígenas em grandes metrópoles, suas reivindicações, e, também, como se preparar para a imersão na aldeia localizada no litoral.

As aulas que antecederam imediatamente à imersão, por sua vez, foram de preparação da agenda e de programação das atividades dentro da Aldeia Rio Silveiras. A turma subdividiu-se em grupos que programaram atividades sobre os temas: “Compreender a mulher indígena”, “Artes”, “Esportes e Gincana”, “Agroecologia e Bioconstrução”, “Cultura e História Guarani”, “Intervenções Culturais” e “Esportes e Lazer”, além de “Arrecadação/Organização” e “Infraestrutura/Pós-evento”. 

Impressões sobre a imersão na Aldeia Guarani Rio Silveiras - 1º dia[editar | editar código-fonte]

Em 28 de outubro de 2016, sexta-feira, por volta das 10:30 horas da manhã, a turma da disciplina (cerca de sessenta pessoas), partiu do campus da EACH-USP rumo à Aldeia Rio Silveiras, no município de Bertioga, litoral de São Paulo. Como combinado anteriormente, os estudantes deveriam encontrar-se na Escola cerca de uma hora e meia antes, para acomodar as bagagens, itens para doação e divisão do grupo no ônibus, na van e nos dois carros que partiriam.

As primeiras impressões revelam um grupo unido e animado com a viagem que começava. Relembrando as discussões realizadas nas aulas, aquele grupo parecia homogêneo em seu conhecimento acerca daquela aldeia e preocupado em não impactar negativamente na rotina do grupo indígena que gentilmente cedeu uma parte de suas terras para visitação e acampamento por quatro dias e três noites.

A chegada à Aldeia Rio Silveiras ocorreu por volta de 13:10 horas da tarde. O céu estava nublado e a estrada arenosa estava molhada e tinha muitos obstáculos – fato que dificultou a chegada do ônibus da universidade. O desembarque dos estudantes ocorreu de forma rápida, silenciosa (para um grupo daquele tamanho) e, pelo que percebi, com uma leve timidez. Alguns indígenas, de todas as idades, mas especialmente crianças e adolescentes, aproximaram-se do grupo e nos lançava olhares de curiosidade e gentileza. Como uma impressão profundamente pessoal, senti certo desconforto e timidez ao chegar ao local.  Isso porque a visão do ônibus repleto de bagagens na entrada da reserva, um local de natureza preservada e moradia de um grupo que precisa apenas dela para viver, sugeriu-me um sentimento de invasão – em que pese os indígenas nos ter gentilmente convidado e autorizado a estar ali.

Ao desembarcarmos todos, dirigimo-nos ao local das acomodações em que ocuparíamos nos próximos dias para a montagem das barracas e acomodação dos pertences. Essa primeira atividade durou cerca de trinta minutos, e logo o grupo estava preparado para dar início às atividades previstas em nossa agenda. 

O almoço do primeiro dia de imersão[editar | editar código-fonte]

Como participante do grupo de preparação do primeiro almoço da imersão, fui aconselhada a dirigir-me à cozinha da Aldeia, juntamente com mais quatro estudantes. Durante a elaboração da agenda para a imersão, foi combinado que os almoços e jantares seriam preparados entre os estudantes sob a supervisão de mulheres indígenas, posto que o grupo faria as mesmas refeições que os locais. No entanto, durante a preparação daquele primeiro almoço, as estudantes mais observaram que participaram do cozimento dos alimentos.

Inicialmente, acompanhei duas indígenas na condução de panelas, bacias e conchas do local onde nos acomodamos até a cozinha, que se localizava a poucos metros dali. O ambiente possuía um formato ovalar e contava com uma geladeira, um fogão à gás, uma mesa de madeira e uma pia com água encanada.  Não contava com portas ou janelas, mas com grandes entradas, o que proporcionava boa iluminação. Naquele mesmo espaço estava o banheiro – que contava com chuveiro elétrico e vaso sanitário.

Embora soubesse que o senso de comunidade entre os indígenas é um valor muito importante, não me dei conta que, uma vez instalada naquelas terras, poderia estar inclusa naquele sistema. Tanto assim foi que, mesmo sem nos cumprimentarmos direito, especialmente pela minha timidez inicial e de uma reserva muito peculiar de duas indígenas, ambas disseram-me para lavar a louça que sobrara da refeição anterior. A partir deste momento percebi o quanto esse senso de comunidade e de força de trabalho conjunta é importante para que todo o resto funcione. Uma vez lavada toda a louça é que seria iniciado o processo de cozimento do arroz, do feijão e da linguiça. 

Observações sobre as atividades com as crianças[editar | editar código-fonte]

A primeira atividade realizada ocorreu sob a orientação do grupo “Esportes e Gincanas” e tinha como alvo as crianças e adolescentes. A atividade deste grupo, que optou pela brincadeira de pula cordas coletiva, serviu de aproximação entre nós, universitários, e os indígenas, eliminando qualquer estresse e construindo uma relação bem humorada e de confiança. Além disso, a brincadeira inicial foi interessante, pois nos permitiu observar como as crianças se relacionam entre si e com os não índios.  

Diante daquela situação, algumas cenas são dignas de nota. A primeira delas diz respeito ao comportamento das crianças: como nos haviam dito antes, as crianças são calmas e não falam alto. Aliás, ninguém daquela aldeia sente a necessidade de dirigir-se ao outro aumentando o tom de voz. As crianças, pelo que se pode inferir, crescem nesse ambiente e, da mesma forma, não sentem essa necessidade. Portanto, a brincadeira – e todas as outras atividades – foi marcada por dois contrastes (e que, particularmente, causaram um incômodo): os “donos da casa” se dirigindo ao grupo da USP e entre si em tons de voz muito baixos e serenos e, por outro lado, nós, os visitantes, falando muito alto e em alguns casos, gritando. É importante ressaltar que os indígenas nos alertaram algumas vezes sobre o nosso tom de voz, no entanto naquele primeiro momento da brincadeira, não houve qualquer reclamação direcionada ao grupo universitário.

Outra observação a respeito da primeira atividade diz respeito ao comportamento das crianças em relação à competição. A brincadeira de pula cordas coletiva consistia numa competição em que o último que conseguisse realizar mais movimentos ao pular, vencia. Participou da brincadeira as crianças indígenas e alguns estudantes da USP. Neste caso, foi possível observar que as crianças menores, entre 4 e 6 anos, divertiam-se e riam da brincadeira, mesmo que não conseguissem chegar até o final. No entanto, as crianças maiores, entre 10 e 12 anos, assumiram uma postura competitiva séria naquela brincadeira.

Para esta observação duas notas são importantes: a primeira é que a maioria das crianças que participavam da brincadeira era do sexo masculino. O grupo de crianças menores era equilibrado, no entanto, o grupo de crianças maiores era composto predominantemente por garotos. A segunda é que, como explicado pelo pajé, o povo Guarani mantém na sua cultura demográfica duas faixas etárias: os indígenas são considerados crianças até os 12 anos, para pessoas do sexo masculino, e até a primeira menstruação, para pessoas do sexo feminino. Passada esta idade, são considerados adultos e passam a ter responsabilidades condizentes com a sua condição de adultos – além de participarem de rituais religiosos, as meninas devem ficar reclusas e aprender com outras mulheres algumas atividades e os rapazes a mesma coisa, porém não ficam reclusos. Talvez por esse motivo, durante a brincadeira foram vistas poucas garotas (e por isso a predominância de garotos) e, também, a postura competitiva dos meninos maiores. 

Fala de boas-vindas[editar | editar código-fonte]

A fala de boas-vindas do cacique ocorreu após as primeiras brincadeiras e antes da pausa para o almoço. Foi uma fala breve, mas profunda e gentil. Ouvi-lo dizer que éramos bem-vindos em suas terras e que poderíamos, sim, trocar ideias, foi muito empolgante. Os próximos dias seriam de animação e aprendizado. 

Caminhada e banho de rio[editar | editar código-fonte]

Por volta das 17:30 horas, após o almoço e muita conversa entre os estudantes e os indígenas, fomos acompanhados até o rio que corta a reserva, para o banho. A distância era de cerca de 2 km e o grupo levou aproximadamente 30 minutos para chegar até o local. O céu continuava nublado e a estrada para o rio contava com vários obstáculos e estava muito molhada. A condução até o local foi feita por dois indígenas mais monitores da disciplina que conhecem a região. Foi uma caminhada descontraída e cheia de belas paisagens. Para alguém que saiu da cidade de São Paulo, poluída e pouco arborizada, aquela visão era totalmente nova.

Ao chegarmos ao rio, outra novidade: suas águas límpidas e calmas, ótimas para um bom banho. Todos do grupo ficaram encantados e curtiram muito o banho. No entanto, após a volta do banho de rio e por algum motivo pessoal, alguns decidiram valer-se do cômodo chuveiro elétrico instalado na cozinha. 

Casa de reza e conversa sobre questões indígenas[editar | editar código-fonte]

O final do dia foi marcado por uma conversa com o cacique sobre o modo de vida indígena, suas lutas políticas e sociais – todos temas que se complementam dentro de sua realidade. A conversa ocorreu dentro da casa de reza, local sagrado para os Guaranis e cuja autorização para adentrar nos foi gentilmente concedida.

Inicialmente, os indígenas realizaram uma cerimônia religiosa integralmente em sua língua-mãe. A cerimônia consistia numa fala e reza do pajé, além de cantorias ao som de violão e uma espécie de maraca. Na medida em que o pajé ou outro membro presente fazia alguma afirmação (algo como um agradecimento, um pedido ou uma motivação), todos os demais proferiam uma palavra de ratificação (semelhante ao Amém da Igreja Cristã). Durante o ritual, alguns presentes fumavam tabaco num cachimbo de madeira de tamanho grande. A casa de reza estava iluminada à luz de velas e somente a parte da frente, espécie de altar, era iluminada.

Em seguida, foi dado início à conversa. Como citado anteriormente, o modo de vida dos indígenas e suas lutas políticas e sociais estão profundamente relacionados. Historicamente marginalizados, os indígenas brasileiros sofrem ainda hoje uma série de preconceitos e veem suas tradições se perderem ao longo do tempo, ocasionados por interesses capitalistas e poder. De acordo com [LIDERANÇA INDÍGENA], os indígenas necessitam somente da terra para viver – é dela que extraem tudo o que precisam. O modo de vida capitalista, marcado pelo consumismo e excesso de bens materiais, não condiz com o que acreditam os indígenas Guaranis. O fato de ocuparem terras que, neste mundo capitalista, dariam lugar para extrações, desmatamento e construções, faz com que a luta desse povo seja ainda difícil de ser enfrentada. Resistindo numa época tão difícil, cheio de jogos de interesse e poder, esse povo transmite aos não índios o porquê de sua luta para que possam se fortalecer. 

Impressões sobre a imersão na Aldeia Guarani Rio Silveiras - 2º dia[editar | editar código-fonte]

Café da manhã e preparação para trilha[editar | editar código-fonte]

No dia seguinte, sábado, por volta de 6:00 horas da manhã, ouvimos uma voz masculina – que poderia ser de algum indígena ou mesmo do professor – convidando os estudantes a acordarem e irem para o café da manhã. As opções de café eram: pão francês recheado com manteiga, queijo ou mortadela; um pão preparado por duas mulheres indígenas, feito com farinha de trigo, sal e água e frito no óleo de soja; café preto (com bastante açúcar); e suco de fruta.

Em seguida, o professor nos orientou a nos prepararmos para a trilha, que nos levaria à cachoeira – tão desejada por todos. Por isso, alguns (como eu) prepararam-se para uma caminhada intensa, na mata fechada e num dia de calor (o sol àquela hora estava forte). Calça, blusa de manga comprida, botas, chapéu, protetor solar, repelente e água. Foi tudo que precisei para encarar aquela aventura. Sobre essa quantidade de materiais para sentir-me preparada para a trilha: percebi que eu, como alguém que cresceu na cidade grande, longe da natureza, não sou um ser exatamente natural. Mas esta observação continua no próximo item. 

A trilha - observações sobre os indígenas[editar | editar código-fonte]

A estrada para a trilha era a mesma que havíamos caminhado no dia anterior para o banho de rio. Embora o dia tivesse amanhecido ensolarado, a areia continuava úmida e cheia de partes alagadas. Na medida em que avançávamos em direção ao objetivo final – a cachoeira – a mata ficava mais e mais densa.

Antes, porém, que a trilha de mata fechada começasse, chegamos a um ponto formidável do rio, de águas calmas, limpas e com uma beira de areia. Todos pararam, alguns para tomar banho e refrescar-se, outros apenas para observar e fotografar.

Alguns minutos depois a trilha começava oficialmente. O percurso demandava que andássemos em fila, em que o pajé nos iria guiando na frente (com um facão em mãos), quatro garotos indígenas no meio e os monitores do curso ao final. Daquele ponto em diante a mata fechada escurecia todo o trajeto, cheio de obstáculos de lama, galhos, e uma inclinação – que por vezes nos deixava um pouco mais fatigados.

Sobre a trilha, volto a duas observações já realizadas anteriormente. A primeira delas é aquela sobre os tons de voz. Fazer trilha em mata fechada exige voz baixa e silêncio, segundo um dos garotos indígenas com quem conversei, uma vez que os animais podem se assustar. Todavia, ainda que tivessem sido instruídos a fazer silêncio, a turma da USP gritava no meio da mata fechada sempre que passasse por obstáculos – que eram muitos. Deu para notar, então, a completa inexperiência por parte de alguns universitários. Neste momento, os indígenas solicitaram firmemente para que o grupo fizesse silêncio, mas não adiantou.

A segunda observação é relativa às minhas reflexões acerca da condição de ser humano não natural. Isso porque observar aqueles indígenas (especialmente os garotos) adentrando a mata, rolando pelo chão, escondendo-se em meio às plantas (para em seguida nos dar sustos), subindo em árvores, etc., me remeteu a compará-los comigo, que carregava vários materiais e nem sequer se arriscava a colocar as mãos em algumas plantas. Diante desta observação, dei-me conta de que crescer no ambiente das cidades, totalmente artificial, nos torna menos naturais. Além disso, notei que os indígenas são admiravelmente incorporados à natureza e por isso sua luta por terras, pois esta faz parte da sua vida na mais pura significação. A sua luta é por vida.

Com tantos obstáculos, o grupo foi-se afastando. Quem estava na frente (incluindo eu), junto com o pajé, chegou a um ponto alto e ficou esperando o grupo de trás aproximar-se. No entanto, vários minutos se passaram e ninguém apareceu. Depois de tanto esperar, nos demos conta que os outros estavam perdidos. O pajé, a essa altura bastante aflito, foi à procura do restante. Depois de silêncio e comunicações entre os indígenas, por meio de assovios e sons com a boca, o grupo perdido encontrou o caminho correto. Porém, o pajé “abortou” o passeio ali, e não fomos até a cachoeira. Voltamos para o acampamento. 

Atividade de pintura com as crianças indígenas[editar | editar código-fonte]

Ao voltarmos para o local do acampamento, alguns foram ao banho de chuveiro elétrico e depois todos foram almoçar. Comemos arroz, feijão, salada de cenoura e beterraba e peixe. O dia estava abafado, porém havia no céu uma nuvem de chuva quase assustadora.

Cerca de uma hora depois (o relógio marcava aproximadamente 15:00 horas), mais atividades estavam programadas. Houve música, pintura corporal com jenipapo, arco e flecha... Entre elas uma atividade com as crianças: desta vez pintura de desenhos com tinta guache e exposição dos seus trabalhos. O grupo do tema “Intervenções artísticas”, do qual fazia parte, levou materiais de pintura (papéis, tintas, pincéis, lápis, barbante) para aproximação com as crianças e o entendimento de sua infância por meio do desenho livre.

As crianças tinham entre 3 e 13 anos e todas estavam muito participativas. Sentaram, desenharam diversas figuras, todas com temática da natureza (exceto um desenho de palhaço) e em seguida nos entregaram para pendurar no fio de barbante a sua obra. Depois desenharam mais, até cansarem da brincadeira. Elas carinhosamente pediam tintas coloridas, pincéis e papéis e desenhavam ali no chão, livremente. Não havia problema com borrões ou sujeiras: algumas passavam tintas nas mãozinhas e carimbavam no papel, depois as limpavam nas roupas e cabelos. Ao final da atividade estávamos todos coloridos de tinta guache. 

Cerimônia de purificação[editar | editar código-fonte]

Um pouco antes de o jantar sair, o professor Jorge Machado se aproximou de mim e informou que o pajé realizaria dali a poucos minutos, na casa de reza, uma cerimônia de purificação. Gentilmente perguntou se eu tinha interesse em participar, e disse que era algo realmente especial. Aceitei o convite, sem saber exatamente com seria o processo.

Após nos saciarmos com sopa de macarrão com feijão e café preto, a chuva que ameaçou cair durante toda a tarde, caiu. Os indígenas estavam em meio ao seu ritual dentro da casa de reza, até que nos autorizaram a adentrar o recinto. Dali a pouco, dariam início à cerimônia.

Adentramos na casa de reza e o ritual inicial foi parecido com o do dia anterior: cantoria ao som de violão, palavras de afirmação (na língua indígena), fumaça de tabaco, luz de duas velas. Antes porém da música, o pajé realizava a purificação de uma indígena, que se encontrava despida da cintura para cima. A chuva lá fora estava apertada, e por isso, tudo o que acontecia lá dentro mais o som da chuva forte, causava uma sensação de mistério.

Depois deste primeiro momento, alguns indígenas enfileiraram seis cadeiras em frente ao altar da casa de reza. O professor Jorge Machado gentilmente convidou aqueles com quem havia conversado antes e que aceitaram participar da cerimônia de purificação, para ocuparem uma das cadeiras dispostas. Eu era uma das seis pessoas.

Particularmente, procurei observar a cerimônia de purificação com um olhar mais “científico” do que exatamente religioso. Apesar disso, é inegável o bem estar emocional que aquele rito causou. Uma sensação mesmo de relaxamento, animação e bom humor. Imbuída de tão profundo bem estar, não sei se foi possível registrar esta cerimônia de maneira completamente racional. No entanto, a seguir o relato da cerimônia.

Participaram da cerimônia quatro pessoas do sexo feminino e duas do sexo masculino, incluindo o professor. O pajé instruiu que retirássemos as blusas e sutiãs (para aquelas que usam) – e, percebendo a minha manifestação de timidez, o pajé disse que ficar nu (ou seminu naquele caso) era normal na sua cultura, que não há qualquer malícia neste ato e, por isso, poderíamos nos tranquilizar.  Em seguida todos os seis deram as mãos.

Após algumas falas e rezas, ao som de violão, o pajé realizou algumas ações com cada um de nós seis. Ele repetia os movimentos em cada um e depois passava para o próximo gesto. Primeiro, apertou nossas mãos, que estavam dadas com a da pessoa ao lado. Em seguida, fez uma breve massagem com as duas mãos, uma nas costas e a outra na região do coração (essa massagem, para mim, foi especialmente relaxante). Depois, fumou o cachimbo de tabaco, soprou a fumaça por todo o nosso corpo e cuspiu no chão. Continuando, soprou a fumaça do cachimbo em nossas testas e passou o dedo polegar sobre o local. Enquanto realizava esses movimentos, o pajé proferia palavras em guarani. Por fim, pegou cada um pela mão, nos conduziu ao altar e colocou nossas duas mãos num artefato religioso preso ali. Em seguida nos instruía a dizer uma palavra religiosa em guarani.

A cerimônia foi finalizada e, após vestirmos as blusas, todos os presentes foram convidados a dançar e cantar com os indígenas. Após a cantoria, os participantes da cerimônia de purificação foram convidados a relatar brevemente a experiência. No geral, fizemos agradecimentos – não era possível descrever o sentimento. 

Considerações finais[editar | editar código-fonte]

Sendo este o meu relato sobre a imersão na Aldeia Rio Silveiras, concluo que aquela foi uma experiência nova e de grande importância. Como estudante de Gestão de Políticas Públicas, aprendi na prática que só é possível compreender as pautas de luta da população quando se conhece a realidade vivida por ela. A realidade dos indígenas brasileiros deve ser conhecida e compreendida para que os efeitos de 516 anos de discriminação sejam cessados e suas vidas respeitadas, por meio de políticas públicas sensíveis ao seu modo de vida.

Além disso, a imersão me permitiu conhecer uma realidade cultural oposta ao que se vê na cidade grande: percepção não utilitarista dos recursos naturais, senso de comunidade, relações interpessoais permeadas por igualdade entre as partes. Tudo isso mostra o quão distantes estamos e quanto nós, pessoas da cidade, temos a aprender com grupos indígenas.