Wikinativa/Valéria Rie Yara (vivencia Guarani 2018 - relato de experiência)

Fonte: Wikiversidade

Introdução[editar | editar código-fonte]

Nos dias 18 de agosto, 11, 12, 13 e 14 de outubro de 2018 tive uma das melhores oportunidades da minha vida! As vivências realizadas nas Aldeias Tenondé Porã, Yvy Porã (Pico do Jaraguá) e Rio Silveiras (Bertioga) me trouxeram outro olhar sobre a vida, sobre a família, sobre o trabalho, sobre a organização do mundo, algo que, até então, eu só tinha lido no texto “Sociedade contra Estado” de Pierre Clastres (1934-1977). Eu tive o meu primeiro contato com esta obra na matéria obrigatória do curso de Gestão de Políticas Públicas: “Governança das Organizações Públicas”. Mas, eu nunca imaginei que a retomada de sua leitura nesta disciplina faria tanto sentido e é sobre esta literatura que eu abordarei unindo minhas experiências com o povo Tupi-Guarani.

Caminho para a Casa de Reza pronto que eu, a Gabriela, a Andreza e o João ajudamos a fazer no novo núcleo que estava sendo construído no Pico do Jaraguá. Foto por: Gabriela Camacho.

A Sociedade contra o Estado[editar | editar código-fonte]

Em “A sociedade contra o Estado”, Pierre Clastres (2013) confere questões reflexivas sobre o seu objeto de estudo as “sociedades primitivas” caracterizadas por sua privação da autoridade do Estado. Clastres desenvolve suas reflexões desmitificando as sociedades sem Estado e quebrando o paradigma de pensamento predominante na antropologia ao afirmar que a história dos “povos sem história” é a HISTÓRIA DA SUA LUTA CONTRA O ESTADO.

As sociedades arcaicas, pela literatura antropológica tradicional, são determinadas de maneira negativa por serem sociedades sem Estado, sem escrita, sem história e, no plano econômico, por sua ordem de funcionamento: economias de subsistência. Esse tipo de economia sem mercado e sem excedentes permite à sociedade se fundar em subsistir de modo que mobilize forças para fornecer a seus membros o mínimo necessário à subsistência. Esse aspecto entra em contradição com tipos de sociedades que se desenvolvem a partir da sombra protetora do Estado e do trabalho.

Quando desaparece a recusa ao trabalho perene e o sentido do lazer é substituído pelo gosto da acumulação, surge uma força que destrói a sociedade primitiva: essa força é a capacidade de coerção e do poder político que torna a economia política. Assim, a sociedade se fundamenta, a partir da divisão do trabalho entre a base e o cume, com um grande corte político entre os detentores da força e os sujeitados a essa. A relação política de poder precede e fundamenta a relação econômica de exploração. Antes de ser econômica, a nossa alienação é política. O poder antecede o trabalho, o econômico torna-se uma derivação do político e a emergência do Estado determina o aparecimento das classes.

As sociedades primitivas são sociedades sem economia por recusarem esta economia política que todos nós, povos não originários, somos submetidos desde o nascimento. Por outro lado, as sociedades com Estado definem-se a partir da presença ou ausência da formação estatal que fornece a toda sociedade o seu elo lógico, que traça uma linha de descontinuidade entre as sociedades.

Sobre o surgimento do Estado, Clastres diz: “[...] Somente uma convulsão estrutural, abissal, pode transformar, destruindo-a como tal, a sociedade primitiva: aquilo que faz surgir em seu seio, ou do exterior, aquilo cuja ausência mesma define essa sociedade, a autoridade da hierarquia, a relação de poder, a dominação dos homens, o Estado” (CLASTRES, 2013), ou seja, as sociedades primitivas são sociedades sem Estado porque nelas o Estado é impossível!

Acredito que estamos num contexto político muito desfavorável, mas a história dos povos originários é uma história de luta e resistência! É a história de luta contra o Estado! Portanto, não é um governo que irá derrubá-los! Este Estado, esta relação de poder, esta economia política, este gosto pela acumulação nunca os pertenceu! Isso não faz parte da cultura deles! Se os nossos antepassados e todos nós agora pudéssemos entender e respeitar que eles têm uma cultura, uma religião e uma língua diferentes, teríamos errado menos e a sombra do futuro não seria a sobra do passado.

Como eu queria que não existisse um Monumento às Bandeiras, um Palácio dos Bandeirantes e tantas outras saudações a opressores. Como seria bom se população indígena não fosse lembrada apenas no dia 19 de abril, não precisaríamos catequizá-los ou evangelizá-los como muitos ainda tentam fazer, não iríamos impor o uso do português, não tiraríamos fotos deles apenas como um registro exótico. Por mais de 500 anos os não indígenas tentaram impor seus padrões culturais, mas eu me pergunto: quando aprenderão a sentir de coração aberto a cultura deste povo? Quando aprenderão que ser diferente não é ser inferior?

Conclusão[editar | editar código-fonte]

Gostaria de agradecer a todos envolvidos na oferta e organização da disciplina, aos meus amigos e amigas pela convivência, aos novos amigos que fiz, aos guaranis do Jaraguá e do Rio Silveiras que nos receberam com tanto carinho! Muito obrigada a todos, de coração! Esta foi uma das melhores experiências que tive em toda minha vida! AGUYJEVETE (Gratidão).

Aos guaranis do Jaraguá que, mesmo diante de todas as condições de vulnerabilidade social e desafios, resistem e lutam pela sua cultura sufocada dentro de uma cidade que nós criamos, eu os saúdo! Aos guaranis do Rio Silveiras que resistem e lutam por todos seus parentes, eu os saúdo!

Por fim, deixo aqui a minha reflexão final baseada em Pierre Clastres:

“[...] Quando a atividade de produção se transforma em trabalho alienado, contabilizado e imposto por aqueles que vão tirar proveito dos frutos desse trabalho, é sinal de que a sociedade não é mais primitiva, tornou-se uma sociedade dividida em dominantes e dominados, em senhores e súditos, parou de exorcizar aquilo que está destinado a matá-la: o poder e o respeito ao poder” (CLASTRES, 2013).

Referência[editar | editar código-fonte]

• CLASTRES, Pierre. A Sociedade Contra o Estado. São Paulo: Cosac Naify, 2013.