Wikinativa/Victória Marcondes (vivencia Guarani 2022 - SMD - relato de experiência)
Título: Observação participante na Aldeia Guarani Rio Silveiras — um olhar pela perspectiva do relativismo cultural.
Introdução
Localizada na divisa dos municípios de Bertioga e São Sebastião, a Aldeia Guarani Rio Silveiras é habitada por cerca de 700 indígenas da etnia tupi-guarani, reunidos em cerca de 130 famílias ao longo de aproximadamente 948 hectares de terras do Parque Estadual da Serra do Mar. Com o intuito de compreender de maneira prática e didática a história e cultura dessa população, além de ter a possibilidade de aplicar a metodologia de observação participante, os estudantes da disciplina optativa Seminários de Políticas Públicas Setoriais II do curso de Gestão de Políticas Públicas da EACH/USP, obtiveram durante três dias a experiência de vivenciar o cotidiano dos habitantes da aldeia, compreender sua cultura e história, suas necessidades e, principalmente, sua maneira de ver, sentir e interagir com o mundo. Trata-se, em outras palavras, de uma pesquisa exploratória — é dizer, sem uma hipótese —, que busca entender o olhar do outro sobre a identidade cultural dos indígenas da aldeia Guarani Rio Silveiras.
A vivência ocorreu entre os dias 04 e 06 de novembro de 2022, e, para além da participação dos estudantes matriculados na disciplina, contou com a participação do professor da mesma, Jorge Machado, assim como o professor convidado André Simões, também da Universidade de São Paulo (USP), além dois tutores Gabriela Rosa Medeiros e Rocio de Pilar, e dois monitores, João Pedro Mathias e Yure Alves. Contou-se ainda com a presença e colaboração de estudantes do curso de nutrição, que se voluntariam para ajudar nas tarefas referentes à alimentação do grupo. Além disso, durante parte do período em que os estudantes estiveram presentes na aldeia, a mesma contou com interação entre estudantes de odontologia da mesma universidade, que buscaram fornecer atendimento odontológico aos moradores da aldeia.
Considerações iniciais
Julgo importante, de início, salientar algumas questões importantes na elaboração deste relatório. A primeira delas diz respeito ao elemento tempo, entendido por uma perspectiva sociológica. De acordo com MACHADO (2012), a compreensão do tempo pode ser feita para além do tempo astronômico, compreendendo que ele está “no sujeito que o concebe” (p. 03). Dessa forma, a percepção do tempo é variável, estando conectada, ainda, à cultura na qual o sujeito se insere. Justamente por isso, este relatório não trará nenhuma marcação temporal com base no tempo cronológico, matemático. As marcações de tempo, quando ocorrerem, estarão baseadas na percepção da autora, que estará baseada, principalmente, na posição do sol em relação à terra, e serão utilizadas expressões como “no começo do dia”, “ao entardecer”, “de noite”, entre outras.
Um segundo ponto relevante é o de que, dado que será utilizado com metodologia a observação participante, considera-se que este relatório mostrará as impressões pessoais da pesquisadora durante o trabalho de campo, e, por isso, será redigido em primeira pessoa. Considera-se ainda que outros pesquisadores que estiveram na aldeia no mesmo período podem ter tido sensações e impressões distintas das minhas estando justamente no conjunto dos relatos de cada participante a principal contribuição que vejo para compreensão de como se deu a vivência na aldeia.
A Preparação
Antes da partida rumo à aldeia, os participantes da disciplina se dividiram entre Grupos de Trabalho (GTs), sendo eles: (1) registro, responsável por capturar por meio de fotografias e vídeos, os momentos mais relevantes da vivência; (2) Infraestrutura, ao qual coube o trabalho de auxiliar na montagem e desmontagem das barracas, assim como garantir que todos tivessem um local de acomodação; (3) recreação, que promoveu a realização de jogos interativos entre estudantes e a comunidade indigena, sendo também responsável por levar o material para realizar as atividades por eles propostas; e (4) alimentação, responsável por planejar e realizar as refeições de todos os participantes do trabalho de campo. Coube a mim participar do último Grupo de Trabalho (alimentação) o que, como se verá no decorrer deste relatório, fez com que em alguns momentos eu tivesse que deixar de participar de algumas atividades para auxiliar no preparo de algumas refeições. Para além da divisão de grupos, outro preparo anterior à realização da atividade de campo foi a de leituras sobre multiculturalismo, sobre o bem viver e sobre como realizar a observação participante, estando os participantes metodologicamente preparados para o trabalho de campo.
A vivência
A seguir, serão apresentadas as principais características observadas durante o estudo, mostrando aspectos como clima, relações de poder, comunicação, visões, e descrição da observadora. Como dito na seção “considerações iniciais”, a divisão temporal se dará principalmente por meio da percepção da pesquisadora, e não por meio do tempo cronológico, não sendo, portanto, utilizadas noções de dias nem horas.
- Logo após o primeiro pôr do sol
Os integrantes da disciplina em questão chegaram na aldeia já no período da noite, após o pôr do sol. O primeiro contato que tive com os moradores do local foi com as crianças, que chegaram até o grupo antes mesmo de montarmos as barracas, quando ainda estava buscando minha mala no ônibus em que havíamos feito viagem. Apesar de algumas apresentarem certa timidez, todas pareciam alegres e brincalhonas, correndo em várias direções, perto do grupo que apenas havia chegado na aldeia. O local é espaçoso, com muito verde e um gramado extenso. Ainda não havia tido contato com a cozinha nem o interior de nenhuma casa ou qualquer outro local fechado.
Após a montagem das barracas, eu e outras colegas fomos ao banheiro, o primeiro local fechado que visitamos. Apesar de todas as boas experiências que teríamos na aldeia dali por diante, devo admitir que a primeira casa de banho por mim utilizada não apresentava as melhores condições de higiene, não tendo, tampouco, luz elétrica. Contudo, após a utilização do toalete nos dirigimos para a Casa de Reza, onde tive uma das experiências mais marcantes da vivência. Assim que entrei no local, me senti abraçada por uma onda de fumaça quente, que saia de uma pequena fogueira acesa dentro da Casa de Reza. Por mais que tenha percebido que a experiência da fumaça não tenha agradado a todos meus companheiros, sinto que ela me deixou extremamente tranquila, além de ter esquentado o ambiente — outro fator extremamente positivo para mim, já que fazia frio do lado de fora do local. Algo que também contribuiu com a sensação de bem estar foi o coral das crianças, que ocorria quando entrei no local. O local era relativamente grande, e apresentava um enorme banco de cada lado do local. Logo descobri que de um lado deveriam sentar-se os homens, e do oposto, as mulheres. Além dos bancos, o espaço contava com uma pele de onça em uma das paredes, a qual estava perto do altar, com instrumentos musicais e uma imagem do que descobriria mais tarde ter sido o antepassado do atual pajé da aldeia. A Casa de Reza era feita com estacas de madeira, visíveis no interior e exterior da mesma. Ao centro, uma grande estaca parecia auxiliar na sustentação do local, que tinha, também, um piso escuro, quase preto, no qual não nascia mais grama.
Após o término do coral, Lucimara, a filha do pajé, fuma um cachimbo e, de maneira bastante calma e amigável, começa a nos explicar sobre os principais pontos da cultura daqueles que hoje moram na região. Segundo ela, a tribo que ali se encontra é da etnia tupi-guarani, que, para sermos ainda mais exatos, é uma junção de duas tribos — a Tupi e a Guarani. Nos foi explicado que a aldeia possui um total de 6 núcleos indígenas, e que aquele em que estávamos era o núcleo porteiro. A respeito da educação das crianças da aldeia, nos foi explicado que parte considerável dos docentes são também indígenas, justamente para facilitar a comunicação entre professores e estudantes, já que muitas crianças aprendem primeiro o guarani, e posteriormente o português. Além das disciplinas regulares, comumente encontradas nas demais escolas brasileiras, as escolas da aldeia lecionam sobre conhecimentos pertencentes aos povos indígenas, como sua cultura, costumes e filosofia. Todos esses pontos aqui levantados me surpreenderam positivamente, já que não sabia que a educação fornecida na aldeia contava com tamanho zelo pela cultura local.
Apesar disso, alguns pontos levantados pela anfitriã me deixaram um tanto quanto desconfortável. Eles se referem principalmente à desigualdade de gênero entre os membros da comunidade, mais especificamente no que diz respeito ao processo de transição da vida da criança para a fase adulta, que ocorre de maneira diferente entre as crianças do sexo feminino e masculino. Conforme explicado por Lucimara, seguindo o costume mais tradicional, as garotas, assim que menstruassem, deveriam ficar em uma casa durante o período de aproximadamente um ano, aprendendo sobre como seria a vida adulta, os afazeres domésticos e o cuidado do lar e da família. Já os rapazes, quando atingiam a puberdade, deveriam também passar por um período de treinamento, mas esse duraria apenas um mês, aproximadamente, e seria referente a caça, pesca e proteção da aldeia. Com base no conhecimento sobre relativismo cultural que obtive ao longo da disciplina, me limitei a não julgar a cultura que estava presenciando, mas sim buscar compreendê-la. Apesar disso, me senti extremamente contente ao saber, logo em seguida, que essa prática mudou e, na atualidade, consiste em um momento de reclusão muito menor para as jovens mulheres — de aproximadamente um mês, apenas. Isso me fez pensar em como, assim como a sociedade em que eu vivo se modifica e está em constante transformação, as demais também podem se modificar sem perder suas raízes e características principais. Os próprios membros da comunidade decidiram manter a tradição (dado que o momento de reclusão na puberdade foi mantido) mas de uma maneira inovadora e mais orgânica. Além disso, anteriormente as indígenas deveriam se casar logo após o período de reclusão, mas hoje podem escolher se querem ou não casar-se, quando e com quem.
Nesse sentido, a filha do Pajé nos contou, também, sobre a inserção da tecnologia na aldeia indigena. Segundo a própria, muitos indígenas possuem aparelhos eletrônicos como smartphones e televisão, o que aumenta o contato deles com outras culturas diferentes às deles. No entanto, eles não deixam de ser e nem passam a ser menos indígenas por conta disso, sendo essa apenas uma mudança que ocorreu ao longo do tempo em diversas culturas, não apenas na deles.
Após a fala de Lucimara, outros dois indígenas se apresentaram. Ambos me pareceram tímidos, mas muito simpáticos. Em suas falas, eles nos explicaram que eram os guerreiros da aldeia, sendo responsáveis por defendê-la de ameaças externas. Eles nos guiaram até a cachoeira na tarde do dia seguinte, e seriam responsáveis por nossa segurança durante a estadia.
Ao sairmos da Casa de Reza, senti frio e fome, mas afortunadamente o jantar estava pronto. Aquela seria a única refeição realizada pelo GT de alimentação na qual não pude contribuir. Durante a refeição, estive perto de uma pequena fogueira que se encontrava próxima à cozinha. Ali, encontrava-se um dos guerreiros que haviam se apresentado na Casa de Reza e, apesar de não termos dialogado, trocamos olhares e sorrisos simpáticos, o que me causou uma sensação de que éramos bem vindos no local e de que, apesar da timidez por parte dele, haveria vontade de interagir conosco. Após a refeição, voltei a minha barraca, coloquei roupas quentes, e dormi, apesar do frio que sentia.
- Pouco tempo após o nascer do sol
Logo de manhã, despertei, me arrumei e fui rapidamente até a cozinha, ajudar na preparação do café da manhã. Minha função principal era descascar e cortar mangas, algo que não costumo fazer com muita frequência, e não tinha habilidade. Em seguida, duas moradoras locais chegaram até a cozinha para nos auxiliar no preparo da refeição. Até aquele momento, éramos apenas eu e mais uma integrante do GT de alimentação, mas logo mais chegariam novos integrantes.
Assim que me viu cortando as mangas — ou melhor, tentando —, uma das indígenas se pôs ao meu lado e começou a descascá-las também, de maneira muito mais rápida do que eu. Agradeci enormemente a ajuda, e comentei, sorrindo, sobre como eu não levava muito jeito para a coisa. Ela então perguntou se não seria melhor se ela ficasse com a função de descascar as mangas, enquanto eu me responsabilizaria por cortá-las em cubos menores, proposta que aceitei com grande alívio. Busquei começar vários diálogos com ela mas, apesar de ambas estarmos sempre sorrindo e buscando apresentar simpatia, nenhuma tentativa minha vingou. Apesar disso, em nada mudou meu sentimento de agradecimento pela colaboração e ajuda que me foi dada.
O café da manhã totalmente vegano, assim como as demais refeições que fizemos durante a vivência, foi esplendoroso. Me senti muito feliz por ter conseguido ajudar na sua preparação, não somente porque o grupo recebeu muitos elogios pela refeição, mas principalmente porque acredito que tenha criado um vínculo com o grupo que estava na cozinha, o que me deixou muito feliz.
- Quando o sol estava em seu ponto mais alto
De tarde, muitas brincadeiras foram realizadas pelo grupo de recreação, principalmente com uso de bambolê e corda. Nesse momento, aproveitei para conversar com algumas crianças da aldeia e perguntar sobre quais atividades elas mais gostavam de fazer. Notei que os meninos em geral gostavam muito de futebol, mas as meninas nem tanto. Além disso, as brincadeiras de bambolê que envolviam força e saltos largos foram rapidamente acatadas pelos garotos, mas as garotas demoraram mais para realizar essa atividade, aparentando estarem receosas. Além disso, tanto os garotos quanto as garotas — mas mais evidentemente os garotos — pareciam estar competindo entre si para ver quem conseguia se sair melhor nos jogos que o grupo estava propondo. Essa competitividade não se apresentou de maneira agressiva, nem me pareceu inviabilizar o divertimento dos participantes, mas me fez questionar sobre as relações de poder presentes entre os membros daquela comunidade, e o quanto em algum grau eles não deixam de se assemelhar àqueles com os quais eu já estava acostumada a lidar desde pequena.
Após as brincadeiras, fizemos uma caminhada até uma cachoeira, onde pude observar a vegetação e demais elementos naturais da reserva em que a aldeia se inseria. Sabia de antemão que boa parte da preservação da natureza se dá pela comunidade indigena, que impede a exploração indevida dos bens naturais do local. Não obstante, poder ver de perto a natureza me fez compreender melhor o real significado dessa preservação, assim como sua importância.
Chegando na aldeia, corri para ajudar na preparação do almoço, que estava atrasado. Após alguns contratempos, conseguimos servir a refeição. Ajudei também a lavar a louça utilizada no preparo e me direcionei à minha barraca.
- Quando as estrelas começaram a aparecer
Não muito tempo depois, o sol já não estava tão alto no céu e logo voltei à cozinha para ajudar novamente no preparo da refeição, desta vez da janta. Por conta disso, não pude participar da reza daquela noite, mas considero que meu trabalho naquele momento foi importante para que todos pudessem se alimentar bem e dormir após o longo dia. Em seguida me arrumei e dormi.
- Logo após o nascer do sol
Nos nossos últimos momentos na aldeia, ainda de manhã, ajudei novamente no preparo do café da manhã, desta vez sem ajuda de membros da comunidade, apenas do GT de alimentação. Em seguida, caminhamos até a praia, junto com um dos guerreiros da aldeia e algumas crianças também de lá. Observei algumas delas nadarem no mar, algo que pareciam estar pouco acostumadas a fazer. Segundo o guerreiro que estava conosco, eles costumam nadar nos rios e não no mar. São raras as vezes em que vão até a praia, pois o sol costuma ser menos forte na trilha até a cachoeira, e também perto dela, devido a vegetação do local. No entanto, na praia essa vegetação é menor, fazendo com que o sol atinja diretamente suas peles, o que é um problema, dado que não tem o hábito de utilizar protetor solar.
- Quando o sol chegou no seu ponto mais alto no céu
Após um tempo na praia, voltamos para a aldeia, onde ajudei a preparar o almoço. Ainda antes dele ser servido, arrumei minhas malas e desmontei minha barraca, para não atrasarmos muito nossa volta para casa. Após o almoço, tive tempo ainda de comprar uma lembrança para minha mãe. Trata-se de um artesanato feito por indígenas mulheres da aldeia, muito colorido e bonito. Apesar de a vendedora não falar muito português e eu não falar nada de guarani, conseguimos nos comunicar com gestos e sorrisos, o que me deixou contente. Foi uma ótima despedida da aldeia.
Conclusões
Apesar de não se tratar propriamente de uma questão envolvendo o contato com os moradores da aldeia e sua cultura, objetivo deste trabalho, gostaria de dar inicio a conclusão dizendo que o contato por três dias com uma alimentação vegana me fez ter um novo olhar para a cozinha e aquilo que consumo. Trata-se de uma experiência que me fez perceber como posso mudar, sem grande sofrimento, minha relação com a comida, e praticar, — ainda que não necessariamente todos os dias, mas certamente com mais frequência do que fazia antes —, o veganismo.
No que diz respeito à aldeia, me chamou muita atenção a relação de gênero entre os seus integrantes. Na cozinha, notei que só trabalham mulheres, sendo os homens responsáveis pela segurança do local (os guerreiros). Gostei de saber sobre a educação da aldeia, de ter sentido a natureza à sua volta e o bem estar geral causado pela sua presença.
Me espanta positivamente perceber como durante basicamente todo o período em que estivemos lá, todo o contato com os indígenas se deu de maneira muito amistosa e acolhedora. Os sorrisos eram permanentes, seja entre as crianças ou adultos, e o sentimento geral que definiria a experiência seria, certamente, o de paz. Hoje posso dizer que vivi o bem viver.
Bibliografia
ACOSTA, Alberto O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundoss / Alberto Acosta; São Paulo: Autonomia Literária, Elefante, 2016.
MACHADO, Jorge. Reflexões sobre o Tempo Social. Revista Temática Kairós Gerontologia. 2012.
ACOSTA, Alberto O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundoss / Alberto Acosta; São Paulo: Autonomia Literária, Elefante, 2016.
MENESES, Paulo. Etnocentrismo e relativismo cultural: algumas reflexões. Revista Symposium. Ano 3. Número Especial. 1999. Disponível em: <https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/3152/3152.PDF>. Acesso em 30 de novembro de 2022.