Wikinativa/Maria Luiza Padilha (vivencia Guarani 2022 - SMD - relato de experiência)

Fonte: Wikiversidade

Introdução

A Disciplina “Seminários de Políticas Públicas Setoriais II” teve por objetivo estudar os direitos dos povos indígenas e suas práticas tradicionais, por meio de uma pesquisa de campo com imersão na cultura do povo originário Guarani, onde foi realizada uma viagem à Reserva indígena Guarani Rio Silveiras, em Bertioga entre os dias 04 e 06 de novembro de 2022. Para tanto, buscou-se, com apoio das aulas teóricas e da viagem, compreender o modo de vida, a cultura e as tradições do povo Guarani, através de uma experiencia subjetiva e individual, bem como coletiva, de vivência, compartilhamento e observação participante.

Vivência

A Reserva Indígena Rio Silveira está localizada na divisa do município de Bertioga e São Sebastião do Estado de São Paulo, seus integrantes são da etnia Tupi-Guarani, mas estes seguem, predominantemente, a cultura Guarani. Toda a população da reserva se comunica em Guarani e português, desde os mais velhos até às crianças. O grupo que nos recebeu era relativamente pequeno ao que imaginei, todos receptivos e bem observadores. Ao chegarmos na Aldeia já era noite e o acampamento possuía pouca iluminação, a noite estava fria e úmida devido à chuva dos últimos dias. De acordo com a filha do Pajé, que nos recebeu na casa de Reza, estávamos no núcleo principal, o chamado Núcleo da Porteira, onde foi possível observar muita mata envolta. Logo após nos instalarmos, fomos para a casa de Reza onde conhecemos a filha do Pajé, Jucimara, que respondeu diversas questões e dúvidas com relação a cultura, política e desafios enfrentados ali no território. Foram apresentados também naquela noite os guerreiros que cuidaram da segurança enquanto estávamos ali. Após essa primeira interação, jantamos todos juntos um cardápio vegano: macarrão com molho e lentilha, abóbora-moranga e brócolis. Como a noite estava fria, nos reunimos e jantamos em volta da fogueira junto com algumas pessoas da comunidade.


Logo pela manhã o dia começou cedo, o contato com às crianças era constante, o que tornou evidente algo que eu sempre ouvi sobre a educação das crianças indígenas ser compartilhada por todos os moradores da Aldeia, isto porque as crianças eram afetuosas e abertas, mostrando o quanto essa criação e laço era compartilhado de forma livre no território. O café da manhã foi uma das partes mais importantes e agradáveis do dia, isto porque comemos todos juntos, havia frutas (banana e melancia), “Tipa” uma comida típica deles que se assemelha a uma massa frita, pasta de amendoim, patês, café, chá, entre outros.

Quase que seguidamente ao café, deu-se início às atividades do grupo da recreação com às crianças, onde utilizamos bambolês para brincadeiras individuais e coletivas diversas, corda para pular junto a cantigas populares e bola para futebol e vôlei. Essa primeira atividade durou cerca de uma hora enquanto aguardávamos as instruções para a trilha. Assim que finalizamos a primeira rodada de recreação, seguimos para a trilha da cachoeira, onde andamos um pouco pela região, sendo possível observar os arredores, os moradores, a escola onde às crianças indígenas aprendem sobre sua própria cultura e às demais disciplinas da grade comum curricular. As crianças da Aldeia são educadas por, em sua maioria, professores indígenas também (como a própria filha do Pajé). A caminho da trilha foi possível também observar casas de tijolos em meio às estradas de barro. Logo ao entrarmos na trilha, andamos mais de uma hora e atravessamos o Rio Silveira para chegar à cachoeira. A cachoeira foi um espaço incrível onde pudemos nos conectar com a natureza, e além disso, houve um trabalho em grupo excepcional entre os integrantes, onde todos se ajudaram nos desafios físicos da ultrapassagem na trilha e da cachoeira, ninguém ficou para trás em nenhum momento. Logo ao final foi avisado que haveria aplicação de rapé para aqueles que desejassem. O Rapé é um composto natural considerado medicina sagrada para os indígenas e tem como benefício a cura e o bem-estar, bem como proporciona uma conexão espiritual. Fiquei observando a dinâmica e em seguida busquei entender com quem havia experienciado. Segundo alguns, a sensação era de vibração pelo corpo, como se houvesse a concentração e circulação de muita energia e potência, uma sensação de “posso fazer tudo” junto a uma conexão maior com a natureza. Após esse primeiro efeito foi relatado um pouco de tontura, enjoo e perda de equilíbrio. Por mais que eu estivesse curiosa sobre a potência de cura, não me senti preparada.

De volta a Aldeia, almoçamos e retornamos às atividades recreativas com às crianças. Como elas não nos acompanharam na trilha, acumularam muita energia, o suficiente para jogarmos 4 rodadas de “Rouba bandeira”, uma brincadeira que estimula a competição, a concentração, diferentes estratégias de jogo e o trabalho em equipe. Durante esta dinâmica foi possível reparar um padrão, às famílias estavam sempre juntas e em roda, seja na fogueira, seja conversando em outro espaço. Ao anoitecer, nos preparamos para a casa de Reza novamente, lá, fomos recebidos pela Pajé Lourdes, de um outro núcleo que foi convidada para conduzir a reza naquela noite. Nos dois dias, foi incrível perceber a força matricial dos povos indígenas, durante nossa estadia, ouvir histórias de duas lideranças indígenas femininas foi uma verdadeira quebra de paradigma. “Eu penso muito, sou uma mulher indígena e a gente tem que se colocar” - Pajé Para Durante este momento a Para fez uma reflexão sobre a “vergonha” que o indígena sente ainda nos dias de hoje, em expor sua cultura, e nesta fala podemos relacionar a ideia de Meneses (1999) que descreve este comportamento social como “etnocentrismo”, uma espécie de preconceito social que perpetua o julgamento sobre outros povos e culturas, a partir de padrões e costumes de uma determinada sociedade. Contudo, esse preconceito impera mesmo com preceitos constitucionais garantindo aos povos originários o pleno respeito a sua língua, costumes, crenças, tradições e organização social, direito positivado no caput do artigo 231 da Constituição Federal de 1988.

Houve por fim um canto religioso Guarani onde teve participação livre dos juruás nos instrumentos. Além do relato importantíssimo de outros integrantes da vivência. Durante os dois dias da experiência na casa de Reza o quórum era menor do que eu imaginava, tendo em vista que a casa de Reza para os Guaranis é o centro da vida social.

No último dia tomamos um café reforçado e fomos a praia. Andamos mais ou menos meia hora, observando o território com mais atenção, o campo de futebol, o mercadinho com mantimentos comuns e às estradas de terra até a avenida da praia.

Conclusões

O povo Guarani é um povo mais silencioso, se tivéssemos mais tempos eu teria me aprofundado melhor na interação com os adultos, no intuito de ouvir histórias. Como destaques pessoais, viver o tempo Guarani sem me preocupar com relógios e programações planejadas me fez desprender, pelo menos enquanto estive ali, da minha neura urbana de tentar ter controle sobre o tempo o tempo todo, foi um dos pontos fortes, além do senso de comunidade proposto. O nosso maior contato foi com às crianças, de pronto, podemos dizer que todas eram super comunicativas, afetuosas, inteligentes e articuladas. Ou seja, além de deterem todos os conhecimentos culturais do seu povo, estavam super antenadas sobre as “dancinhas do TikTok”. Além disso, percebe-se que apesar do contato com a cidade ampliar e diversificar os hábitos tradicionais (de alimentação, consumo, etc), vê-se que o momento de exercer sua religiosidade os conecta com essa ancestralidade em termos de hábitos e costumes, e a mantém fortalecida. Além da observação ter quebrado paradigmas e percepções distantes, penso que foi uma experiencia enriquecedora, onde o foco foi a natureza, a conexão com o outro e o mergulho no outro. Enquanto grupo, espero que a gente siga, cada vez mais, fortalecendo e difundindo ideias para adiar o fim do mundo.


Borboletas

Borboletas me convidaram a elas.

O privilégio insetal de ser uma borboleta me atraiu.

Por certo eu iria ter uma visão diferente dos homens e das coisas.

Eu imaginava que o mundo visto de uma borboleta seria, com certeza, um mundo livre aos poemas.

Daquele ponto de vista:

Vi que as árvores são mais competentes em auroras do que os homens.

Vi que as tardes são mais aproveitadas pelas garças do que pelos homens.

Vi que as águas têm mais qualidade para a paz do que os homens.

Vi que as andorinhas sabem mais das chuvas do que os cientistas.

Poderia narrar muitas coisas ainda que pude ver do ponto de vista de uma borboleta.

Ali até o meu fascínio era azul.

Manoel de Barros


Referências


BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 4. Meneses, Paulo. Etnocentrismo e relativismo cultural: algumas reflexões. Revista Symposium. Ano 3 • Número Especial • dezembro, 99