Wikinativa/Natalia Maia Marciano (vivência Guarani 2019 - relato de experiência)
Antes do meu relato sobre o que vivi e senti nessa experiência, deixo registrado minha imensa gratidão ao professor pela oportunidade de experimentarmos uma outra proposta de aprendizagem, uma outra oportunidade de fazer a universidade, tornando o ensino um caminho libertador.
A vivência na Aldeia do Rio Silveira começou muito antes que estivéssemos lá.Toda a construção da disciplina foi feita como objetivo de ser uma preparação para o que viveríamos, com quem conviveríamos, ainda que por poucos dias, mas que poderia nos marcar em diversos aspectos de nossas vidas.
Na aldeia, pude sentir o tempo em que eles vivem, que não é moldado pelo relógio e sim pela natureza, a sua própria natureza, que descreve suas vontades e necessidades, “as coisas acontecem quando tem que acontecer”, dizíamos. Senti a simplicidade, que não é sinônimo de ter menos, mas viver mais e melhor, principalmente ao observar as crianças, tão livres, que tem a natureza, o rio e a mata como seu quintal, e os conhecem tão bem como a palma de sua mão. Atravessavam o rio montando sua varinha de pescar. Acompanhei algumas delas na travessia de ida para a cachoeira, no caminho me ensinaram a fazer a pedra pular na água, com tanta paciência, sempre riamos quando um ou outro errava. Assim era em todas as brincadeiras e atividades que fazíamos juntos, sempre muito empenhados e sem medo de errar.
Aprender a viver bem, significa considerar todas as experiências, sabendo que a vida material é apenas um aspecto e não se reduz à acumulação de coisas. Temos que aprender a comer bem, dormir bem, nos relacionar bem, sem adiarmos nossa vida presente para uma futura que sequer existe. A vida é (o) um presente.
“O povo vem com muitos problemas da cidade pra cá”, disse o pajé. E lá, no meio de uma cerimônia tradicional na casa de Reza, sob o céu mais estrelado que eu já vi na vida, refleti sobre que problemas são esses que carregamos. Sobre o que é nosso e o que é só uma bagagem de inseguranças, medos, traumas e condições que nos foram impostas antes mesmo que tivéssemos nascido.
Reflexão. É o que fiz desde que entrei lá e permanece até a hoje. A reflexão deve ser constante para que tenhamos uma vida leve e em movimento.
A vós das mulheres ecoava com uma potencia que não se explica. Os cantos soavam muitas vezes como gritos de guerra, e talvez o seja mesmo.
Embora o modo de vida simples, em contato com a natureza seja algo notável, acho importante sempre lembrar que isso não significa que eles vivam no passado, muitos indígenas têm uma participação muito ativa na sociedade, com papéis políticos, assim como o Mariano, Cacique da aldeia, que faz trabalhos e discussões importantes a respeito da natureza e dos impactos antrópicos crescentes sobre ela, sobre suas lutas, criando um movimento de resistência. Eles também estão na universidade, na música e em tantos outros lugares e não é por isso que deixarão de ser quem são, de acreditar no que acreditam.
Cozinhar, junto com meus colegas, com mulheres indígenas e algumas vezes com crianças, pra todos que estavam ali, foi empolgante e desafiador desde que soube que a temática dessa vivência seria a alimentação. Algo que eu particularmente tenho como luta diária. Acredito na autonomia alimentar como uma ferramenta importante para sairmos da lógica do imediatismo, em saber do que estamos comendo, quem preparou, se possível, quem plantou e que esse alimento não é fruto de exploração animal, humana e da natureza. Como o Cacique e o Pajé falaram, nós somos partes de um todo, somos parte da natureza e não cabe a nós nos colocarmos em posição de dominadores de algo que claramente ganharia de nós em todas as “batalhas”, isso torna tudo tão mais difícil pra nós e para tantas outras milhares de vidas que coabitam.
Os indígenas sempre fazem menção à "Natureza" e não "Meio-ambiente", pois não se separa nós do todo, ela não está aqui ou ali, ela é o aqui e o ali. Quando nos colocamos como parte, os processos de vida-morte ficam mais leves de serem aceitos. A morte faz parte dos ciclos naturais. Não aceitar isso seria fruto de uma ideia de superioridade dada à “inteligência” humana? não sei.
Na cozinha, na casa de reza, na cachoeira, na praia vendo um pôr do sol lindo num dia que não acreditávamos que faria tanto sol, senti que estava exatamente onde deveria estar. Foi como um alimento pra alma que talvez já não aguenta mais fazer parte da lógica produtivista de uma sociedade que quer tenhamos tudo, e não sejamos nada, afinal, a falta alimenta o sistema capitalista.
Fomos acolhidos com muito carinho e é com muita fraternidade que os enxergo, companheiros de luta.