Wikinativa/Ronildo Ferreira Pamponet (vivência Guarani 2019 - SMD - relato de experiência)

Fonte: Wikiversidade


Introdução

Este relato pessoal de vivência na Aldeia Guarani Rio Silveiras, em São Sebastião, pretende atender ao requisito da disciplina ACH3648 - Seminários de Políticas Públicas Setoriais III - Multiculturalismo e Direitos ("SMD 2"), ministrada pelo Prof. Jorge Machado, na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. A matéria também teve a assistência de monitores e colaboradores, entre eles o Carlos Henrique Ferreira da Equipe AUPI, além de um incremento de conhecimento com palestras, vídeos, textos, seminários e uma visita à Aldeia do Jaraguá. Todo o aprendizado anterior e as recomendações serviram como preparação para a experiência que tive como observador, fazendo registros fotográficos junto com o meu grupo de foto e vídeo das atividades durante a vivência.

Sexta-feira, 15/11/19

A vivência de três dias iniciou-se com a viagem, quando saímos da universidade por volta das 10 horas do dia 15 de novembro de 2019. Devido ao congestionamento na estrada em direção ao litoral por causa do feriado prolongado, chegamos à aldeia aproximadamente às 16 horas. Desembarcamos numa estrada de chão enlameada pela chuva. O primeiro trabalho foi descarregar os alimentos, plantas e o restante da bagagem. O professor Jorge fez uma reunião para orientar sobre os locais onde seriam montadas as barracas. Havia bastante espaço para isso nas proximidades das moradas dos guaranis, feitas de madeira e cobertas por telhado de palha. Eu não tinha barraca e acabei me acomodando na antiga casa de reza, após conseguir permissão do pajé para usar um colchão que estava lá. Soube que outra casa de reza fora construída do outro lado do terreiro com a ajuda de ex-alunos da disciplina.

Esse núcleo da aldeia possui uma estrutura razoável como a cozinha comunitária com fogão a lenha, pia, água encanada e eletricidade. Para higiene pessoal há um banheiro com tanque e ducha nos fundos do terreno e outro com chuveiro elétrico e tanque do outro lado da rua. Na entrada, perto de um pórtico, estava uma barraca com produtos artesanais em exposição muito criativos e relacionados à cultura guarani. Observando também a movimentação local, percebi que tratam muito bem as crianças e que respeitam o cacique e o pajé. Enquanto as pessoas eram entrevistadas um grupo de estudantes montava a tela para projeção.

Ao findar o dia as moças do grupo de alimentação preparavam a janta e as pessoas se aproximavam de uma tenda para assistir à projeção do filme que tinha um personagem indígena. Crianças e jovens guaranis assistiam com toda a atenção. Após a exibição do filme fomos à casa de reza. No interior estava escuro apesar de haver algumas velas acesas. As mulheres ficavam sentadas do lado direito e os homens do lado esquerdo. Algumas pessoas pitavam o cachimbo e o interior da casa ficava com fumaça de tabaco para purificar o ambiente, uma tradição do índígenas. O pajé conduzia a cerimônia, entoando cânticos e dançando. Os estudantes foram convidados a participar do ritual e ficaram à frente da casa, lado a lado, seguindo o ritmo das canções. Os cânticos na língua nativa eram acompanhados por instrumentos musicais como chocalhos e violão. Quando terminou o ritual, o cacique falou sobre a história de seu povo, suas preocupações com o futuro das crianças, sobre a necessidade de demonstrar amor aos pais enquanto estão vivos. Por fim, respondeu às indagações dos estudantes, agradecendo a presença de todos. Também lembrou importância da presença dos alunos da USP e que Deus (Nhanderu) quer o bem de todos, por isso fomos bem recebidos.

Sábado, 16/11/19

Pela manhã o professor Jorge despertava com um chocalho quem ainda não havia saído da barraca. Enquanto preparavam a mesa, as moças guaranis faziam o tipá, fritando-o no óleo. A mesa do café estava bem farta com pedaços de bolo integral, banana, pasta de amendoim e milho cozido. Também foram servidos café, leite de coco e outros alimentos. Enquanto isso os menores eram cuidados pelas crianças mais velhas e pelos pais.

Depois do café, segui os grupos de estudantes em direção à cachoeira e observei as casas ao longo da estrada de terra. Alguns guaranis acompanharam também. Passamos pela escola estadual indígena onde vi belas pinturas nas paredes. Depois avistamos um caminhão de lixo atolado e logo atrás vinha um trator para retirá-lo. No fim da estrada chegamos a outro núcleo indígena.

Lá na aldeia, todos nós, visitantes, sentamos em círculo para ouvir o cacique Adolfo que é o líder na hierarquia entre os caciques da aldeia. Ele falou sobre a localização dos territórios guaranis no Brasil, da sua preocupação com os jovens que vivem um novo pensamento, numa nova era. O cacique pensa no futuro e na defesa da natureza. Hoje a luta é por preservar a natureza mas também deve-se cuidar de quem vive nela, protegendo os nativos das ameaças e invasões, observou. São verdadeiros religiosos, não maltratam e zelam, quando a cultura que se vê no mundo é a do tipo “uma mão lava a outra”, enfatizou. O desafio é manter o equilíbrio da floresta mas sozinhos não conseguimos sobreviver. Ele dá valor às pessoas que contribuem como fariam os alunos ao plantar as árvores frutíferas. “O importante é plantar, se não, não vai colher” disse o cacique. Também falou sobre os seus projetos e agradeceu pelo rio, pela água cristalina e o ar puro do lugar onde vive. Fiquei atento quando ele disse sobre o conhecimento de seus ancestrais em relação à arquitetura pois nas construções antigas não se usava prego ou equipamentos como agora. Também pensa que não é certo que os juruá (não indígenas) frequentem a casa de reza apenas por curiosidade. Ao final, Carlos discursou sobre a sabedoria e o conhecimento indígena sobre as plantas medicinais.

Depois disso, as mudas de árvores foram distribuídas entre os visitantes para fazer o plantio. O cacique nos conduziu até o lugar onde ele desenvolvia a agrofloresta. Lá havia palmeira juçara, bananeira e outras que plantou. Ele explicava sobre os cuidados que tinha e sobre a terra adubada naturalmente. Após o plantio das mudas os grupos seguiram pela trilha para plantar no lugar onde havia um antigo núcleo da aldeia. Passamos por uma trilha onde em alguns trechos havia troncos caídos, lama e cursos d’água que cruzavam o caminho, plantas diferentes e flores vistosas. Testemunhamos a preservação da mata na qual os guaranis vivem.

No local do antigo núcleo os professores Jorge Machado, André Simões, Carlos Ferreira, demais colaboradores e alunos fizeram uma grande roda, onde puderam discursar para que todos pudessem ouvir e tomar conhecimento da importância da sustentabilidade e da preservação. Aparentemente não se podia desconfiar que o local antigamente era um núcleo indígena pois não havia construções em pé. Seria necessário procurar com cuidado indícios de atividade humana ali pois a mata estava recobrindo o lugar, degradando e absorvendo o que restou. Mas vi que havia árvores altas por perto, inclusive uma jaqueira com frutos que talvez tenha sido plantada há bastante tempo. Em seguida os visitantes plantaram mudas de árvores de várias espécies nos arredores. Eu semeei várias sementes de pitanga que coletei no meu quintal.

Todos seguiram pelo rio, pisando na areia e em pequenas pedras que podiam ser facilmente avistadas no leito. Cheguei próximo ao local onde as pessoas já estavam tomando banho. Avistei o Carlos ajudando os outros na passagem entre as pedras. Havia grandes pedras no rio e as que estava no meio formavam cascatas. Colegas saltavam da corda e mergulhavam na água fria. Outros se reclinavam na areia ou se aqueciam nas pedras. Os pequenos guaranis nos davam mostras de como viver em liberdade na natureza, saltando no rio, nadando e subindo nas rochas.

Na volta, seguimos pelo rio até alcançar a trilha. Os grupos foram se dispersando ao seu ritmo até o momento em que todos pudessem se reunir novamente. As crianças escalavam a ribanceira, ficavam suspensas nas árvores segurando o cipó, andavam descalças na trilha, saltavam as poças d’água, sem medo e rindo todo o tempo. Na volta eu observei as diferenças nos modelos das casas. Notei que na maioria das habitações os telhados se deterioram mais e fiquei sabendo da dificuldade para fazer a reposição com a palha.

Estando todos de volta, o almoço foi servido na aldeia. Depois, algumas pessoas jogavam bola enquanto o professor era entrevistado. No terreiro brincavam de bambolê o que empolgou várias crianças. Foi uma diversão generalizada. Alguns turistas se animavam e faziam parte do grupo. As brincadeiras estavam alegres e agitadas. Ao anoitecer começou a oficina de mandala quadrangular, que atraiu gente adulta e crianças para formarem figuras confeccionadas com linhas coloridas e varetas cruzadas. Nessa noite aconteceu outra cerimônia na casa de reza, o ritual de cura conduzido pelo pajé. A música e os cânticos ritmados ressoavam provocando uma sensação de paz interior. Algumas pessoas descreveram esse momento como especial e se sentiram muito bem.

Mais tarde, após o jantar, os colegas formaram uma pequena roda perto da fogueira, no terreiro. Cantavam e tocavam canções de música popular brasileira. Depois fizeram silêncio respeitando o sono dos moradores.


Domingo, 17/11/19

Pela manhã, após a refeição matinal, alguns participantes ficaram na aldeia mas a maioria foi de ônibus à praia, onde se formaram pequenos grupos na areia para conversar enquanto outros mergulhavam corajosamente no mar naquela manhã nublada. Tive a oportunidade de conversar com os jovens guaranis que me ensinaram expressões como bom dia (Javyju) em seu dialeto. Entendi que, como os povos aborígenes possuem parentes em aldeias distantes, há uma enorme dificuldade para visitá-los pois os deslocamentos geram despesas e nem todos conseguem obter recursos suficientes para pagar.

Quando retornamos à aldeia pude acompanhar uma grande variedade de brincadeiras, oficinas e artes, como pular corda, fazer brinquedos artesanais coloridos (bilboquê), jogar bola, rodar bambolê, além da pintura indígena no rosto e no braço. Nesse dia todos pareciam mais descontraídos. Apareceu até um porco do mato solto, conhecido como queixada ou cateto, deitado na grama, sendo acariciado pelas pessoas. Uma imagem incrível para nós que não estamos acostumados a ver esses acontecimentos. Ouvi dizer que era um filhote órfão que foi criado pelos indígenas e que ocasionalmente visita o núcleo.

Nesse momento começava outra atividade muito interessante, acompanhada por jovens músicos guaranis, na qual várias pessoas formavam um grande círculo externo e no centro ficava um rapaz da aldeia que segurava uma ou duas varas semelhante a flechas, enquanto quatro garotos guaranis saltavam ou agachavam conforme o seu gesto. Depois os pequenos corriam em torno dele. No momento seguinte o nosso professor foi ao centro e, enquanto pulava sob o comando do rapaz, as pessoas do círculo externo começavam a girar no sentido anti-horário. Após outros também participarem da brincadeira no meio, o rapaz passou a atuar no círculo externo girante, fazendo com que os indivíduos se agachassem. Assim como outros eventos anteriores esse foi bem ativo e alegre envolvendo todos os participantes e distraindo aqueles que assistiam.


Comentários

Passei a maior do tempo envolvido na observação a meia distância com o olhar fotográfico do meu aparelho celular. Eu estava lá querendo compreender mais do que influenciar. E silencioso, ouvia as palavras dos sábios que falavam sobre dedicação às pessoas a quem amamos; a deixar as ações acontecerem conforme o seu fluxo natural e social, e não cronológico; a plantar para poder colher, mesmo que não seja o próprio; a proteger as crianças para que elas não se percam nas ilusões do mundo e, ao mesmo tempo, deixá-las livres, com os pés descalços no chão e confiantes; a preservar a natureza por fazer parte dela; a defender-se das ameaças invasoras.

Não há dúvidas de que a disciplina cumpriu a proposta de possibilitar a visão multicultural, para que o aluno enxergue essa outra visão de mundo, a da diversidade, para refazer a sua leitura sobre o Direito e sobre as Políticas Públicas. Em relação à sabedoria milenar preservada pelos mais velhos; a capacidade de cura física e espiritual; a relação harmônica dos mesmos com a natureza, com os homens e com Deus; a capacidade de cura física e espiritual dos pajés; o conhecimento das plantas medicinais e outras coisas que nos são obscuras; provavelmente muitos de nós sequer teríamos ideia se não estivéssemos cursando essa matéria.

A partir daí podemos refletir e questionar sobre qual saúde e qual medicina queremos ter, qual alimento queremos ingerir, que relação teremos com o próximo, qual política pública merecemos, qual destino queremos para o planeta e qual futuro queremos deixar para as novas gerações. Mas como nos disseram, sozinhos não sobreviveremos. Precisamos então aprender e agir em prol de uma vida melhor para todos. Quero dizer que os alunos, monitores e colaboradores envolvidos nos grupos de trabalho estão de parabéns. Agradeço imensamente a todos, inclusive aos professores que nos apoiaram. Para finalizar digo que no momento da vivência e agora, inclusive enquanto redijo este relato, passo por uma fase de luto e que a vivência na Aldeia Guarani Rio Silveiras tem sido oportuna como auxílio à superação.