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Lacunas de conteúdo e equidade

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Na produção de conhecimento científico, a objetividade refere-se à propriedade de teorias científicas de estabelecer afirmações que podem ser testadas independentemente dos cientistas que as propuseram. Segundo este ideal, diretamente relacionado ao método científico, seria possível acessar e relatar a realidade sem interferências subjetivas a partir de uma série de etapas e métodos que garantiriam uma visão imparcial e deslocada do mundo.

Contudo, há uma série de pesquisadores que, desde a década de 1970[1], questionam essa capacidade de descolamento do mundo e da realidade, defendida pela História da Ciência. Donna Haraway é uma delas, para quem "todo conhecimento é um nódulo condensado num campo de poder agonístico"(2009[2]). Isso significa que o conhecimento em si é um campo em disputa: decisões sobre o que merece ser conhecido e como carregam a visão de mundo de quem tem o poder de tomar essas decisões.

As tecnologias, no nosso caso as tecnologias digitais online, assim como o conhecimento também carregam uma forte dimensão política e de poder. Ainda de acordo com Haraway,

"tecnologias são modos de vida, ordens sociais, práticas de visualização. Tecnologias são práticas habilidosas. Como ver? De onde ver? Quais os limites da visão? Ver para quê? Ver com quem? Quem deve ter mais do que um ponto de vista? Nos olhos de quem se joga areia? Quem usa viseiras? Quem interpreta o campo visual? Qual outro poder sensorial desejamos cultivar, além da visão?" (2009)[2].

Todas essas decisões são embasadas em concepções de mundo particulares carregadas de interesses políticos e subjetivos. É possível diminuir a interferência dessas visões, almejando uma imparcialidade, mas ela nunca será completa. "O único modo de encontrar uma visão mais ampla é estando em algum lugar em particular". A ciência não produz imagens a partir de "visões de cima", mas da soma de olhares parciais e de vozes vacilantes, de sujeitos que produzem "visões desde algum lugar" (HARAWAY, 2009, p.34-5[2]).

Levando isso em consideração, é possível compreender o porquê da ciência tradicionalmente sub-representar grupos considerados "minoritários", já que historicamente não estavam nos lugares de decisão sobre o que era considerado válido conhecer ou até mesmo do que era (e é) considerado conhecimento em si.

A internet da maioria é produzida pela minoria[editar | editar código-fonte]

Dados da Wikipédia em inglês sobre número de biografias por gênero – Linha vermelha representa as de homens e linha azul as de mulheres
Assim como em outros espaços de conhecimento, na internet os padrões coloniais e normativos se repetem. "A internet da maioria (marginalizada) é produzida pela minoria (ocidental, branca, masculina)" (Whose Knowledge, 2018, tradução livre[3]). E o design, a arquitetura e a governança das plataformas e ferramentas que se dizem "globais" da internet "raramente incluem mulheres, pessoas não brancas e do Sul Global (África, Ásia e Ilhas do Pacífico, América Latina e Caribe)" (Whose Knowledge, 2021, tradução livre[4]).

Apesar de

  • mais de 58% da população mundial ter acesso à internet,
  • 75% desses que estão online estarem no Sul Global, e
  • 45% de todas as mulheres estarem online, é a

"perspectiva de homens principalmente brancos, heterossexuais e norte-americanos que dita como nossas infraestruturas de conhecimento são criadas e administradas. Isso significa que as plataformas, políticas e protocolos da internet são criados por e decididos pelo contexto 'local' dos Estados Unidos, tornando o "local" dos Estados Unidos o (muitas vezes não questionado) 'global' do resto do mundo" (Whose Knowledge, 2021, tradução livre[4]).

Das quase 2 milhões de biografias existentes na enciclopédia em língua inglesa, por exemplo, apenas 20% são de mulheres. E com o agravante de grande parte dos verbetes dedicados a mulheres serem escritos de forma sexista e depreciativa.[5]

Lacunas e viés na Wikipédia[editar | editar código-fonte]

Essa lacuna de representação está refletida nos projetos Wikimedia, incluindo a Wikipédia, por uma série de razões. Uma delas é a sub-representação na própria ciência, que serve de base para os verbetes da enciclopédia online. Um segundo ponto é o grupo de pessoas que majoritariamente escreve a Wikipédia: apenas 20% do mundo (principalmente editores homens da América do Norte e da Europa) edita 80% da Wikipédia.

"Como quem você é impacta o que você cria, essa falta de diversidade nos editores leva à falta de diversidade no conteúdo. Pesquisadores do Oxford Internet Institute descobriram recentemente que, embora a África tenha quase o dobro da população da Europa, tem apenas 15% do número de artigos na Wikipédia". (VRANA, SENGUPTA & BOUTERSE, 2020[6]).

Isso se dá também por outros fatores, dentre eles o maior acesso à infraestrutura técnica nos países do Norte Global – como computadores, internet e o conhecimento sobre o funcionamento das interfaces digitais – ou maior disponibilidade de tempo e recursos financeiros para se dedicar ao trabalho voluntário – necessários para a edição dos projetos Wikimedia.

Nos gráficos a seguir, publicados em 2021, é possível ver como os editores da Wikipédia estão concentrados sobretudo na versão da enciclopédia em inglês. No gráfico do lado esquerdo, vemos a distribuição do número de editores por idioma ao longo do tempo e a área em azul representa editores que escrevem em inglês. Consequentemente, a Wikipédia em inglês segue sendo a mais acessada ao longo do tempo, como demonstrado no gráfico do lado direito, representando o número de visualizações de página da Wikipédia por idioma, ao longo do tempo – na área azul, os acessos à enciclopédia em língua inglesa.

Editores da Wikipédia ao longo dos anos
Editores da Wikipédia ao longo dos anos
Visualizações de página na Wikipédia por língua ao longo do tempo
Visualizações de página na Wikipédia por língua ao longo do tempo

Muitos wikimedistas residentes em países falantes de idiomas diferentes do inglês dedicam seu tempo à produção do conteúdo na versão da Wikipédia em língua inglesa em busca do maior número de visualizações ou de conteúdos mais atualizados. Enquanto as versões da Wikipédia em seus idiomas maternos carecem de conteúdo em várias áreas, muitos editores preferem dedicar seu tempo na produção de conteúdos para aquela versão. Portanto, é possível imaginar como essa situação força um ciclo vicioso em que a versão mais editada é também a mais atualizada e mais visualizada, etc.

A Wikipédia é apenas um exemplo de como a experiência da internet é distorcida, refletindo as desigualdades estruturais e representativas do mundo. E por isso, pode contribuir para amplificar e aprofundar essas desigualdades, já que reflete as formas pelas quais o poder e o privilégio operam historicamente.

Ampliar, qualificar e diversificar a Wikipédia[editar | editar código-fonte]

Visualização do viés de gênero na Wikipédia. Acesse essas dicas sobre como escrever sobre mulheres na Wikipédia.

O trabalho de afiliados da Wikimedia localizados fora do Norte Global tem contribuído com conteúdo de outras culturas, contextos e perspectivas para os projetos Wikimedia e, consequentemente, para a internet como um todo.

Ainda assim, a comunidade lusófona dos projetos Wikimedia, incluindo os editores da Wikipédia em português, também reflete os padrões internacionais. De acordo com pesquisa realizada em 2022, 65% dos editores lusófonos que responderam ao questionário se reconhecem como sendo do gênero masculino, 27% do gênero feminino e 5% preferiram não informar[7]. Assim como o padrão dos editores, o viés de gênero está muito presente nos verbetes disponíveis em português – o número de biografias de mulheres é infinitamente menor do que as biografias de homens disponíveis, com pessoas pertencentes de outras (consideradas) minorias sociais sendo ainda mais desfavorecidas.

O Wiki Movimento Brasil atua para ampliar, qualificar e diversificar o conteúdo presente nos projetos Wikimedia e na internet em português. Para isso, atua na articulação de pessoas e coletivos para agir em brechas de conteúdo ou conteúdos sistematicamente enviesados. Isso é feito por meio de maratonas de edição temáticas, parcerias com instituições localizadas fora do Sudeste ou que possuem acervos com perspectivas de grupos historicamente marginalizados, dentre outros[8].

De acordo com pesquisadores, os editores da Wikipédia são "co-criadores ativos de conhecimento" em vez de "colecionadores passivos de conhecimento disponível em fontes" (Zheng et al., 2022[9]) porque ajudam a definir o que vale a pena ser visto. Podemos usar esse poder especial para dar visibilidade aos temas que consideramos importantes, escolhendo quem e quais artigos científicos usar como fonte. Isso faz da Wikipédia uma ferramenta poderosa para divulgar o trabalho de pesquisa de cientistas em início de carreira ou de estudiosos de grupos historicamente marginalizados e invisibilizados, como mulheres, pessoas não-brancas e não-binárias. Além disso, é uma forma de promover e divulgar a produção e a cultura nacional, com conteúdo produzido por nós sobre nós mesmos.

Educadores e educadoras também podem contribuir para diminuir esses hiatos de conhecimento na internet em português trabalhando com suas turmas de estudantes. Há várias maneiras de dedicar-se e diminuir as lacunas de conhecimento nos projetos Wikimedia. Na última unidade deste módulo, elencamos algumas sugestões que podem ser úteis para desenvolver com seus estudantes. Enquanto isso, convidamos você a pensar quais as áreas da sua temática de atuação carecem de informações disponíveis na internet e a imaginar como seu projeto de extensão poderia atuar diretamente na diminuição dessa lacuna.

Referências

  1. Estudos de ciência, tecnologia e sociedade. https://pt.wikipedia.org/wiki/Estudos_de_ci%C3%AAncia%2C_tecnologia_e_sociedade
  2. 2,0 2,1 2,2 Haraway, D. (2009). Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, (5), 7–41. Recuperado de https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773
  3. WHOSE KNOWLEDGE? (2018) … the first ever conference about centering marginalized knowledge online!. In: Whose Knowledge?. Disponível em: https://whoseknowledge.org/decolonizing-the-internet-conference/
  4. 4,0 4,1 WHOSE KNOWLEDGE? (2021). Re-imagining and re-designing the internet to be for and by us all. Report. Disponível em: https://whoseknowledge.org/wp-content/uploads/2021/04/WK-Prospectus-2021.pdf.
  5. Computational Linguistics Reveals How Wikipedia Articles Are Biased Against Women. February 2, 2015. Disponível em:https://www.technologyreview.com/2015/02/02/169470/computational-linguistics-reveals-how-wikipedia-articles-are-biased-against-women/
  6. Vrana, A. G., Sengupta, A., & Bouterse, S. (2020). 16  Toward a Wikipedia For and From Us All. In ::Wikipedia @ 20. Retrieved from https://wikipedia20.pubpub.org/pub/myb725ma)
  7. Pesquisa a Estratégia do Movimento 2030 na comunidade lusófona. https://br.wikimedia.org/w/index.php?title=Arquivo:Pesquisa_a_Estrat%C3%A9gia_do_Movimento_2030_na_comunidade_lus%C3%B3fona.pdf&page=12#filelinks
  8. Relatórios do Wiki Movimento Brasil. https://meta.wikimedia.org/wiki/Wiki_Movement_Brazil_User_Group/Report/2023
  9. Zheng, Xiang, et al. "Gender and country biases in Wikipedia citations to scholarly publications." Journal of the Association for Information Science and Technology (2022).

Conteúdos audiovisuais

Depoimento de Elisa Frühauf Garcia, Professora na Universidade Federal Fluminense.

Discussão