Wikinativa/Victória Marcondes Karvelis (vivencia Guarani 2019 - relato de experiência)

Fonte: Wikiversidade

Imersão na Aldeia Rio Silveira [editar | editar código-fonte]

O presente relato tem como objetivo apresentar minha experiência durante a visita à Reserva Indígena Rio Silveira com a disciplina de Seminários de Políticas Públicas Setoriais III - Multiculturalismo e Direitos, ministrada pelo Professor Jorge Machado. A imersão na comunidade indígena propõem um intercâmbio com a cultura dos povos originários, a fim de aprofundar os conhecimentos sobre multiculturalismo, diversidade e direitos expostos em sala de aula durante o semestre. 


Antes de discorre sobre a imersão, tomo a liberdade de usar esse espaço para compartilhar brevemente minha humilde percepção sobre a disciplina. Por mais complexo que seja tratar de povos originários, principalmente devido ao desafio de enxergar o mundo sem preconceitos culturais, através do relativismo, o Professor e todos os colaboradores trouxeram o tema com amor e respeito nítidos. Assistindo as aulas, ouvindo os convidados palestrarem ou durante as atividades era possível sentir o carinho que todos colocam na disciplina, além do imenso conhecimento compartilhado. Termino o semestre com muitos questionamentos, mas com a certeza de que transmitir conhecimento é um dom. Imagino o quão desafiador deva ser inovar dessa forma e na atual conjuntura, por isso, gostaria de agradecer a todos que fizeram (e fazem semestra ou anualmente) essa disciplina acontecer, relembrando o propósito da Universidade e explicitando o quão transformador é aprender vivenciando para além dos muros.

Pré-Vivência[editar | editar código-fonte]


Desde o início do semestre a imersão à Aldeia é pauta nas aulas - como todo o conteúdo se relaciona, a preparação para a viagem começou junto com o semestre. Na maioria dos encontros houve ganchos de pontos para nos atentarmos durante a imersão, desde conteúdos até a parte comportamental. Sinto que toda a turma discutiu e desconstruiu preconceitos sobre o estilo de vida Guarani ao longo desses seis meses, e que isso garantiu um clima quase que familiar durante a viagem.
Como os demais grupos, a Infraestrutura produziu um levantamento prévio com sugestões de atividades e uma listagem de materiais para a execução das mesmas. Nesse ponto, o grupo me pareceu ter um pouco de dificuldades, isso porque desde o princípio concordamos que nossas atividades deveriam contribuir de alguma maneira para com a Aldeia. Apesar da complexidade levantada por essa visão, devido a vontade de colaborar sem desrespeitar, conseguimos planejar atividades que muito me contentaram - principalmente o Mutirão, que tinha como ideia a conscientização em relação ao descarte dos não-orgânicos, ponto levantado pelos membros do grupo que já conheciam a Aldeia como um real problema.
Além disso, foi responsabilidade da Infraestrutura elaborar o cronograma geral da viagem, conciliando as atividades definidas pela organização da disciplina e as propostas pelos grupos. Acredito que construímos com facilidade. Propusermos de discutir nossos encaixes em sala de aula e com a colaboração de todos os presentes fechamos a proposta. Mesmo essa responsabilidade sendo do nosso grupo, houve um espaço para análise de todos, o que considero ter sido importante para que todos os grupos ficassem confortáveis.
Entendo que a articulação dos grupos sem dúvidas dá certo trabalho, mas, na minha visão, o alinhamento entre a turma se deu muito naturalmente. Por mais que os alunos tenham mérito nisso, penso que a construção da disciplina foi a real responsável por isso, com aulas fora do comum que uniram a turma.

A Vivência[editar | editar código-fonte]


Meu relato sobre a experiência de imersão na Reserva Indígena Rio Silveira não pretende discorrer sobre todos os aspectos interessantes que observei, muito porque algumas coisas sigo assimilando, e não foi construído seguindo uma linha temporal de acontecimentos.
Felizmente durante os três dias convivi com a real sensação de perder a noção do tempo. Digo felizmente, pois, a realidade em que vivemos me fez esquecer de questionar algumas imposições. A Aldeia me levou a muitas reflexões, uma delas foi nossa relação com o tempo. Mesmo que no trânsito para descer a Serra, a preocupação e o desconforto gerado pela sensação de perder tempo não estava presente - estar dividindo carro com pessoas que não estavam na frequência da produtividade a todo custo deu início a imersão. Ficar distante do relógio e entender que nosso cronograma cuidadosamente pensado não foi cumprido me fez refletir sobre essa relação artificial com o tempo que nos foi imposta, mas que não é a verdade absoluta. A imersão explicitou que devemos lutar para lidar com a pressão sem perder a essência de ser.
O convívio com uma cultura tão diferente gera choque. Senti isso na pele ao observar a forma como as crianças são criadas. Além de serem extremamente receptivas, as crianças são respeitadas como crianças. Na Aldeia, as crianças brincam e fazem trilhas sozinhas, elas também não são obrigadas a manterem uma postura não correspondente a idade na Casa de Reza ou durante as danças. Nitidamente há educação e respeito perante os mais velhos, mas também há liberdade. Enquanto convivemos com crianças constantemente podadas, sem autonomia e dependentes de tecnologias, a Aldeia me mostrou que é possível respeitar essa fase da vida sem excluir a educação e o respeito.
Também me saltou aos olhos a forma como a turma lidou com os problemas possíveis ou efetivos. Ao contrário de em outras situações, onde o perrengue da chuva e lama ou da baixa oferta de banheiros, por exemplo, levam as pessoas ao desconforto, de maneira geral, a turma respondeu sempre com leveza e positividade - olha que imagino não saber de todos os perrengues contornados, que são esperados numa viagem dessa magnitude. Apesar de entender o mérito individual de cada um nesse aspecto, acredito que muito dessa posição se deu devido ao contexto. Como passamos alguns meses estudando mais sobre os povos originários, já havia certa expectativa quanto ao modo de vida, o que acredito ter influenciado nesse clima.
É difícil expressar verbalmente esse clima que tanto me refiro, venho tentando explicar à colegas de trabalho e para minha família desde que retornei, mas ainda não encontrei uma forma que faça jus ao conforto proporcionado pela Aldeia, mesmo sem o conforto material. Além do que já pontuei que acredito que o clima local influenciou, essa sensação pode ser explicitada na ausência de medo na turma. Por mais que estivéssemos dormindo em barracas em uma área de mata altamente preservada, local onde há maior presença de vida selvagem, eu não tive e nem presenciei ou ouvi algo sobre medo. Lá é tão básico esse nível de convívio com a natureza, que passa não só a sensação de segurança, mas a de que somos parte do meio em que estamos - o que adiciona respeito nessa equação.
No meu caso, as expectativas foram em parte superadas e em parte frustradas, no último caso, não necessariamente é algo negativo. Um exemplo de expectativa que foi frustrada foi em relação à língua. Eu não esperava, por mais que soubesse da preservação da língua nativa, que eles se comunicassem entre si em guarani, imaginava que a língua nativa era usada apenas em cerimônias religiosas. Em conversas descobri que eles são alfabetizados em guarani e depois aprendem português. A Aldeia encontrou uma forma de preservar sua língua sem ficar incomunicável com o exterior.
Pego esse gancho para destacar o quão evidente é a resistência deles como povo. Uma resistência tão perspicaz que prefere superar o passado, do extermínio e preconceito, para focar no futuro, acreditando no poder do conhecimento, que abre sua porta e Casa de Reza aos Juruás. Um povo que escolheu as trocas, incorporando costumes ocidentais sem perder seu modo de vida. E, que espera conscientizar os Juruás para que respeitem sua cultura.

Termino meu relato (e o semestre) com a sensação de que deveria ter aproveitado mais a disciplina e com importantes ensinamentos sobre a arte da transmissão de conhecimento. Desejo à todos a oportunidade de vivenciar algo tão transformador como o convívio com povos originários. Agora, sinto ainda mais o dever de reconhecer os privilégios proporcionados pela Universidade de São Paulo e a obrigação de compartilhar pelo menos um pouco dessa experiência por onde passar. Espero não só voltar à Rio Silveira como colaborar com a luta dos povos originários. Resumo essa experiência em: inspiração!